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"Não posso comprar nem um quilo de feijão", diz moradora sobre reconstruir casa após incêndio

Fabiana Nanô

Do UOL, em São Paulo

25/09/2012 10h00

“Sou eu, minha filha, sou eu...” A voz e o olhar transtornados traduziam o sentimento da mulher de 45 anos que subia a rua de barro usando apenas um vestido e um par de havaianas. “Quem não tem nada, sou eu.”

Norma Geruza Camilo do Nascimento perdeu seu barraco de madeira em um incêndio ocorrido em 17 de agosto, na favela do Areão, bairro de Jaguaré, zona oeste de São Paulo. Na ocasião, 93 barracos foram consumidos pelo fogo. Pouco mais de um mês depois, a maioria das casas está sendo reconstruída pelos próprios moradores.

Norma não se enquadra neste rol. Ela e os quatro filhos -- Thaís, 21; Jonathans, 18; Tainá, 16; e Júlio, 15 -- estão recebendo abrigo provisório dentro do bar de um amigo, na própria favela, e não têm condições de reerguer o barraco. “Não estou podendo comprar mais nem um quilo de feijão. Não mesmo, vou mentir pra quê? Tá parado porque eu não tenho condição”, explica Norma, que está desempregada. “Não estou podendo trabalhar, porque não estou estabilizada.”

O mesmo se aplica às filhas. Tainá está grávida de sete meses e se prepara para receber um menino em breve. Já Thaís é mãe de três crianças -- de sete, cinco e dois anos -- e nos últimos dois anos se recuperou de um acidente de carro e do vício em crack. Foram os dois milagres da vida de Norma, diz ela, que agora aguarda o terceiro. “Quero construir o que é meu.”

Quatro vigas e um quadrado de tijolos encravados no solo cheio de destroços delimitam o local onde ficava sua casa havia 15 anos. Quem ajuda a reerguer o barraco de alvenaria é o filho mais velho, que trabalha desde os 14 anos e atualmente é funcionário em um depósito de material de construção, embora não tenha experiência como pedreiro. “A metade [do barraco] que está feita foi ele que fez, meu menino. Nunca mexeu em parede. Ainda saiu meio torta, mas ele foi botar a viga, ainda deu uma ajeitada”, conta Norma.

  • Fernando Donasci/UOL

    Norma posa para foto no local onde era o seu barraco, destruído pelo incêndio de agosto na favela do Areão, zona oeste de São Paulo. Ao lado, Thaís, 21, filha mais velha de Norma, e Sofia e Flávia, sobrinhas dela de 6 e 4 anos

Aos 20 anos, Danilo Wendel do Nascimento Ferreira, genro de Norma e companheiro de Tainá, também contribui para o sustento da família. Ele é ajudante-geral na Bunge, empresa de agronegócios e alimentos que possui uma franquia na região.

Norma não sabe especificar com clareza a causa do incêndio. Segundo ela, uma mulher, usuária de drogas, provocou o fogo. “Eu sei que, num desses negócios que ela estava fazendo, ela estava com uma vela, e a vela caiu no chão.”

Por outro lado, a lembrança do momento continua intacta na memória. “Foi do nada, foi rápido demais. Questão de segundos mesmo, nem de minutos. Foi coisa de filme, um terror. Ninguém pensava em salvar nada... uma cena daquela não quero ver nunca mais na minha vida.”

O único pertence que saiu ileso do fogo foi o computador de Tainá. Custou R$ 2.000, mas o valor sentimental é muito maior. “Fiquei com tanta dó que puxei de qualquer jeito. Mas está bom”, conforma-se Norma.

Conformidade também é a atitude tomada perante as autoridades públicas. Segundo ele, agentes da prefeitura estiveram presentes apenas no dia do fogo, para oferecer colchão, cobertas, produtos de higiene e cesta básica. Sem indenização ou ajuda, hoje Norma conta com a própria sorte e sabe traduzir este sentimento: “Agora está tudo fora do lugar.”

A vida depois do incêndio

Subindo pela escada estreita e antiga e virando à direita no corredor chega-se a um cômodo sem janelas, com uma cama, um pequeno banheiro, alguns móveis e eletrodomésticos. Todos doados por conhecidos, pois Lucélia Pereira Sobral perdeu tudo no primeiro incêndio que atingiu a favela do Moinho, localizada na região central de São Paulo, em 22 de dezembro de 2011. Na ocasião, 400 barracos foram destruídos.

“Foi muito rápido o fogo. Um momento que eu não desejo para ninguém. Mas graças a Deus estamos bem”, conta esta pernambucana de 24 anos, que veio para São Paulo com a família quando tinha 10. Hoje, é casada e tem dois filhos -- Max Fellype, 4, e Bernardo, 2 --, mas nunca deixou de lado a mãe e os cinco irmãos mais novos.

