Topo

Dois anos depois, jovem que perdeu todos os dentes em erro de dentista no DF ainda aguarda cirurgia de implante

Janaina Garcia<br>Do UOL Notícias<br>Em São Paulo

10/05/2011 11h00

O jovem César Oliveira Ferreira, 19 anos, quase não sorri; quando o faz, se apressa em levar a mão à boca. Nos últimos dois anos, o contato dele com outras pessoas da mesma idade também minguou, mas não porque elas tenham se afastado --é ele mesmo quem faz questão de se afastar. Engana-se, no entanto, quem pensa que o comportamento do rapaz, que é deficiente mental, se deve a timidez pura e simples: César teve todos os 28 dentes arrancados em setembro de 2009 em uma cirurgia desastrosa na qual apenas dois dentes deveriam ser extraídos. O caso aconteceu em Brasília no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), que integra a rede pública de saúde do Distrito Federal (DF).

À época, o então adolescente de 17 anos faria a extração em um consultório. Nervoso, foi encaminhado pelo cirurgião-dentista ao HRAN, onde recebeu anestesia geral. Alegando uma suposta patologia na arcada dentária do paciente, o profissional só comunicou a mãe de César sobre o procedimento depois de realizadas as extrações. A dona de casa Maria Aldenora de Oliveira, 49, no entanto, recorda com tristeza a forma como descobriu que o filho ficara na nova situação: “Eu estava no centro cirúrgico toda paramentada com roupa, bota e touca, mas em uma sala ao lado daquela onde ele estava. Só depois de tudo feito que pude entrar. Fui limpar a boca do meu filho, que sangrava, e vi que ele estava sem nenhum dente na boca --fiquei sem ar, sem chão, parecia que tinha batido a cabeça, tamanho o meu desespero”, disse, em entrevista ao UOL Notícias.

A mãe denunciou o caso ao Ministério Público no DF e entrou com uma ação por danos morais e materiais na Justiça comum contra a secretaria estadual de Saúde, que, após o fato, chegou a afastar temporariamente das funções o cirurgião-dentista e a chefe da área odontológica do HRAN. Do processo contra o órgão estadual a dona de casa ainda não obteve uma resposta; pelo MP-DF, a família conseguiu que o profissional concordasse com acordo indenizatório pelo qual depositará em uma caderneta de poupança, em 17 parcelas de R$ 3 mil, cada --que começaram a ser pagas ano passado --, a soma de R$ 51 mil.

IML

Além da não comunicação do procedimento à família, conduta vedada pelo Código de Ética dos profissionais de Odontologia, o cirurgião dentista também errara pelo procedimento em si. A constatação foi feita dias depois de o caso ganhar publicidade --com a denúncia da mãe de César --em laudo do IML (Instituto Médico Legal) de Brasília, cuja perícia concluiu que, tecnicamente, não havia qualquer necessidade de extração dos outros 26 dentes do jovem. O diretor do IML, Malthus Fonseca Galvão, afirmou na ocasião não existir qualquer problema grave nos dentes do paciente: a perícia constatou apenas pequenas ocorrências mínimas, como cárie e problemas na gengiva.

Dois anos, duas cirurgias, nenhum dente

Desde a extração, o jovem passou por duas cirurgias de um grupo de voluntários composto por cirugiões e professores do DF, mas para colocação de enxerto e de pinos. O grupo é coordenado pelo presidente do CRO (Conselho Regional de Odontologia) do DF, Júlio César, entidade que livrou o cirugião de punição em processo ético deflagrado pelo caso César.

A previsão do presidente do CRO-DF é que “em no máximo duas semanas” o jovem seja submetido a cirurgia para colocação de dentes provisórios, e “mais 15 a 20 dias” para os dentes definitivos. “Na época foi um oba oba, todo mundo querendo sair na fotografia, mas tínhamos que tratá-lo com dignidade. Por isso esse grupo resolveu tomar a frente para resolver o problema da família --e posso dizer que o deixaremos com o melhor tratamento de implante do mundo”, prometeu. O que motiva a solidariedade com um tratamento caro para tentar corrigir o erro de outro profissional? “Solidariedade, apenas”, resumiu o presidente do CRO-DF.

Rotina transformada

A dona de casa conta que o erro como o do cirurgião-dentista mudou não apenas a vida do filho, como do restante da família. Hábitos simples como o churrasco do fim de semana se tornaram algo praticamente proibido em casa a fim de que o jovem não sofra ainda mais com a limitação imposta.

“Mudou tudo na nossa rotina, né? No início ele não queria mais ir à escola (a Apae-DF, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais do DF), pois ficou com vergonha. Depois de um mês voltou, mas fica com certo receio, com vergonha... a auto-estima nunca mais foi a mesma, pois ele vê as outras pessoas sorrindo e se retrai. Apesar da deficiência, ele entende bem”, conta a mãe. O receio a que ela se refere já se manifestou, por exemplo, em ações relativamente simples como a retirada de sangue para exames. “Preciso conversar muito antes porque ele fica preocupado, triste; criou um trauma. Também deixei de fazer churrasquinho, e ele ama churrasco, pois desde que isso aconteceu fica mais à base de comida pastosa. Não é fácil”, relata a dona de casa.

Religiosa, ela garante acreditar que “tudo tem um motivo para acontecer”. Mas também mostra fé em que a Justiça dos homens ainda possa trazer algum efeito benéfico de tudo que passou com o filho: “Essas decisões demoram e sei que dinheiro nenhum compensa o que meu menino passou. Meu marido tem emprego (é funcionário público de serviço social) e temos casa própria. E esse doutor --que, segundo me falam, é uma pessoa boa --tem cumprido a meta colocada pelo Ministério Público (o pagamento da indenização, parcelado)”, define, para ressalvar: “Mas se eu fico quieta, onde isso ia parar, se é dessa forma que agem com pessoas que a gente chama de especiais? Pelo menos tenho muita fé que meu filho vai ter um sorriso lindo de novo. Isso eu sei.”