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"Sou um sobrevivente do Carandiru", relata ex-detento que ajudou a carregar corpos

Sidney Sales participou de evento em São Paulo que lembrou os 20 anos do episódio que deixou 111 presos mortos em 2 de outubro de 1992 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Sidney Sales participou de evento em São Paulo que lembrou os 20 anos do episódio que deixou 111 presos mortos em 2 de outubro de 1992 Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Elaine Patricia Cruz

Da Agência Brasil, em Brasília

01/10/2012 11h38

“Sou um sobrevivente daquele massacre no Carandiru”, conta Sidney Francisco Sales, 45, ex-detento da Casa de Detenção de São Paulo. Ele acredita que escapou da execução pelos policiais por um milagre. Sales estava preso há quatro anos e, no dia do massacre, estava em uma das celas no quinto andar do Pavilhão 9.

“Para as pessoas que sobreviveram ali, creio eu, milagrosamente, [aquele dia] estará sempre marcado em sua memória. Pior ainda é para aquelas pessoas que perderam seus entes queridos. Essas sim deveriam receber subsídios e ter a atenção do Estado e serem respeitadas”, falou à "Agência Brasil".

Sales tinha 19 anos quando foi preso em flagrante por roubo de carga de caminhão, em setembro de 1989. No dia 2 de outubro de 1992, testemunhou o que ocorreu no Carandiru e até ajudou a carregar alguns dos corpos dos detentos para o caminhão que faria o transporte até o IML (Instituto Médico-Legal).

Anos depois, ao sair do Carandiru, Sales voltou ao mundo do crime. “Quebrei o voto que a minha mãe tinha feito. Quando fui para a porta do mercado [de trabalho], exigia-se a qualificação. E eu, queimado pelos raios solares (Sales é negro) e sem nenhuma qualificação para o mercado, a sociedade não me quis. E eu não quis a sociedade”, contou.

O retorno ao crime foi marcado por outra tragédia pessoal. “Foi então que, num confronto [com a polícia], tomei diversos tiros e fiquei paraplégico. Aí a situação piorou muito mais. Passei a usar droga demasiadamente e me tornei dependente químico. Fui abordado [pelos policiais] e preso novamente com uma quantia de drogas”, lembrou. Na época, Sales chegava a consumir 50 gramas de crack por dia.

Foi então que conheceu os grupos religiosos do sistema prisional e resolveu se dedicar a trabalhos sociais. “Hoje eu sou um pastor evangélico e cuido de três abrigos. Trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social e pessoal e com pessoas que fazem uso de substância psicotrópica e álcool”, disse. Cerca de 120 pessoas são atendidas nesses abrigos. Sales também é autor do livro Paraíso Carandiru - A História do Homem Que, Levado ao Inferno, Encontrou a Porta do Céu, lançado em novembro de 2007.

No lançamento de um manifesto contra os fins dos massacres no país, ocorrido na última sexta-feira (28), no Sindicato dos Jornalistas, em São Paulo, Sales narrou detalhadamente o que ocorreu.

“Naquele dia, nos encontrávamos jogando bola. Foi quando houve um comunicado de que havia se iniciado uma rebelião no andar. Ao subir, duas pessoas já se encontravam encapuzadas, com estiletes, facas, e foi dado que eles haviam se confrontado. Um ficou gravemente ferido e se evadiu do pavilhão e aí começou a aglomeração dos outros detentos, o que fez com que os agentes penitenciários também se evadissem do pavilhão”, explicou.

Segundo o sobrevivente, os detentos começaram então a colocar fogo em setores como a marcenaria. “O fogo começou a se alastrar e, então, houve aquele monte de pessoas subindo e descendo, falando que havia sido iniciada a rebelião”, relatou.  Quando os detentos souberam que a tropa de choque da Polícia Militar havia chegado à Casa de Detenção, o pânico “ficou ainda maior”.

“Houve, sim, uma negociação, que não teve muito sucesso. A tropa de choque invadiu e começou então esse episódio e o massacre. Eu me encontrava no quinto andar e me lembrei de uma carta que uma senhora tinha me trazido com o Salmo 91. Entrei na minha cela, na 504E e naquele momento já tinham diversas pessoas ajoelhadas, clamando por seu Deus”, descreveu.

Logo depois, contou que um policial entrou na cela e pediu para que todos tirassem a roupa e saíssem nus, para fora. “Descemos até o primeiro andar e todos tinham ficado sentados ao chão, com a cabeça entre as pernas, cobrindo a cabeça com os braços, e ali, por volta de umas 3 horas [da manhã], os policiais mandaram que os detentos retornassem para suas celas”.

Quando ele se dirigia para a cela, um policial o chamou com um toque no ombro. “Quando me virei e achei que ia tirar a minha vida, ele me pediu para ajudar a carregar alguns cadáveres. Eu ajudei a carregar, aproximadamente, 35 [corpos]”.

Depois disso, Sales tentou retornar novamente para a cela. No entanto, quando chegou ao terceiro andar, um policial pediu para que retirasse um cadáver que estava por ali, na cela 313E. “Era um indivíduo que estava nos ajudando a carregar os cadáveres. Creio que estavam [policiais militares] dando queima de arquivo em algumas pessoas [assassinando testemunhas]. Quando tive esse entendimento, soltei aquele cadáver e subi para o quarto andar”, contou.

Sales disse que resolveu prosseguir até o quinto andar, onde se deparou com três policiais militares que apontaram suas armas. “Falei que o tenente tinha mandado me trancar porque eu já tinha ajudado a carregar todos os cadáveres”, explicou. Segundo o ex-detento, um dos policiais estava com um molho de chave na mão e disse: “Não sei qual é a chave desse cadeado. A chave que eu escolher vou bater no cadeado. Se o cadeado abrir, você entra. Se não abrir, vamos te executar agora”.

Nesse momento, segundo Sales, “lembrei do Salmo 91 e, quando ele bateu o cadeado e o torceu [ele imita o barulho do cadeado se abrindo], o cadeado abriu e, milagrosamente, entrei naquela cela”. Logo depois do massacre, Sales foi transferido para a penitenciária de Mirandópolis, no interior do estado.