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"A bala virou a cabeça dele", diz testemunha que viu Juan ser assassinado no Rio

Juan foi morto por policias militares no Rio de Janeiro - Bandnews
Juan foi morto por policias militares no Rio de Janeiro Imagem: Bandnews

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio de Janeiro

24/01/2012 20h04Atualizada em 24/01/2012 21h02

"A bala virou a cabeça dele". Assim a testemunha Wanderson dos Santos de Assis, 19, que presenciou a morte do menino Juan Moraes, em junho do ano passado, descreveu o momento no qual viu a vítima ser atingida por um projétil de fuzil disparado por um policial militar no bairro do Danon, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ).

O depoimento de Wanderson ocorre nesta terça-feira (24) na primeira audiência de instrução e julgamento sobre o caso, no Fórum de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

A testemunha afirmou à Justiça que tem receio em relação a possíveis tentativas de represália por parte dos PMs acusados do crime. Questionado em juízo se ele se incomodaria com a presença dos réus durante o depoimento, e o jovem solicitou que os PMs se retirassem do tribunal da 4ª Vara Criminal de Nova Iguaçu. "Meu temor é o que eles podem fazer", afirmou a testemunha.

Questionado pelo defensor público Antônio Carlos de Oliveira, representente do cabo Edilberto Barros do Nascimento, um dos acusados, sobre os motivos pelos quais a testemunha não se sentiria confortável na presença dos réus, Wanderson se limitou a responder que o temor existe em razão dos "fatos em si". O rapaz presta depoimento com um boné e óculos escuros a fim de dificultar a sua identificação. O juiz da 4ª Vara Criminal proibiu qualquer tipo de registro fotográfico ou videográfico durante a audiência.

Não satisfeitos com a resposta do jovem, os advogados de defesa tentaram argumentar que a não presença dos réus durante o depoimento seria inconstitucional. "Todos da defesa se manifestam contrários à retirada dos acusados. (...) De modo que o temor reverencial, como presunção de que algo possa acontecer, não é causa concreta para afastar a garantia constitucional, sob pena de cerceamento de defesa e clara violação do devido processo penal", afirmou o defensor público. Já a promotora Júlia Costa da Silva Jardim citou a "reforma constitucionalizadora do código penal" e o artigo 217 do CPP (Código de Processo Penal) para legitimar a solicitação do depoente.

Após ouvir os dois lados, o juiz Márcio Alexandre Pacheco da Silva deferiu a solicitação de Wanderson, e os policiais militares foram obrigados a se retirar.

O jovem disse ao juiz da 4ª Vara Criminal de Nova Iguaçu, Márcio Alexandre Pacheco da Silva, que ele, Juan e o irmão da vítima fatal, Wesley Felipe Moraes dos Santos, estavam caminhando por um beco da comunidade quando foi possível ouvir os primeiros tiros. Na versão da testemunha, Juan caminhava à frente dos demais e foi o primeiro a ser alvejado. Segundo Wanderson, mais de 30 tiros foram disparados naquela noite.

"Estávamos perto de um portão quando começou o tiroteio. Os tiros vinham em nossa direção. O Juan andava na frente, eu estava no meio e o Wesley, atrás. Nesse momento, eu vi quando o Juan caiu na minha frente, a bala virou a cabeça dele, só o vi caindo com a cabeça bem perto de um muro. Pelo que eu vi, parece que ele foi alvejado no pescoço. A cabeça dele se deslocou de forma brusca, virando-se para o lado. Em seguida, eu entrei em desespero", explicou a testemunha.

Wanderson afirmou à Justiça que retornou pelo mesmo caminho no qual o grupo entrou no beco, porém não conseguia correr em função das dores. Algum tempo depois, já refugiado em local mais distante da cena do crime, descobriu que havia sido baleado.

"Os tiros não paravam e eu não conseguia correr. Me joguei no chão e comecei a rastejar. Nesse momento, ainda ouvi alguns disparos, sendo que um passou bem perto da minha cabeça. Continuei rastejando até que eles parassem de atirar. Mesmo mancando, consegui caminhar por um terreno que descia. Saí em uma rua e deitei ali mesmo, pois já não conseguia mais me mexer. Foi quando eu consegui ligar para o meu pai e pedir ajuda", disse. "Eu falei para ele: 'Pai, vem aqui ou então eu vou morrer. Estou sangrando muito'. Uma senhora que mora em frente a essa rua me ajudou", completou a testemunha.

Segundo Wanderson, o fato de ter visto Juan ser baleado fez com que ele perdesse o controle. "Eu entrei em desespero. Os tiros não paravam. Eram muitos tiros, trinta ou mais. Era uma carreira de tiros. Eu me virei para poder sair do beco e senti a minha perna esquerda dormente", disse.

Na versão da testemunha, ele foi socorrido pelo irmão, Francisco dos Santos de Assis, que foi ao local de carro e o encaminhou para a Unidade de Pronto Atendimento de Cabuçu, também na Baixada Fluminense. "Quando cheguei lá, soube que o Wesley já estava na UPA. Fui atendido pelos médicos, e depois transferido em uma ambulância para o hospital da Posse. O Wesley chegou a perguntar pelo irmão, e eu disse que ele tinha sido alvejado no beco", afirmou.

