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"Bandido bom é bandido morto"? Nova polícia? Veja análise do coronel da PM

O tenente-coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo Adilson Paes de Souza critica a violência policial - Junior Lago/UOL
O tenente-coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo Adilson Paes de Souza critica a violência policial Imagem: Junior Lago/UOL

Fabiana Maranhão

Do UOL, em São Paulo

09/04/2014 06h00

O tenente-coronel Adilson Paes de Souza, da Polícia Militar de São Paulo, estava prestes a ir para a reserva (aposentar-se) quando decidiu mergulhar em um tema que o incomodou durante os 30 anos em que esteve na corporação: a violência policial. “Eu queria saber por que a PM apresentava índices altos de violência em comparação com todas as polícias do mundo. Por que números elevados?”, se questionava.

Mestre pela USP (Universidade de São Paulo), Paes de Souza concluiu, entre pesquisas e entrevistas, que a violência praticada pela polícia atualmente tem sua origem na ditadura militar (1964-1985). A dissertação do mestrado deu origem ao livro “O Guardião da Cidade”.

Em uma entrevista ao UOL em sua casa, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, o tenente-coronel fala sobre resquícios do regime autoritário nos dias de hoje, como a doutrina da Segurança Nacional, o AI-5 (Ato Institucional nº5) e os ‘autos de resistência’ e propôe soluções como o controle externo e a polêmica questão da desmilitarização.

Cidadão como potencial inimigo

No livro, constam quatro entrevistas, duas eu fiz pessoalmente e duas eu coletei de um outro livro. Todos eles são ex-policiais militares, foram presos pela prática de homicídio caracterizado como execuções sumárias, cumpriram pena e foram expulsos da corporação. Um deles falou: trabalhar na rua é estar num campo de batalha e num campo de batalha você trabalha com a questão do inimigo e não peça para eu interceder pela vida do inimigo. Ou eu elimino ele ou ele me elimina. 

Quando eles eram presos eles não entendiam porque pensavam que estavam fazendo o bem para a sociedade. ‘Por que a sociedade agora quer me ver preso? Me taxa de uma mau policial militar ou um monstro? Eu estava protegendo a sociedade, limpando a sociedade dos maus elementos. Por isso que eu estava eliminando sumariamente.’ É a fala dos policiais militares.

Eu não sei dizer se a polícia encara toda a população como inimiga. Mas eu creio que determinadas pessoas, com determinado histórico de vida, que vivem em determinadas regiões, onde o índice de criminalidade é alto, são tidas como potenciais inimigos da sociedade. Existe a lógica do conflito, do confronto.

Doutrina da Segurança Nacional

Adolfo Pérez Esquivel, que foi prêmio Nobel da Paz, começou a falar, na década de 80, que em dado momento na América Latina, aportou uma doutrina que, entre aspas, palavras dele, ‘aviltou corações e mentes’, e determinados segmentos da população começaram a ser encarados como inimigos do Estado. Nós demos o nome a essa doutrina, segundo ele falou, de doutrina de Segurança Nacional, que contaminou todo o sistema educacional da América Latina, doutrina essa patrocinada pelos Estados Unidos.

Outros autores falam que o que era inimigo lá atrás [na ditadura] apenas mudou com o processo de redemocratização do país. O subversivo, terrorista, militante de esquerda, que era o inimigo na nação e devia ser combatido e até mesmo eliminado. Com a dita redemocratização do país, o inimigo passou, não é mais o subversivo, passou a ser determinadas pessoas de determinadas classes sociais que habitavam determinadas regiões do país ou determinadas regiões das grandes metrópoles. Houve essa transferência do inimigo interno.

‘Bandido bom é bandido morto’

Nós temos presente hoje o discurso que ‘bandido bom é bandido morto’. Isso é um eco da doutrina de Segurança Nacional. Em uma democracia não se tem de conceber o discurso do inimigo interno, está errado. Então todo mundo é bonzinho em uma democracia? O mundo não é cheio de pessoas boazinhas, não vamos ser ingênuos. Nossa sociedade é violenta, mas não é traçando o discurso de que existem inimigos a serem combatidos que nós vamos resolver a violência porque nós estaremos gerando mais violência.

Sistema de segurança pública

O sistema de segurança pública existente na Constituição de 1988 é o mesmo sistema de segurança pública existente no período militar. Não houve mudanças significativas. As mudanças que houveram foi ampliar o rol de polícias. Se eu tinha polícia civil, polícia militar, polícia federal, no período militar, com a Constituição de 1988, que é tida como o marco da redemocratização do país, eu tenho mais duas polícias: a rodoviária e ferroviária federal e as guardas municipais. Essa foi a mudança significativa. Então, o sistema de segurança pública que existe até hoje é o sistema concebido na ditadura. Isso tem de mudar.