Na favela, moravam todos em barracos próximos, que o fogo consumiu. Desde março, vivem em uma pensão no centro da capital paulista. “Este quartinho é R$ 500 por mês, mas é melhor do que estar na rua com as crianças”, diz Lucélia, já excluindo planos de voltar para Moinho. “Não tem necessidade. A pessoa pensa que, quando sai de lá, não tem condições de pagar aluguel. Mas se for pensar assim, vai ficar sempre ali. Quando você sai, você sabe que tem condições de fazer isso, pagar aluguel e estar num canto melhor.”

E ela já faz planos para o futuro. “Saindo deste apartamento quero ir para o meu cantinho. Nem que seja pequenininho, mas que seja meu.” Para isso, conta com a ajuda a Prefeitura de São Paulo, que está construindo unidades habitacionais para ex-moradores da favela do Moinho atingidos pelos incêndios de dezembro de 2011 e de setembro de 2012.

  • Fernando Donasci/UOL

    Lucélia sorri para foto com o filho Bernardo na pensão onde moram, na região central de SP

As moradias, no entanto, ficam localizadas perto da ponte dos Remédios, na marginal Tietê, zona oeste da capital paulista. Além disso, apenas ex-moradores cadastrados podem entrar na lista de espera para conseguir uma unidade nos prédios, cujas obras estão atrasadas. “Já era para estar quase pronto, para entregar em outubro. Mas agora foi que começaram as obras. Para quando vai sair, não sei”, afirma Lucélia.

Enquanto isso, ela conta com o auxílio-aluguel da prefeitura, de R$ 450 por mês. A quantia, que não dá nem para pagar o aluguel, é complementada com o que ganha como manicure e cabeleireira e com o salário do marido, ajudante em um depósito de reciclagem. As crianças vão para a creche todos os dias.

Sobre as causas do incêndio de 2011, Lucélia é categórica em sua versão. “Falaram que foi uma moça que colocou fogo ali, mas ali não dá para ser só uma pessoa, não. Como uma pessoa vai tacar fogo em tudo e não se queimar, não sofrer nada ali dentro? Porque foi muito rápido o fogo, pegou tudo de uma vez. Não tinha como uma pessoa colocar [fogo] em tudo, em cada pontinho, e sair.”

Ela ainda conta que, hoje, não tem “mais nada” no local onde os 400 barracos foram queimados, e que outros moradores da favela recebem propostas da prefeitura para deixar as casas que restaram. “Eles estão tirando o pessoal, aos poucos, para terminar. O pessoal de debaixo do viaduto já está saindo.” (A conversa com Lucélia foi feita antes do segundo incêndio no Moinho, que atingiu barracos embaixo do viaduto Engenheiro Orlando Murgel.)

É também por este motivo implícito que Lucélia não volta para a favela. “Agora graças a Deus estamos numa situação bem melhor. Você sabe que bens materiais você consegue, o mais difícil é conseguir a vida.”

Outros casos

A favela do Moinho foi palco de dois incêndios em menos de um ano. Em dezembro do ano passado, o fogo começou em um prédio abandonado de quatro andares e foi provocado por uma mulher, que é usuária de drogas e está foragida, segundo a Polícia Civil. De acordo com o Corpo de Bombeiros, em menos de meia hora, o incêndio devastou um terço da comunidade, onde moravam cerca de 600 pessoas. O local afetado tinha 6.000 m². Duas pessoas morreram.

Em 17 de setembro, um novo incêndio atingiu 80 barracos embaixo do viaduto Orlando Murgel. Cerca de 300 pessoas ficaram desabrigadas e uma pessoa morreu. A Polícia Civil prendeu o acusado de causar o fogo, o travesti Fidelis Melo de Jesus, também usuário de drogas.

A área onde está a favela do Moinho vem sendo alvo de disputas judiciais entre a prefeitura e os moradores nos últimos anos. Enquanto a administração municipal tenta desapropriar a área e utilizá-la para outros fins, os moradores buscam conquistar o direito de permanecer no local.

No dia 3 de setembro, um incêndio de grandes proporções atingiu a favela morro do Piolho, na zona sul da capital paulista, deixando 285 famílias desabrigadas --o equivalente a cerca de 1.140 pessoas, segundo informações da Defesa Civil.

Quatro dias depois, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, declarou que o fogo pode ter sido intencional. "Lá existe até a suspeita de que o incêndio possa ter sido provocado, como, aliás, foi identificado em outros casos", disse.

Por sua vez, o Ministério Público de São Paulo investiga se a série de incêndios ocorridos desde janeiro deste ano em favelas da capital paulista -- são 34, segundo a Defesa Civil -- tem relação com o interesse do setor privado ou do setor público em construir nas áreas de entorno dessas comunidades.