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Análise: em Goiás, caminhoneiros, turistas e produtores agrícolas protestam contra estradas esburacadas

Manifestantes se reúnem na avenida Goiás, região central de Goiânia (GO), durante protesto reivindicando melhorias na saúde, transporte, educação e por um país sem corrupção, na noite de 20 de junho - Randes Nunes/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Manifestantes se reúnem na avenida Goiás, região central de Goiânia (GO), durante protesto reivindicando melhorias na saúde, transporte, educação e por um país sem corrupção, na noite de 20 de junho Imagem: Randes Nunes/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Pedro Célio Alves Borges *

Especial para o UOL

03/07/2013 07h00

As manifestações das últimas semanas fugiram ao padrão costumeiro dos protestos políticos. Nas grandes cidades o que vimos foi um conglomerado de insatisfações que, mesmo sem se articularem em projetos ou agendas articuladas ou afuniladas, misturaram-se nas ruas de forma inédita. Bandeiras de protesto em âmbito nacionais entraram na picada aberta por reivindicações locais, para melhorar o transporte público, diminuir preço de passagens que desde o início sabia-se serem abusivos. Elas irmanaram-se como nunca antes na história deste país e nem por isso os gritos foram abafados ou ficaram ininteligíveis. Daí a surpresa na forma.

 

Outra novidade – mais ligada a conteúdo – mostrou-se no alastramento da capilaridade das ações. Em Goiás as ruas foram tomadas em mais de 20 municípios, cidades pequenas mesmo, algumas delas de maneira impensável até então.  Isso quer dizer, no mínimo, que a base social original (ou detonadora) dos protestos, típico das grandes cidades e vinculado à juventude, tem sede geográfica no país e qualifica-se transversalmente na sociedade de cima abaixo. A ideia é de que, na exaustão da esperança e da paciência, as pessoas admitem ir às ruas dizer os seus limites e seus motivos, morais, econômicos ou políticos.

Houve cartazes entrecruzando temas de denúncias a exigências, num cardápio para lembrar o Stanislaw Ponte Preta: da forma do prefeito decidir sobre o lixão de uma cidade pequena ao autoritarismo dos professores em um colégio; da necessidade de sinalizar melhor uma estrada que passa dentro da cidade, para diminuir os acidentes com morte, à agressão do governador aos professores, pois em retirara vantagens na carreira e salários. E muita gente pouco interessada nas instituições já debatia com versatilidade o absurdo da PEC-37.

A insatisfação generalizada foi um pano de fundo, mas o deliberado distanciamento político partidário que tomou conta das ruas foi o que, de certa forma, mais gerou perplexidade dos analistas. Isto é, caso os movimentos não tragam reivindicações e motivos claros nem se apresentem unificados ou articulados para um rumo definido, ao contestarem as autoridades eles acabam perturbando também a cobertura de imprensa e os acadêmicos. Para os nossos modelos de leitura da realidade fica mais fácil acusarmos os manifestantes de não terem foco e de introduzem o imponderável no cenário político. Pode ser, mas dizer assim mais tergiversa do que explica, sem sair das preliminares nem avançar para diagnósticos e compreensões necessárias. Na impossibilidade de substituir as imprevisíveis vozes e formas de ação, cabe adequar os nossos modelos de pensar a vida social e suas instituições.

Mapa dos protestos

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Creio que sobretudo as autoridades de governo, mas também as elites intelectuais, podem admitir primeiramente as vantagens de se aproximarem um pouco mais da população e aprenderem a interagir com suas demandas e palavreado habituais. Quem hoje usar um olhar retrospectivo dos instantes em que os chamados sentimentos populares se deixaram perceber irá ressaltar, com mais cuidado, os acúmulos de indignação que chegaram à Lei da Ficha Limpa. Poderá também notar que a via crucis dos brasileiros, que vinha antes do PT no poder, de violência policial, insegurança geral nas cidades e impostos abusivos (com alguns incrementos) em vez de diminuir, prosseguiu. Do mesmo modo, a grita geral de caminhoneiros, turistas e produtores agrícolas contra a calamidade das estradas esburacadas. Será impossível não enxergar a sequência de escândalos escabrosos, do mensalão aos objetos da operação Monte Carlo, que vicejou lado a lado com associações de palavras certamente entre as mais escritas e ouvidas - impunidade e privilégios, negociatas e favorecimentos a investidores sabidamente próximos dos palácios.

É bem verdade que modificações significativas em sentido contrário também estão em curso na expansão do consumo popular, das políticas de inclusão, fortalecimento do ensino superior, etc. Por isso, talvez os clamores gerados contra o quadro de decepções ficou empanado e refém de eufemismos e desdém por parte dos que por ofício estar atentos. Porém, o que não cabe e soa ingênuo é a atitude de congelar-se na perplexidade, como se as manifestações tivessem vindo como um raio em céu azul. Efetivamente, não foi assim.

Dá prá ver que não é só a pobreza que mais de uma vez indicou insatisfação, mas vários segmentos de cidadãos remediados e também de gente fina já falavam com indignação e desejo de mudanças. Estabeleceu-se no país um quadro em que o chamado cidadão comum, aquele que não se dedica à política ou a outro tipo de disputa hegemônica (incluindo a da produção cultural), foi para as ruas, independente das (e principalmente contra as) conhecidas lideranças e práticas políticas que ele consegue identificar nos eixos do sistema político.

Um desafio a ser decifrado está em dimensionar as clivagens entre o teor dos protestos, contra as instituições e contra os políticos. Normalmente, as pesquisas de opinião trazem ambos conjugados, num único universo de rejeição e condenação moral, na lanterna das listas de apreço às instituições da democracia.

O caráter político dos movimentos, que tanto se está procurando, revela-se na sua pauta e nas formas de ação organizada que ele assume, mostrando quem os dirige e que estratégia se propõe. Mas revela-se especialmente pela condição que ele adquire, em seguida à sua deflagração, de alterar o panorama político por meio da força de negociação que se conseguiu agrupar para, inclusive projetar os próximos passos. Está aí uma dos incômodos que a atual onde de manifestações tem causado às cabeças sinceramente preocupadas.

Como detectar os componentes de negociação e de satisfação dos manifestantes, para, inclusive apontar a continuidade dos que se engajara? De fato, sem os rumos explicitamente colocados, é difícil dizer que resultados advirão. Ademais de abaixar o preço das passagens e de ter forçado a presidente a propor um plebiscito para desencravar a reforma política, os resultados podem ser benéficos ou não para a democracia.

A questão então vincula-se, a partir da eclosão e do reconhecimento de seu mérito como vitalidade crítica da cidadania, a atingir as capacidades de afunilamento e traduzir compromissos com a democracia. Uma coisa é certa: desprezando-se os atuais caminhos dados à democracia e às suas instituições, cabe agora redesenhar o sistema político. Ou reinventá-lo, para usar uma expressão dos nossos dias.

* Pedro Célio Alves Borges é professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG