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Uma iniciativa do UOL para checagem e esclarecimento de fatos


Projeto que criminaliza qualquer tipo de aborto tem contradições e exageros

Luiz Fernando Menezes

Do Aos Fatos

08/12/2017 04h00

Após ser aprovado por 18 votos a um na comissão especial da Câmara, os destaques --mudanças sugeridas pelos parlamentares-- à Proposta de Emenda Constitucional 181/2011 estão para ser votados novamente na comissão. Redigido pelo deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), o texto altera o inciso III do artigo 1º da Constituição para definir que a vida começa desde a concepção. Com isso, abortos legais, como nos casos de estupro, seriam criminalizados.

O texto original defendia apenas uma mudança no artigo 7º, para estender a licença-maternidade em casos de nascimento prematuro. Por causa da alteração feita pelo relator, a proposta ganhou o apelido de "PEC Cavalo de Tróia".

Houve, inclusive, um requerimento do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) pela impugnação dos artigos inseridos pelo relator que “acrescentam matéria estranha que pretende constitucionalizar uma controvérsia jurídica”. De acordo com Braga, o substitutivo é ilegal por dois motivos: a lei contém matéria estranha ao seu objeto original (indo contra a Lei Complementar 95/1998) e apresenta emendas sem relação de pertinência temática, conhecidas como “emendas jabutis” (considerado como inconstitucional perante a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5127).

Além da polêmica envolvendo o próprio texto, Aos Fatos verificou que o substitutivo também apresenta contradições em sua redação.

Ressalta, o referido autor, a importância superior do procedimento legislativo, legitimado por todas as suas fases como audiências, apresentação de emendas, debates, repetidas votações nas Comissões e no Plenário, sem contar a maior proximidade ou conexão com a comunidade, com o povo, enfim.

CONTRADITÓRIO: Na página três do texto substitutivo, está escrito que “foram realizadas, em consonância com o Plano de Trabalho, várias audiências públicas” e, logo depois, são citadas as pessoas ouvidas durante as três audiências. A primeira, do dia 10 de abril, ouviu os advogados e doutores Elival da Silva Ramos e José Levi Mello do Amaral Júnior. Em 17 de maio, a Comissão ouviu o Procurador Regional da República Paulo Jacobina e a professora e advogada Lília Nunes dos Santos. Já no dia 31 de maio, foi a vez de darem suas palavras os advogados Maristela Pezzini e Caio de Souza Cazarotto e o presidente da Confederação Nacional das Entidades da Família, Aridney Loyelo Barcellos.

Todos eles, vale ressaltar, eram favoráveis ao texto do relator: argumentaram a favor da necessidade de o Legislativo assumir o juízo da causa e da necessidade de se combater o “ativismo judicial” ou diziam que não há “um direito absoluto à liberdade da mulher ao ponto de suprimir a vida do nascituro”.

O deputado também cita a importância de debates, apresentação de emendas e “repetidas votações”. Não houve, porém, apresentação de emendas nem ao projeto original nem ao substitutivo. Também não há registro de outra votação dentro da própria comissão especial. Uma vez aprovada, porém, a matéria exigirá maioria de 3/5 dos parlamentares em quatro votações (duas na Câmara e duas no Senado).

Em pesquisa do Ibope Inteligência, encomendada pela organização Católicas pelo Direito de Decidir, realizada em fevereiro deste ano, 64% da população discorda total ou parcialmente com a ideia de que uma mulher que precisou recorrer ao aborto seja presa. Também de acordo com esta pesquisa, o texto do deputado, ao criminalizar qualquer tipo de aborto, estaria indo contra a opinião pública.

No passado, entretanto, Jorge Tadeu Mudalen já usou pesquisas de opinião pública para endossar sua posição. Membro da bancada evangélica, foi relator, em 2007, de um projeto de lei que defendia a descriminalização do aborto (PL 1.135/1991). Na ocasião, apresentou um parecer contrário ao texto. Em seu relatório, utilizou a opinião da população como argumento contrário à mudança. Na época, de acordo com a "Folha de S. Paulo", “há 14 anos, 23% dos brasileiros achavam que a interrupção da gravidez deveria ser permitida em mais situações além de estupro e risco de morte para a mãe. Hoje, 16% dizem isso”.

Defendeu o palestrante, portanto, que devemos promover o pluralismo efetivo, dando oportunidade para todos se manifestarem, inclusive àqueles que não concordam com o aborto, num debate democrático e racional, e não, como ocorre, descartando de imediato aqueles argumentos de ordem religiosa, sem considerar que os mesmos convergem, em suas conclusões, com outros argumentos de natureza científica, filosófica e sociológica.

CONTRADITÓRIO: A contradição começa já na redação do substitutivo: Mudalen escreve que todos devem ter oportunidade de se manifestar em relação ao tema. Porém, para sua argumentação, o deputado usa citações de sete advogados e do presidente da Confederação Nacional das Entidades de Família. Além de não ter ouvido oficialmente profissionais da área da biologia, também não abriu espaço para discutir com quem fosse favorável ao aborto durante as audiências públicas.

Vale ressaltar que a comissão especial que analisou e votou o texto — com placar final de 18 votos a um pela aprovação, sendo que o contrário foi da deputada Érica Kokay (PT-DF), única mulher que conseguiu registrar voto — era formada por 35 deputados, sendo 29 deles homens. Há um vídeo do site "The Intercept Brasil" em que um grupo de deputados comemora o resultado gritando “vida sim, aborto não!”.

