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Moradores da Floresta da Tijuca, no Rio, idosos vivem sem luz há 46 anos

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

24/11/2015 06h00

O dia costuma começar cedo para Afrânio Dias Gomes, 75, que mora em uma pequena casa situada dentro do Parque Nacional da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro. Vizinho do Bosque dos Eucaliptos e das ruínas da Fazenda, na estrada da Cascatinha, ele diz ainda acordar com o canto do galo, antes das 6h, e empenhar parte da manhã em fazer "rondas". "Me sinto um guardião da floresta", afirma ele, com um facão em uma das mãos, usado eventualmente para abrir caminho pela mata. "Gosto de preservar a calma e a paz desse lugar."

Afrânio e a mulher, Maria do Carmo Gonzaga Gomes, 71, residem juntos há 46 anos em meio à imensidão da Floresta da Tijuca. Ele vive lá há mais tempo, desde que seu pai e seu tio passaram a morar no parque, em 1943, para cuidar de um viveiro a convite de Raymundo Ottoni de Castro Maya, famoso colecionador de obras de arte e gestor do histórico trabalho de remodelação do Parque Nacional da Tijuca. Esse mesmo viveiro foi destruído por uma tromba d'água durante temporal em 1996.

Já Maria do Carmo se mudou para a casa do marido após o casamento, em 1969. O casal vive até hoje sem energia elétrica. "Eu diria que somos privilegiados porque, mesmo sem luz, não deixamos de fazer nada. A floresta faz parte da gente, e nós fazemos parte dela", afirmou Afrânio.

De fato, dificuldades são mero detalhe para o casal, que consegue driblar as adversidades do dia a dia com poucos recursos. A iluminação interna da casa é baseada em um lampião a gás, instalado na sala, próximo ao portão e às janelas, para que o ambiente não fique muito quente, e velas. Se o calor aperta, Maria do Carmo apela para o leque. "Aqui também faz aquele calorão, às vezes, mas nada que tire o sono."

Na cozinha, a geladeira é representada por um isopor velho, que conserva alimentos como carne e frango por dois ou três dias, desde que haja gelo suficiente. Saladas e temperos são provenientes de uma hortinha mantida por Maria do Carmo em seu "quintal". "Buscamos o gelo na rua e já compramos porções mínimas para que nada estrague. É tudo calculado", afirma a idosa, discursando com orgulho sobre improvisos e conhecimentos adquiridos ao longo das últimas quatro décadas.

 

Luz? Melhor não ter

Afrânio e Maria do Carmo tiveram energia elétrica por cerca de um ano, em 2013, quando um gerador foi instalado na residência, com auxílio do filho mais velho --que já não mora na casa dos pais há dez anos anos. Porém, o equipamento apresentou defeito, e o casal chegou a uma conclusão pouco provável nos dias de hoje.

"A vida era melhor quando não tinha luz", pensou Afrânio.

Eles chegaram a comprar uma TV, hoje inútil na sala da casa. "Sonhava ver uma novela, pois trabalhei na casa de uma senhora que falava muito sobre novela. Ela ficava espantada como eu era a única pessoa que ela conhecia que não tinha televisão. Mas depois pensei bem e vi que não ligava muito para isso. Meu negócio é roupa no tanque, louça na pia, comida na panela... Deixo a televisão para quem gosta."

Maria do Carmo usa um antigo ferro a gás, aquecido no fogão, para passar as roupas da casa. Ela traz na memória uma passagem com o filho mais velho, que, logo quando começou a trabalhar, tinha seu uniforme diariamente passado pela mãe. "Uma vez, ele foi elogiado no trabalho porque estava sempre engomadinho. Aí eu disse para ele falar no trabalho que o bom mesmo é o ferro a gás, não é ferro elétrico, não", relatou a idosa, sorrindo. As roupas são lavadas por ela em uma nascente bem perto da casa. "Lavar a roupa na mão faz toda diferença."

Todas as despesas da casa, que não são muitas, são custeadas pela aposentadoria de Afrânio, que trabalhou praticamente a vida inteira na Fundação Parques e Jardins (órgão da Prefeitura do Rio) e hoje recebe um salário mínimo. A mulher consegue ajudá-lo fazendo pequenos bicos, como serviços de costura. "Sempre fiz faxina e trabalhei na casa dos outros, mas hoje não tenho mais forças para isso. Então, sempre dá para ganhar um dinheirinho costurando", disse ela.

Últimos moradores da floresta

Afrânio diz que sua família é uma das poucas remanescentes entre as que moravam no interior do Parque Nacional de Tijuca desde o trabalho de remodelação feito na década de 40. "Eram dez famílias e hoje existem poucas, talvez três ou duas", contou ele.

Ao lado de sua casa, há outras duas ocupadas por membros da família Dias Gomes. Em uma área pouco mais afastada, ao lado das ruínas da Fazenda (onde funcionava o viveiro administrado pelo pai e pelo tio de Afrânio), há duas casas abandonadas. Lá, moravam famílias que foram retiradas por força de uma ação civil pública de desapropriação movida pelo MPF (Ministério Público Federal).

O órgão defende que esses imóveis sejam demolidos por estarem em uma área de preservação ambiental e de propriedade da União --o parque é gerido pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade),uma autarquia do Ministério do Meio Ambiente). O ICMBio foi procurado pela reportagem do UOL para comentar o assunto, mas não se pronunciou até o fechamento deste texto.

O próprio Afrânio também já teve sua tranquilidade ameaçada, em 2012, quando um oficial de justiça lhe deu 90 dias para deixar o seu imóvel. "Passaram 90 dias e nada... Depois, veio outro e deu 120 dias. Então, eu pensei que, se passou de 90 para 120, pelo menos houve um avanço", ironizou. "Construímos uma vida neste lugar e não pretendo sair. Mas se nos colocarem em uma casa melhor, aqui mesmo pelo Alto da Boa Vista [bairro], a gente aceitaria", disse. Na visão dele, o casal está "velho demais" para recusar uma oportunidade de ter uma rotina mais acessível.

O processo em que Afrânio e a mulher são réus ainda está tramitando na Justiça, segundo ele. Apesar de o MPF ter base legal, já que a legislação federal prevê a desapropriação em áreas de parques naturais, com objetivo de "preservar ecossistemas", a defesa do casal de idosos afirma que eles não podem ser vistos como simples invasores.

"Quem nos colocou aqui foi a prefeitura, na época do antigo Distrito Federal. O prefeito da época veio aqui [Henrique Dodsworth, interventor federal de 1937 a 1945] e nos deu esse espaço. Nossa vida está aqui."

Procurado, o Parque Nacional da Tijuca afirmou, por meio de nota, que não é possível a existência de moradias dentro da unidade, a menos que sejam residências funcionais ocupadas por servidores do ICMBio, órgão responsável pela gestão da unidade. "Moradores que não possuam mais vínculo funcional com a unidade de conservação terão que desocupar os imóveis", diz a nota.