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Intimidade violada: mulheres são alvo de jogo criminoso de assédio

Andrea Dip

Da Agência Pública

19/12/2014 06h00

Da cantada de rua aos cursos de formação de predadores, mulheres são alvo de um jogo criminoso de assédio e se insurgem contra a tolerância cúmplice da sociedade

“É ofensivo, é inapropriado, é emocionalmente assustador mas é muito efetivo” propagandeia o suíço Julien Blanc sobre seu método para “pegar” mulheres no site em que vende os cursos de sedução que dá pelo mundo, por até US$ 3.600 por cabeça. Entre suas técnicas estão as de abordar mulheres desconhecidas nas ruas, bares ou casas noturnas pegando-as pelo pescoço e empurrando em direção aos seus genitais, pedir à mulher que “se ajoelhe, me chame de mestre e me implore por um beijo”, atacar sua autoestima, ignorar respostas negativas e fazer ofensas racistas.

Para quem não acompanhou o barulho nas redes sociais no último mês –ou já esqueceu–, Julien é um pick-up artist (PUA) ou “artista da pegação” (em uma tradução tosca como o termo merece) e faz parte de uma comunidade que cresce rapidamente no mundo todo, inspirada no livro “O Jogo” do jornalista Neil Strauss. De forma romanceada, Strauss conta como passou de tímido a sedutor usando técnicas de linguagem corporal, hipnose e abordagens invasivas inspiradas na programação neurolinguística e que teoricamente funcionam com qualquer mulher em qualquer lugar no mundo. É como uma combinação de botões que quando apertados no console de um videogame destravam um bônus –nesse caso uma mulher.

Blanc, que diz ter aprimorado as técnicas de PUA “deixando o jogo ainda mais forte” e chegou a divulgar em seu Twitter fotos pegando meninas pelo pescoço com a hashtag #ChokingGirlsAroundTheWorld, daria cursos em Florianópolis no começo do próximo ano. Mas uma petição no Avaaz com mais de 410 mil assinaturas (até o fechamento dessa reportagem) para que sua entrada fosse barrada no país chamou a atenção do Itamaraty, que declarou “já haver elementos suficientes para denegar visto de negócios para a realização de palestras, caso este venha a ser solicitado em Consulado ou Embaixada brasileira”. O suíço também teve sua entrada negada no Reino Unido e foi expulso da Austrália.

Ainda assim não há muito a comemorar. É só digitar a sigla PUA em um site de buscas para ver quantos cursos da comunidade já existem há anos no Brasil. Alguns mais violentos, outros com propostas um pouco menos agressivas mas todos extremamente machistas e com algumas características em comum. A mais importante é abordar mulheres desconhecidas nas ruas insistindo mesmo depois de obter um “não” como resposta, como comprovou o repórter Caio Costa, enviado da Pública a um desses cursos. As táticas funcionam na lógica de jogo –usam termos como daygame e nightgame para definir as abordagens, “escalada” sobre o aumento progressivo de contato físico que deverá resultar em sexo, assim como outros termos e passos de conquista que devem ser repetidos à exaustão.

Se portar como “macho alfa”, o “homem que mostra quem é que manda” é o que se espera dos aprendizes como ensina o livro “A Arte Natural da Sedução”, de Richard La Ruina, um dos grandes mestres PUA: “Não dê a ela o poder de tomar decisões, e sim a opção de aceitar suas escolhas”. No Youtube há centenas de vídeos ensinando essas abordagens, com milhares de visualizações, muitos mostrando os rostos das meninas. Além dos sites que vendem os cursos, existem também fóruns de discussão onde os “pegadores” se gabam de suas conquistas, propõem desafios e trocam experiência – leitura não recomendada a quem tem estômago fraco. Aliás, leitura não recomendada em hipótese alguma.

“É necessário se posicionar bem próximo da garota, para ter ‘fisicalidade’. Quando você chegar assim perto dela pra conversar, ela vai sentir um desconforto, não vai? O que é esse desconforto? Esse desconforto é tensão sexual. Ela provavelmente vai andar pra trás. Continua conversando e depois chega perto de novo” ouviria o repórter Caio Costa durante o bootcamp (treinamento PUA). “Se a mulher recuar, o homem avança. Se ela não se mexer, quer ser beijada. Se a menina não for embora ou ameaçar chamar o segurança, não há motivo para desistir. Cabe à mulher encerrar a abordagem. Mesmo que deixe claro que não está interessada, se a presença do homem a incomoda, é ela quem deve se mover”, ensinava o instrutor. Antes do nightgame, a dica para encorajar o assédio: “Não existe esse negócio de mulher ir pra balada pra se divertir. Mulher vai pra balada pra dar. Se quisesse se divertir ficava em casa vendo um filme com as amigas”.

Abordar mulheres desconhecidas nas ruas insistindo mesmo depois de obter um “não” como resposta pode configurar importunação ofensiva ao pudor segundo o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais com pena de multa mas até o momento não se tem notícia da aplicação dessa lei. Além desse tipo de curso, o Brasil começa a ter os seus próprios “teóricos”. No livro “Brazilian Natural Game – O manual sobre jogo natural totalmente desenvolvido para o Brasil”, o autor Eduardo Playtool diz ter adaptado o método para a “realidade brasileira”.

“Europa e EUA são países de classe média (sic) onde quase todo mundo tem o mesmo nível seja ele financeiro, social ou educacional (…) Aqui é um país de intensa desigualdade social e isso pode criar problemas para alguns e também pode ser algo a ser aproveitado independente de quanto dinheiro você tenha”. Eduardo continua destilando toda forma de preconceito no decorrer do livro. “Comparem o nível da mulherada numa balada de R$ 15 e na balada de R$ 150. Comparem o nível da mulherada em shopping luxuoso e em shopping simples de periferia. É brutal. Isso ocorre porque geralmente caras ricos se casam com mulheres mais bonitas e por isso suas filhas são mais bonitas geneticamente e tem acesso fácil a tratamentos de beleza, dermatologistas, cirurgias plásticas, bons cabeleireiros, academia, boa alimentação, etc” e “Se um cara da periferia que se veste como ‘mano’ com a calça caída, usa gírias ridículas e fala ‘e aí mina, tá ligada nas parada’ acha que vai pegar uma bailarina do Faustão ou uma patricinha de balada top pode ter certeza que as chances estão muito contra”.

Eduardo também ensina a atrair mulheres para sua casa sem deixar clara a intenção. No tópico “Arrastando o alvo para o abatedouro” ele diz: “O princípio é não deixá-la desconfortável. Ou seja: Eu não falo em ir para a minha casa jamais. Sou bem cara de pau. Simplesmente a levo, já planejando uma desculpa plausível para evitar o desconforto na hora em que ela perceber para onde está indo”. Além do desrespeito evidente, esse tipo de armadilha aparece em muitos casos de estupro como mostra esta matéria sobre culpabilização de vítimas, em que uma das entrevistadas conta que foi levada enganada para a casa do agressor e, quando negou sexo, foi estuprada e torturada.