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Fazendeiros são condenados por sequestro e tortura de cacique do MS, mas são inocentados de homicídio

Rosanne D'Agostino

Do UOL Notícias<br>Em São Paulo

25/02/2011 23h55Atualizada em 26/02/2011 00h19

Após cinco dias de julgamento, um júri popular decidiu nesta sexta-feira (25) condenar três fazendeiros a 12 anos e 3 meses de prisão pelos crimes de sequestro, tortura e formação de quadrilha que resultaram na morte do líder do povo guarani-caiová, o cacique Marcos Veron, ocorrida em janeiro de 2003 em Juti (MS). Os fazendeiros, entretanto, foram absolvidos pelo crime de homicídio. O povo guarani-caiová vive em uma área de conflitos, cujos índices de violência são os mais altos entre todas as comunidades indígenas do país.

Eles foram condenados a cumprir pena em regime fechado, mas, beneficiados por um habeas corpus, não foram presos após o julgamento.

A juíza federal Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo, leu a sentença no plenário do Fórum Jarbas Nobre, na capital paulista. Entre os presentes, estavam parentes do indígena, que acompanharam a sessão desde o primeiro dia, vindos do Mato Grosso do Sul. O julgamento começou na segunda (21) sob protestos dos índios, que pediram justiça em frente ao fórum Jarbas Nobre.

O júri

Estevão Romero, Carlos Roberto dos Santos e Jorge Cristaldo Insabralde foram recebidos com revolta no fórum pelos membros da tribo. Eles eram acusados de homicídio duplamente qualificado (por motivo torpe e meio cruel), tortura, seis tentativas qualificadas de homicídio, seis crimes de sequestro, fraude processual e formação de quadrilha. Estevão também foi condenado hoje por fraude processual. Outras 24 pessoas foram denunciadas por envolvimento no crime.

  • Hédio Fazan/Diário MS - 13.01.2003

    Ládio Veron, filho do cacique, uma das vítimas dos ataques aos indígenas; ele disse ter quase sido queimado vivo

Ao todo, sete vítimas, todas indígenas, foram ouvidas pela juíza. Uma delas é Ládio Veron, filho do cacique morto. Depois, o juízo ouviu cinco testemunhas de acusação (três indígenas), duas de defesa e uma do juízo. Por fim, acusação e defesa apresentaram seus argumentos nesta sexta, quando o júri popular se reuniu para dar o veredicto.

Transferência de Estado

O júri foi transferido do Tribunal do Júri de Dourados (MS) para São Paulo a pedido do Ministério Público Federal, que alegou que os jurados não teriam a isenção necessária naquele Estado, devido ao preconceito na sociedade local e ao grande poder de influência do proprietário da fazenda reclamada pela tribo de Veron, Jacinto Honório da Silva Filho. Ele é acusado de coagir os índios a mudarem seus depoimentos.

O caso ganhou notoriedade porque Veron já representou a comunidade em eventos internacionais. É acompanhado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e por organizações não-governamentais ligadas aos direitos humanos. 

Se fosse índio, que matou três ou quatro fazendeiros, hoje o julgamento já tinha acontecido. A gente espera justiça, ser respeitado com nossa diferença e com nossa especificidade

Valdelice Veron, filha do cacique assassinado

O MPF defendeu a aplicação da pena máxima. Já a defesa dos acusados alegou que o crime foi cometido dentro da própria tribo, o que é comum entre os guarani-caiová, além de falta de provas contra os clientes.

Segundo a denúncia, os índios acampados na fazenda Brasília do Sul, em Juti, região sul do MS (veja no mapa ao final em Taquara), sofreram dois ataques de um grupo formado por cerca de 30 homens armados que trabalhariam para o dono da propriedade.

Entenda o crime

No dia 12 de janeiro de 2003, o grupo teria perseguido um veículo e atirado contra os indígenas --duas mulheres, um adolescente de 14 anos e três crianças de 6, 7 e 11 anos. Na madrugada seguinte, os agressores atacaram o acampamento.

Sete índios foram sequestrados, amarrados na carroceria de uma caminhonete e levados para local distante da fazenda, onde passaram por uma sessão de tortura. Ládio disse ter quase sido queimado vivo. A filha dele, Geisabel, grávida de sete meses, foi arrastada pelos cabelos e espancada. Marcos Veron, à época com 73 anos, foi agredido com socos, pontapés e coronhadas de espingarda na cabeça. Ele morreu por traumatismo craniano.

Taxa de homicídios entre guaranis-caiovás é 20 vezes maior do que a de SP

Funai (Fundação Nacional do Índio), Cimi, ISA (Instituto Sociambiental), lideranças indígenas, antropólogos e representantes do Ministério Público de Federal em Mato Grosso do Sul compartilham da mesma posição: causa principal da violência entre caiovás é a falta de terras

Língua indígena

O júri foi adiado em maio do ano passado após decisão da juíza Paula Mantovani, que determinou que as oitivas dos indígenas ocorressem em português. Como forma de protesto pela necessidade de um intérprete, o procurador Vladimir Aras abandonou a sessão. Agora, quatro procuradores da República atuaram na acusação: Marco Antônio Delfino de Almeida, de Dourados, Rodrigo De Grandis e Marta Pinheiro de Oliveira Sena, de São Paulo, além do procurador-regional Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.

Este é o terceiro caso no país de transferência de um processo para outro Estado. Os dois primeiros ocorreram no julgamento de Hildebrando Pascoal, quando os júris federais foram transferidos de Rio Branco para Brasília. O ex-deputado federal foi condenado a 18 anos de prisão em regime fechado pelo assassinato do mecânico Agílson Firmino dos Santos, o Baiano, morto com golpes de motosserra em 1996, no Acre.

O júri do caso Veron não é o primeiro julgamento de homicídio contra um indígena no Mato Grosso do Sul. Em 1983, Marçal de Souza, líder da etnia guarani-nhandevá, foi assassinado em uma disputa de terra. Os acusados pelo crime, Líbero Monteiro de Lima e Rômulo Gamarra, foram absolvidos dez anos depois. Em razão da demora, a acusação prescreveu.