Wanderson disse ter visto policiais militares andando pelos corredores do hospital da Posse, onde foi socorrido. "Acho que eram os acusados", respondeu ele ao ser indagado pela representante do Ministério Público. A bala de fuzil que atingiu a vítima entrou pela coluna e saiu pela bacia, segundo o próprio. "Fiquei três meses sem andar", afirmou.

A testemunha revelou ter ficado algemado durante nove dias no período em que ficou em recuperação no hospital. Questionado sobre os motivos pelos quais foi detido sob custódia, Wanderson afirmou que os PMs tentaram incriminá-lo por tráfico de drogas e posse de arma.

"Pelo menos foi o que eu soube pelos jornais. Os PMs e o delegado [cujo nome não foi mencionado] tentaram me incriminar. Falaram que eu estava com armas, bomba, rádio, e que eu resisti à voz de prisão. Também soube pelo jornais que a versão dos policiais era a de que eles tinham me socorrido", explicou.

Audiência

A Justiça pretende ouvir ainda hoje oito das 50 testemunhas que foram intimadas a depor. Três foram dispensados pelo Ministério Público e uma mulher foi liberada após passar mal pouco antes do começo da audiência de instrução e julgamento desta terça-feira (24) --a primeira de uma série de quatro sessões já agendadas. As próximas acontecerão nos dias 15, 22 e 27 de março, no Fórum de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Os acusados --os cabos Edilberto Barros do Nascimento e Rubens da Silva, e os sargentos Isaías Souza do Carmo e Ubirani Soares-- respodem a dois homicídios duplamente qualificados (pelas mortes de Juan e do adolescente Igor de Souza Afonso, 17, que supostamente teria ligações com o narcotráfico local), duas tentativas de homicídio duplamente qualificado (o irmão de Juan, Wesley Moraes, e a testemunha Wanderson dos Santos de Assis, 19, também baleados) e ocultação de cadáver (de Juan).

Primeira testemunha

Os trabalhos da audiência de instrução e julgamento começaram com o depoimento de Adriana Soares de Souza, mãe de Igor de Souza Afonso, 17, que também foi morto durante a operação policial na comunidade do Danon, em 20 de junho do ano passado.

A testemunha se mostrou confusa em vários momentos e chegou a irritar o juiz Márcio Alexandre Pacheco da Silva. Ela afirmou que estava em casa na noite do crime e soube da morte do filho por um outro parente, que reconheceu o corpo do jovem no hospital da Posse, na Baixada Fluminense.

Adriana admitiu que o filho já tinha sido flagrado consumindo drogas, porém nunca soube de qualquer tipo de envolvimento da vítima com o narcotráfico --na versão dos PMs acusados, Igor de Souza Afonso seria um traficante da região.

A mãe do rapaz confirmou que ouviu "muitos tiros" na noite do crime, e que ouviu comentários de vizinhos após a operação da PM de que o filho teria sido visto na companhia de outros criminosos. Indagada pela defesa de um dos PMs, Adriana não soube precisar quantos tiros ouviu.

Entenda o caso

Juan Moraes foi assassinado no dia 20 de junho durante uma ação do 20º BPM (Mesquita) para reprimir o tráfico de drogas na comunidade do Danon. Além do garoto de 11 anos, o adolescente Igor de Souza Afonso, 17, também morreu no decorrer da operação. Segundo a Polícia Militar, ele teria ligações com o narcotráfico local.

Outros dois jovens foram baleados --Wesley Moraes, irmão de Juan, e o jovem Wanderson dos Santos Assis--, mas sobreviveram. Ambos foram cadastrados no programa de proteção à testemunha em razão das inúmeras ameaças de morte. "Os denunciados consciente e voluntariamente efetuaram disparos de arma de fogo contra as vítimas Juan, Wesley, Igor e Wanderson, causando-lhes lesões corporais comprovadas posteriormente pela perícia. Os denunciados iniciaram ainda crime de homicídio que não se consumou contra Wanderson e Wesley", afirma a denúncia do MP.

De acordo com o Ministério Público, o cabo Rubens da Silva e o sargento Ubirani Soares deram cobertura para que os outros dois PMs efetuassem os disparos. Os quatro agentes chegaram à comunidade na viatura 521177 do 20º BPM (Mesquita), e os dois executores se esconderam em uma mata próxima a fim de surpreender as vítimas. Após o crime, os acusados ainda tentaram "mascarar o confronto balístico", segundo o MP.

O corpo de Juan só foi localizado após 30 dias por meio de informações anônimas passadas por moradores de Belford Roxo a uma rádio carioca. As investigações causaram divergências entre as polícias Civil e Militar do Rio. Enquanto a Civil apurava a culpabilidade dos policiais militares que teriam participado de um possível tiroteio forjado e tentado ocultar o cadáver da vítima, a Corregedoria Interna da PM trabalhava com a hipótese de que Juan teria sido morto por traficantes do Danon.