Topo

Acidente com césio 137 em Goiânia completa 25 anos; vítimas relatam preconceito e abandono

Rafhael Borges

Do UOL, em Goiânia

13/09/2012 06h00

O maior acidente radioativo em área urbana do mundo com o césio 137, ocorrido em 13 de setembro de 1987, em Goiânia, completa 25 anos nesta quinta-feira com muitas feridas ainda abertas. Preconceito, omissão do Estado e dor são os principais relatos das vítimas, que perderam parentes, amigos e, muitas delas, a vontade de continuar vivendo.

  • Arquivo pessoal

    Odesson Ferreira diz que o acidente continua

Cerca de 50 pessoas ainda convivem com as marcas físicas deixadas pela tragédia. Odesson Alves Ferreira, presidente da Associação das Vítimas do Césio, conta que todos são discriminados até hoje. “Para nós, o acidente continua acontecendo. Tem gente que tem a capacidade de perguntar se nós brilhamos à noite."

Assim como ele, muitos dos atingidos deixaram de receber assistência médica integral e até medicamentos indicados. O diretor-geral do Centro de Assistência aos Radioacidentados (Cara), André Luiz de Souza, afirma que a unidade está bem estruturada, apesar de sofrer com deficit de remédios. Segundo ele, a esperança é de que o fundo de saúde do Estado seja aprovado, e, com isso os procedimentos sejam desburocratizados.

O centro possui 1.015 cadastros de pessoas que tiveram algum contato com a radiação. A maioria, aproximadamente 80%, pertence ao chamado grupo 3, de pessoas que trabalharam na descontaminação e atendimento aos afetados diretamente pelo acidente. Mas atualmente, segundo relatos do representante das vítimas do césio 137, nem os pacientes do grupo 1 recebem tratamento adequado. 

Reveja reportagem de 2007 sobre 20 anos do acidente em Goiás

Doenças

O presidente da associação das vítimas relata ainda que pessoas afetadas pela radioatividade desenvolveram câncer, principalmente leucemia e de mama, com o passar dos anos. Especialistas na área não confirmam a relação da doença com a exposição, e dizem que os estudos são superficiais, pois contam apenas com relatos de pacientes.

O médico José Ferreira, especialista no cuidado de vítimas do césio 137, conta que depois de todos esses anos de acompanhamento, em nenhum momento essas pessoas apresentaram riscos. Ele lembra que a população como um todo era discriminada, e que esse sempre foi o pior dos males. “Muitos hotéis no Brasil, quando viam carros com placas de Goiânia, não recebiam os hóspedes. E nas ruas ainda tem gente que não entende.”

Muitas pessoas ainda lutam para receber pensão em decorrência do acidente radioativo, mas apenas 468 recebem um salário mínimo (R$ 622) do Estado. Destas, 249 acumulam pensão da União. O Estado de Goiás foi condenado a pagar pensão vitalícia a todas as vítimas em 1996, mas algumas ainda não recebem o benefício.

Em 2011, dois adultos e uma menor de idade pediram na Justiça o reconhecimento da qualidade de vítimas do acidente e de todos seus dependentes até a terceira geração. O juiz federal da 2ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás, Jesus Crisóstomos, acatou os argumentos da AGU (Advocacia Geral da União) e decidiu que a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) não é responsável por responder a ação. O órgão mede, a cada três meses, a radiação na região do acidente.

  • Arquivo pessoal

    Leide Ferreira quis "brilhar no escuro"

Defesa das vítimas

O Ministério Público de Goiás passou a atuar com maior força a partir de 2002, quando foram reconhecidas novas vítimas do acidente de 1987. De acordo com o promotor Marcus Antônio Ferreira Alves, policiais militares, bombeiros e outros servidores públicos que trabalharam no socorro e limpeza do local não existiam como vítimas. “Alguém tinha de fazer o trabalho, e foram essas pessoas.”

Só que, durante 15 anos, o grupo de aproximadamente 900 pessoas permaneceu ignorado pelo poder público. Alguns dos policiais que desenvolveram doenças posteriores ao incidente eram chamados de loucos, pois a maioria das pessoas não acreditava que, depois de todo esse tempo, pudessem aparecer doenças relativas à exposição radioativa, relata o promotor.

Alves disse à reportagem do UOL que uma senhora que era gari ganhava um “banho de vinagre no final do dia” e era dispensada. A mulher morreu, pouco antes de receber a pensão à qual tinha direito, com 25 tumores no cérebro. Casos como o desta trabalhadora confirmaram o que o Ministério da Saúde já suspeitava. Foi então que o Ministério da Saúde expediu uma Nota Técnica relatando o aumento de casos de câncer em Goiânia, determinando uma série de medidas a serem tomadas, e inclusão desses servidores nos programas de tratamento aos acidentados do césio 137.

