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Jovem faz "puxadinho" para atender desabrigados na BA e sofre com dívidas

Donminique Azevedo

Da Agência Pública, em Salvador

05/10/2015 14h29

"A gente sabia que um dia ia cair, só não sabia a proporção nem a gravidade. Quando chovia, todos ficavam em alerta. Cada qual vai construindo e dizendo que não cai, fazendo o famoso puxadinho”, comenta Jackson Pereira, 23, técnico em telecomunicações, morador do Barro Branco, em Salvador, que, após o desastre de abril, fez de sua casa uma central de socorro aos desabrigados. Dezenove anos atrás, em 21 de abril de 1996, ali mesmo, 22 pessoas morreram –15 crianças, três mulheres e quatro homens. Na ocasião, 900 metros cúbicos de terra caíram sobre as casas.

Em 1996, ano da primeira tragédia com vítimas no Barro Branco, Jackson tinha menos de cinco anos de idade. O rapaz ainda guarda recordações daquele momento: “Lembro da gente, eu e meus irmãos, saindo daqui para casa da minha tia em São Caetano com as roupinhas nas sacolas de supermercado”. Naquele ano, a casa de Jackson também servira de abrigo para 13 pessoas.

A mulher de Jackson, Suiane Estrela, confessa que a estigmatização incomoda, mas nem de longe é sua principal preocupação. Embora a casa da família esteja avaliada como fora de risco, o casal pensa na qualidade de vida da filha de três anos. Como restaram poucas crianças no local, a menina tem poucas opções de interação. “A gente teve que levar a bicicleta dela para a escola, porque não tem onde brincar”, conta Suiane. Foi justamente para propiciar um espaço de recreação para filha que, na véspera da tragédia deste ano, Jackson passou o dia arrumando sua outra casa, na qual havia acabado de colocar laje. O serviço terminou às 22h. Mal imaginava que o trabalho estava apenas começando. Essa casa dele, que estava em construção, serviria de abrigo, “sala de imprensa” e posto de coleta e de distribuição de donativos do bairro nos dias seguintes ao desastre.

Depois de três dias, tendo a casa da mãe e a obra inacabada como posto de coleta e distribuição de doações, a mãe, Edilene, começou a reclamar de cansaço devido aos problemas de saúde que tem, incompatíveis com o ritmo que o trabalho voluntário exigia para aquele momento. A casa da família estava sempre cheia de desconhecidos, em sua maioria voluntários. Era preciso fiscalizar, pois uma minoria tentava desviar donativos. Deitavam para dormir às 2h. Às 5h, começavam a chegar as demandas. De queixa sobre os entes governamentais a pedidos de alimentos. A filha não entendia por que os familiares estavam sempre ocupados e questionava: “Foi a casa de Carlinhos que caiu, mamãe? Cadê ele, tá dodói?”.

O rapaz, de voz tranquila, conta que na mesma proporção em que crescia o número de doações, aumentava o número de necessitados, inclusive de outras cidades e bairros da capital baiana. Era preciso muita dedicação e paciência para lidar com a situação. “Era confusão demais. Uma senhora levou quatro cestas básicas de uma só vez. Pedi calma e ela me acusou de roubo.”

Ao fim da “missão”, restaram a satisfação de ajudar e as dívidas. Jackson gastara o dinheiro reservado aos pagamentos das contas mensais com deslocamento dos donativos para áreas afetadas pelas chuvas. Cedo iniciavam as filas na frente da residência, uma das cinco que não foram interditadas na comunidade do Barro Branco. “Meu nome desceu para o SPC e para o Serasa. O carro financiado em 48 vezes também ficou em atraso. Até para receber o dinheiro dos clientes ficou difícil. Fiquei sem tempo para trabalhar. Não gosto de ficar sem honrar meus compromissos”, conta, em meio aos boletos de cobrança. Aos poucos, Jackson está normalizando a situação financeira. A experiência trouxe consigo o desejo de ajudar a comunidade, a partir de agora por meio do engajamento político. Reúne alguns moradores espalhados pelo entorno do bairro para decidir quais passos devem ser tomados para cobrar, a quem é de dever, melhorias para o local. “Meses sem respostas e só vendo anúncios na TV de que as obras já estavam em andamento, a gente se reuniu e decidiu protestar. Nossa boca é a reportagem. Se eu chegar ali e gritar, me chamam de louco. Se a imprensa chegar, aí já é a comunidade do Barro Branco.”

