Topo

Rubens Valente

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Marco temporal: ONG e agronegócio já refutaram dados citados por ruralistas

Acampamento dos indígenas sobre o marco temporal, em Brasília - Ramon Vellasco/UOL
Acampamento dos indígenas sobre o marco temporal, em Brasília Imagem: Ramon Vellasco/UOL

Colunista do UOL

02/09/2021 18h43

No terceiro dia do julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a tese jurídica do "marco temporal" na demarcação de terras indígenas, nesta quinta-feira (2), representantes do ruralismo apresentaram dados que já foram refutados por organizações não governamentais e pelo menos uma entidade do agronegócio.

Na sua sustentação oral, o representante da SRB (Sociedade Rural Brasileira), o advogado Paulo Dorón Rehder de Araújo, que atua no processo como amicus curiae, afirmou que com o afastamento da tese do "marco temporal", segundo "o Instituto Pensar Agro, em estudo divulgado esta semana, levaríamos a demarcação de cerca de 30% do território nacional como terras indígenas".

Representante da Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), outro amicus curiae, Luiz Fernando Vieira Martins citou "o estudo econômico do Imea", uma entidade de Mato Grosso, que teria concluído que o impacto negativo de empregos só em Mato Grosso "será significativo".

O "Agrosaber" publicou na semana passada no jornal "O Estado de S. Paulo" um anúncio a favor do "marco temporal" sob o argumento de que haverá enormes prejuízos no campo se a tese for afastada pelo STF. O "Instituto Pensar Agro", segundo "De olho nos ruralistas", é um braço técnico da bancada ruralista no Congresso.

O papel de um amicus curiae é subsidiar uma autoridade judicial com informações para a tomada da decisão. As supostas conclusões dos estudos citados pelos representantes dos ruralistas, contudo, já foram questionadas e desmentidas em diversas frentes nos últimos dias.

Na última segunda-feira (30), por exemplo, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o presidente da ABAG (Associação Brasileira do Agronegócio), Marcello Brito, foi indagado pela jornalista Nayara Figueiredo se a rejeição do "marco temporal" pelo STF trará algum impacto negativo ao agronegócio - conforme também alegado em tom de ameaça pelo presidente Jair Bolsonaro.

"Não traz, não traz e assim, foi até publicado aí números astronômicos de perdas. Sinceramente, eu não vi nenhum estudo sério mostrando isso. Nenhum. Olha que eu procuro e leio todos", respondeu Marcelo Britto.

"Vamos entender: o agro brasileiro tem - em números grandes, tá? - 70 milhões de hectares, quer dizer, 70 milhões de campos de futebol sob agricultura. Nós temos mais 170 milhões de hectares sob pasto, pecuária. Nós temos mais 80 milhões de hectares que já foram degradados, desatados na Amazônia, [desses] tem 22 milhões em recuperação, o que mostra o teor da destruição. Então nós temos lá mais 60 milhões de hectares [já desmatados]. O que significa que, se fosse para expandir, para valer mesmo, se não tivesse problema de demanda, a gente poderia quadruplicar a área de produção brasileira com expansão de terra. Não estamos [nem] falando de tecnologia e produtividade. Provavelmente na próxima safra nós vamos ter aí 2 ou 3 milhões de hectares a mais do que na safra anterior. E muito disso, a maioria disso, praticamente quase tudo isso foi feito em cima de pasto", disse Marcello Brito.

"Então quando chega nessa hora a gente tem que ter um cuidado danado com esses números", continuou Britto. "Então eu sei de alguns institutos que foram atrás de quem publicou esses números para pedir a premissa do estudo e receberam uma resposta que [o estudo] era confidencial. Então você não pode publicar um número cuja premissa é confidencial, né, a premissa tem que ser aberta para você discutir. Mas na verdade é o seguinte: o agro não precisa invadir terra indígena para crescer, não precisa invadir terra indígena para se refazer. [...] Então o resultado desse julgamento vai mostrar muito que país nós somos pro futuro e que país nós queremos ser para o futuro e que país nós queremos mostrar para o público que vai comprar os nossos produtos tão bem produzidos por agricultores aqui do nosso Brasil. É um negócio bem pesado."

No último dia 27, o site Fakebook.eco, uma iniciativa do Observatório do Clima, coalizão de organizações não governamentais, revelou que os dados publicados pelos ruralistas sobre supostos prejuízos com demarcação indígena vinham de um estudo secreto. O site pediu ao grupo "Agrosaber" acesso ao estudo que calculara um suposto "impacto negativo de R$ 1,95 bilhão em Mato Grosso" com a ampliação ou criação de terras indígenas, caso o STF afaste a tese do "marco temporal".

Segundo o Fakebook.eco, o Imea (Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária) foi apontado como o autor do estudo. Procurado, o Imea disse que o trabalho "tem caráter confidencial" e que, "por questões contratuais" não poderia repassá-lo. Provavelmente é o mesmo caso referido pelo presidente da ABAG no "Roda Viva".

Sobre o trecho do julgamento no STF em que o representante da SRB afirmou que 30% do território brasileiro poderá ser demarcado como terra indígena, a organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental) qualificou como "mentira bolsoruralista".

"O representante da Sociedade Rural Brasileira disse que até 30% do Brasil pode virar Terra Indígena... Mentira bolsoruralista! Se concluirmos todas as demarcações já iniciadas, o índice será de 13%! Enquanto isso, 1% dos produtores rurais detêm 20% do país!", afirmou o ISA em seu perfil nas redes sociais.

O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) calcula que há hoje 826 terras indígenas aguardando providências do Estado brasileiro quanto à sua regularização e demarcação e, assim, todas poderiam ser atingidas por uma eventual institucionalização da tese do "marco temporal". O tamanho dessas terras, contudo, não é seguramente conhecido, pois mais de 500 ainda nem começaram a tramitar na esfera administrativa e, portanto, não se sabe sua extensão correta. De qualquer forma, segundo o Cimi e o ISA, a maioria dos casos pendentes hoje é de terras relativamente pequenas e está fora da Amazônia, onde já estão asseguradas as maiores terras indígenas.