Manifestações

Lá nas manifestações de junho de 2013 e depois, se você visse um filme das repressões nas ruas, a atuação do efetivo policial na rua, chamado de controle de distúrbio civil, se você fizer um recorte da atuação da polícia lá [na época da ditadura] e atuação aqui você não vê diferença nenhuma, você vê pouca diferença, talvez diferença de equipamento, a violência de determinados efetivos é a mesma. A falta de identificação dos agentes é a mesma, a falta de informação sobre quem agiu e praticou o abuso é a mesma, então não há uma mudança. Você tira a cor da foto você vai achar que está lendo uma matéria de 68, 69, 70.

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Jogue

A repressão dos manifestantes é dentro de uma ótica: estou combatendo os inimigos e não o direito à manifestação é sagrado, é essencial à democracia. Estou lá para assegurar o direito à manifestação seja exercido na sua plenitude e com responsabilidade. Existem grupos violentos? Identifique e puna nos rigores da lei para que as outras pessoas que estão na manifestação se sintam protegidas para exercer seu direito constitucional. Democracia sem manifestação ou manifestação só de apoio não é democracia, é democracia formal.

Aspectos do AI-5 hoje

Na Constituição de 1988, a Polícia Militar é definida como "militares dos Estados". A Constituição atribui status de militar estadual à PM e enquadra ela no rol de forças auxiliares e reserva do Exército. É a mesma denominação dada por um decreto que reorganizou as polícias militares e o Corpo de Bombeiros militares da época da ditadura, um decreto de 1969. O decreto que usou a expressão "forças auxiliares e reserva do Exército" é o 667 de 2 julho de 1969. Qual é o papel desse decreto? Organiza as policias militares e os corpos de bombeiros militares. E esse decreto 667 tem como fonte o AI-5. E está vigente até hoje.

Com a redemocratização do país, esse decreto permaneceu intacto, passou intacto pelo processo de redemocratização do país pela nova Constituição. O AI-5 é definido como o mais duro golpe na democracia. Nós temos aspectos dele vivos até hoje. Isso é mais uma prova de que não houve uma mudança significativa no sistema de Segurança Pública.

Auto de Resistência

A expressão "auto de resistência" foi criada em 1969 e está vigendo até hoje em vários Estados. Ela foi criada no dia 2 outubro de 1969 pela ordem de serviço 803 da então Superintendência de Polícia do Estado da Guanabara e essa ordem de serviço está valendo até hoje porque o "auto de resistência" é usado oficialmente. Foi criado em 1969 sob os auspícios e influência do AI-5, de 1968.

Como esse mecanismo sobrevive ao processo de redemocratização do país? Porque a doutrina de Segurança Nacional persiste. As consequências disso? O discurso do inimigo que deve ser combatido; o discurso de que toda ação policial ou do agente do Estado que envolve morte, a versão oficial é a única a verdadeira; o discurso de que a vítima do homicídio praticado pelo agente público é culpada pela sua própria morte.

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Especialistas indicam que existe desde o primeiro registro desses autos de resistência a preocupação em desqualificar da vítima e de responsabilizá-la pela sua própria morte. Comprar a ideia que toda versão policial é correta beira a falta de transparência e a prestação de conta. Não estou falando que toda intervenção policial é errada, mas existem intervenções policiais que na verdade não condizem com a versão dada pelos policiais. 

Existe uma investigação, é instaurada uma portaria de inquérito, é realizado o inquérito. Existe investigação, mas ela é falha, há ausência de testemunhas civis, onde predomina só a versão dos policiais militares, local de crime prejudicado, perícia não realizada ou realizada  de maneira inconclusiva que vai levar invariavelmente à absolvição por falta de provas ou até mesmo arquivamento e nem vai a julgamento.

Desmilitarização

Essa PEC 51, do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), me parece muito interessante e eu considero a mais adequada. Contudo ela por si só não vai produzir efeito. Você vai criar expectativa, mas não vai produzir efeito porque você precisa desmontar todos os mecanismos existem lá trás.

O que precisa fazer: uma busca, uma pesquisa pormenorizada em todos os campos, segurança pública, no ensino, que reflete na segurança pública. No bojo dessa PEC, fazer a revisão de todos os dispositivos gestados, criados na ditadura e vigentes até hoje porque senão eu crio uma estrutura, mas os dispositivos que informam seu funcionamento estão lá atrás e estão vigendo, que é o caso do "auto de resistência", esses decretos de 69, 70 que estão vigentes até hoje com base no AI-5.

Desmilitarização não é subordinar a polícia militar à polícia civil porque isso acirra os ânimos entre as corporações e prejudica o serviço e a população. Desmilitarização também não é só mudança de nome. É muito mais complexo. Eu me filio à corrente que desmilitarizar é criar uma nova polícia, compatível com os valores democráticos, dentro do estipulado pelo estado democrático de direito, uma organização que seus membros sejam efetivamente valorizados e que sejam majoritariamente reconhecidos pela população.