A votação é também questionada pela oposição, que diz não ter tido possibilidade de se manifestar de maneira contrária à proposta. De acordo com a declaração de voto assinada pela deputada Jô Moraes (PCdoB-MG) durante a reunião da comissão, a votação foi encerrada ao ser registrado o 18º voto favorável, sendo que o colegiado tem 35 membros. Isso, conforme o relato, impediu o registro de votos contrários. A oposição também afirma que foi negado o registro em ata dos votos dos deputados Glauber Braga, Luiza Erundina e Jorge Solla, “insinuando que estes estariam dormindo ou cochilando”.

Podemos afirmar que em um futuro não muito distante será possível proteger e desenvolver a vida humana fora do útero materno já a partir da própria concepção ou de um momento bem vizinho a ela, a demonstrar, com isso, que há uma vida humana a ser considerada em si mesma no seio materno já a partir desse momento.

INSUSTENTÁVEL: Em abril deste ano, uma pesquisa foi publicada na revista "Nature" demonstrando resultados positivos da “Biobag”, um útero artificial que foi testado em oito fetos de ovelha nascidos prematuramente. Depois de quatro semanas na Biobag, os fetos foram retirados e não foi encontrado nenhum problema, mesmo nos órgãos mais vulneráveis dos prematuros. O autor principal do estudo, Alan Flake, acredita que, no futuro, o útero artificial possa ajudar em casos de nascimento prematuro de bebês humanos, mas descarta a possibilidade de uma gestação completa: “é ficção científica acreditar que você pode pegar um embrião, passar pelos processos iniciais de desenvolvimento e colocá-lo na nossa máquina sem a figura da mãe ser um elemento crítico aí”.

Mas existem pesquisadores que acreditam que a ectogênese — termo usado para se referir à produção de bebês fora do corpo da mãe — possa ser alcançada. Em maio de 2016, um grupo de cientistas americanos conseguiu fazer com que um embrião sobrevivesse 13 dias fora do corpo e só interrompeu a pesquisa porque há uma regra limite de que os embriões só podem permanecer no laboratório por 14 dias. Ou seja, hoje já é a ética que impede os avanços nessa área, e não mais a tecnologia.

Mesmo assim, são poucos os estudos preocupados com a gestação artificial. Hoje, as pesquisas estão muito mais focadas em diminuir a mortalidade de fetos prematuros e em garantir que a formação do bebê seja completa, mesmo fora do útero.

Portanto, por mais que a ciência esteja avançando no sentido de permitir a gestação artificial, ainda é cedo para afirmar que será possível proteger e desenvolver uma vida humana fora do útero materno, muito menos em “um futuro não muito distante”.

Além disso, um artigo da revista americana "Wired" discutiu as possíveis implicações dessa tecnologia na diminuição do aborto. A conclusão é de que o útero artificial mudaria a ideia de viabilidade de um aborto e um advogado poderia alegar que os limites deveriam ser maiores, uma vez que essa tecnologia permitiria que uma gravidez indesejada pudesse continuar sem a presença da mãe. Mesmo assim, o artigo defende que isso é pouco provável, já que, além de a tecnologia ter de ser barata, ainda teria que ser produzida em massa para dar conta dos 664 mil abortos legais registrados nos EUA em 2013.

Lembrou, a esse propósito, que a superação das desavenças raciais nos EUA, por exemplo, e ao contrário do que normalmente se apregoa, se deu não em função de decisões judiciais, mas pela edição do 'Civil Rights Act', de 1964, proposto pelo então presidente Lyndon Johnson e acolhido pelo Congresso.

EXAGERADO: A Lei dos Direitos Civis (“Civil Rights Act”, em inglês) de 1964 foi um texto adotado nos Estados Unidos que tornou ilegal a discriminação no espaço público com base em raça, cor, religião, sexo ou origem social. A citação do professor José Levi Mello do Amaral Júnior foi usada para basear a posição do relator de que não cabe aos juízes a decisão sobre as questões de aborto, e sim ao Poder Legislativo, que foi eleito pela população e, portanto, representa a vontade dela. De acordo com o professor, portanto, a Lei de Direitos Civis de 1964 não foi fruto de decisões de juízes, mas sim do presidente Lyndon Johson e de sua respectiva aprovação no Congresso.

Porém, de acordo com o professor Howard Robinson, em entrevista à "Veja", a Lei foi apenas uma das conquistas da pressão do movimentos negro. Antes dela, houve também outras vitórias judiciais, como a decisão do Supremo Tribunal, em 1954, que declarou inconstitucional a existência de escolas só para brancos e outras só para negros, e outra, em 1955, que tornou ilegais os ônibus segregados na cidade de Montgomery.

No artigo “Behind the Civil Rights Act”, assinado por diversos professores e historiadores americanos, o professor da Universidade de Michigan Samuel Bagentos explica que uma das decisões judiciais da Corte Suprema durante os “Civil Rights Cases” de 1883 utilizou termos bem parecidos com aqueles usados na aprovação da Lei no Congresso em 1964. Logo, não é possível negar a influência das decisões judiciais no texto citado pelo professor Amaral Júnior.

Também é exagero falar de “superação” quando a aprovação da Lei de Direitos Civis não foi suficiente para acabar com as diferenças entre brancos e negros nos EUA. Após 1964, foram julgados casos emblemáticos que ajudaram a abrir mais brechas legais para situações como o casamento entre uma pessoa branca e uma pessoa negra (o caso Loving vs. Virginia, em 1967) e a proibição do uso de testes de inteligência utilizados para excluir candidatos negros de vagas em empresas (Griggs vs. Duke Power Co., em 1971).

 

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