“Eu aprendi muito com essa tragédia”, diz Jackson. “O Brasil é muito solidário. Pessoas que traziam meio quilo de alimento amarrado. Tirava da despesa da própria casa.” O jovem, mesmo sem sede e eleição, foi designado pela comunidade para ser presidente da futura associação de moradores do Barro Branco.

Em São Caetano, o presidente da associação de moradores que representa a Vila Tiradentes, Gomeia e a Fonte da Bica de Cima, Joaquim Júnior, 41, lembra os quase 20 anos de lutas, grande parte delas por causa da falta de infraestrutura urbana que piora consideravelmente quando associada aos eventos pluviométricos. O técnico em perfuração de poços conta que o maior desafio é manter a população mobilizada. “Infelizmente, você percebe que ocorre uma mobilização em prol de alguma coisa imediata, mas a longo prazo é extremamente difícil. Para quem está começando, eu diria que faça de forma altruísta, não espere reconhecimento e que fuja do caminho mais fácil, pois normalmente não é o melhor. Pode até dar um resultado temporário, mas nem sempre é o ideal.”

Diminuir a imigração

O engenheiro Luís Edmundo Prado de Campos, do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (Crea-BA), explica que existe muito mito sobre as encostas da capital baiana. “Algumas pessoas dizem que as encostas em Salvador não são boas. Isso não é verdade. Poderiam ser ocupadas tranquilamente desde que as pessoas soubessem ocupar. O ideal seria que o poder público chegasse antes, criando infraestrutura, para depois a população assentar as suas edificações. Isso não existiu. Agora o poder público está correndo atrás para dar assistência a essas áreas. A população não vive nas áreas de encostas por opção, e sim por falta de opção”, explica Campos, que é também professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

De acordo com o IBGE, Salvador tem limitação geográfica para expansão de moradias: são 309 km² de área continental. Tal limitação poderia indicar que o crescimento populacional da capital estaria perto da exaustão. No entanto, a falta de espaço não reduz o surgimento de novos domicílios. O motivo principal é a onda migratória do campo para a cidade. A população da capital baiana cresceu de 2,4 milhões em 2000 para 2,9 milhões em 2015, de acordo com o IBGE. Esse fluxo força a verticalização urbana nos bairros da periferia, contribuindo para as situações de risco.

Para Campos, “antes de resolver o problema daqui, deveríamos diminuir a migração do campo para cidade, ou até inverter. Não que fosse forçado, mas com condições dignas para que as pessoas pudessem viver e trabalhar fora dos centros urbanos”, explica.

O geógrafo Renato Reis, que também é professor e pesquisador do Programa Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Universidade Salvador, comenta indignado: “Todo ano a gente já sabe de quais regiões da cidade virão determinadas doenças, por causa dos fatores de risco. Se chover um pouco mais, teremos deslizamentos de terra e, com isso, pessoas estão sujeitas a morrer. É um descaso que está materializado […]. É uma coisa que se tornou tão corriqueira que as pessoas perderam a capacidade de dialogar sobre isso. A chuva é apenas um gatilho”.

Reis destaca que a presença das crianças nos locais de risco precisa ser encarada com mais sensibilidade por toda a sociedade. “A presença do fator de risco naturalizado leva a criança a achar que é algo normal brincar dentro do esgoto, que é natural as pessoas morrerem soterradas.” Para o psicólogo Júlio Hoenisch, há uma manutenção desse ciclo de tragédia e de vulnerabilidade porque alguém lucra, seja financeira e politicamente ou na espetacularização da tragédia.