Atualmente, o Ministério Público luta pela efetivação de um centro de referência para tratamento e pesquisas do acidente radiológico. O promotor diz acreditar que o interesse nos estudos e no acompanhamento dos doentes vai além da simples entrega de remédios. “O mundo inteiro quer saber como evoluem pessoas atingidas por acidentes radioativos como o de Goiânia, e isso não acontece de maneira adequada.” Uma ação vai ser apresentada nos próximos dias pedindo providências ao Estado e à União.

O acidente

Na manhã de 13 de setembro de 1987, um domingo, os catadores de materiais recicláveis Kardec, Wagner e Roberto foram ao antigo Instituto Goiano de Radiologia, abandonado na região central de Goiânia, e levaram um aparelho radiológico de mais de 100 kg, de onde seriam retirados chumbo e outros elementos. Já no primeiro dia, depois de abrirem a cápsula, os dois começaram a apresentar sintomas da radiação, mas não procuraram ajuda.

Cinco dias depois, parte do equipamento foi levada para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira, na rua 57, no antigo bairro Popular. Dentre as peças estava a cápsula do césio 137, já violada. Ele chegou a revender parte do objeto para outro ferro-velho. Encantado com o brilho azul, também levou o material para dentro de casa.

A mulher de Devair, Maria Gabriela Ferreira, e outros parentes também começaram a apresentar sintomas de contaminação. A mulher, com ajuda de um amigo, levou a cápsula de 22 kg em um ônibus do transporte coletivo para a Vigilância Sanitária. Foi então que, no dia 29 setembro, o caso veio a conhecimento público.

  • Divulgação MP/GO

    Para Alves, ajuda precisa ir além de remédios

Ivo Alves Ferreira, irmão do catador, levou para sua casa uma porção do césio e mostrou para toda a família. A filha mais nova de Ivo, Leide das Neves Ferreira, de seis anos, virou o símbolo da tragédia. Segundo os relatos da época, a menina espalhou césio por todo o corpo, para brilhar no escuro, e ingeriu o pó juntamente com a comida. A mãe da menina, Lourdes das Neves Ferreira, se diz culpada pela morte da filha. “Se eu não tivesse ido tomar banho, talvez ela não tivesse colocado na boca.”

Leide chegou a ser levada para tratamento no Rio de Janeiro, mas não resistiu e morreu juntamente com outras três vítimas (Maria Gabriela e dois trabalhadores do ferro-velho). No enterro da criança e da tia, em Goiânia, muitos protestos. Moradores da cidade jogavam pedras no caixão e tentavam impedir que ela fosse enterrada em um cemitério local, com medo da contaminação. A cena é mostrada no premiado documentário de Luiz Eduardo Jorge sobre o acidente: “Césio 137, o brilho da morte”.

O nome é uma referência ao que dizia Devair, segundo relato dos familiares. “Eu me apaixonei pelo brilho da morte”. Ele morreu em 1994 de insuficiência hepática. O irmão, Ivo, em 2003. Em nenhuma das mortes foi comprovada relação com o contato com o césio 137. A Associação de Vítima do Césio 137 estima que mais de 6.000 pessoas foram atingidas pela radiação, e que pelo menos 60 já morreram em decorrência do acidente. Número refutado pelo poder público. 

Lixo radioativo

A remoção do lixo produzido pelo acidente com o césio 137 foi uma das partes mais polêmicas da tragédia. Nenhum município queria receber os dejetos, que deveriam sair do centro de Goiânia o mais rápido possível. Várias áreas foram pretendidas, enquanto manifestações surgiam em todo o Brasil para que o lixo não fosse levado para esses locais.

Uma manobra que envolveu cerca de 300 policiais e uma artimanha do governo para driblar manifestantes, o lixo foi enfim levado para a cidade de Abadia de Goiás, a menos de 30 quilômetros da capital. O local abriga cerca de 6.000 toneladas de rejeitos do césio 137. É considerado um depósito definitivo que armazena lixo nuclear de baixa e média intensidade até 2018.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear tenta ampliar o depósito em Goiás. Assim, o local passaria a receber lixo nuclear proveniente das usinas Angra 1 e 2, do Rio de Janeiro, e ganharia royalties e outros benefícios. No ano passado a ideia foi rechaçada pelo governo estadual e pela bancada de parlamentares no Congresso Nacional.