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Ele nunca mais foi o mesmo, diz mãe de jovem que teve os dentes arrancados

César Ferreira, hoje morando na Bahia (foto), teve os dentes extraídos após erro de atendimento em hospital público de Brasília em 2009 - Arquivo pessoal
César Ferreira, hoje morando na Bahia (foto), teve os dentes extraídos após erro de atendimento em hospital público de Brasília em 2009 Imagem: Arquivo pessoal

Felipe Amorim

Do UOL, em Brasília

18/01/2016 06h00

Há pouco mais de seis anos, o filho de Maria Aldenora Oliveira, 55 anos, teve todos os dentes arrancados num procedimento feito sem indicação odontológica e sem a autorização dela.

Então com 17 anos, o rapaz, que é deficiente mental, entrou na sala de cirurgia de um hospital público de Brasília para a extração de apenas dois dentes cariados. César Oliveira Ferreira saiu de lá com 28 dentes a menos, após ser submetido à anestesia geral.

O dentista responsável pelo procedimento, Wilson Oliveira Santos, continua a atender no mesmo hospital, o HRAN (Hospital Regional da Asa Norte), e não sofreu punições administrativas, nem pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal, nem pelo CRO-DF (Conselho Regional de Odontologia).

"Nunca mais ele foi a pessoa que ele era antes”, afirma a mãe de César. “Ele se retraiu muito. Não faz as mesmas coisas de antes. Se fechou no mundo dele”, diz Aldenora. 

Há seis meses, a família se mudou para Canavieiras, no litoral sul da Bahia, em busca de uma vida sossegada após a aposentadoria do pai de César, Alfredo Ferreira, 61, ex-funcionário público.

César, hoje com 23 anos, diz sentir saudades de Brasília e dos parentes que deixou na capital federal.

“É ruim ficar longe de uma cidade que a gente gosta”, diz. Sobre o procedimento, ele diz ainda não "ter entendido" o que aconteceu.

Saí da cirurgia sem nenhum dente na boca. Eu não entendi o que eles fizeram comigo. Por que não chamaram minha mãe para conversar?

A família deve visitar a capital em breve. Aldenora conta que o filho ficou com trauma de médicos e dentistas, e consegue fazer revisões odontológicas apenas com o profissional que cuidou do implante das próteses dentárias em Brasília.

Um mutirão, organizado pelo então presidente do CRO-DF, Júlio César, realizou sem custos a reconstrução da arcada dentária do jovem. "César está bem com os implantes dele",diz a mãe.

Foram três cirurgias e diversos exames e procedimentos, que terminaram apenas em 2012. Aldenora conta que são oito pinos na arcada superior e sete na inferior, usados para dar sustentação aos dentes implantados.

“E teve que fazer enxerto na boca inteira. Foi muito sofrido”, diz. “Até para tomar uma vacina ele não vai [ao médico]. É difícil. Ele pode estar com o melhor sorriso possível, se eu falar que vou no médico ele começa a tremer”, conta Aldenora.

Desde o ocorrido, a família diz não ter tido mais contato com o dentista que extraiu os dentes de César. Questionada sobre o que diria a Wilson Santos, Aldenora afirma que pediria para ele ter mais cuidado e diálogo com os pacientes.

“É uma atrocidade muito grande o que fizeram com ele [César]. É uma mutilação. Porque não é a mesma coisa [o implante]”, diz.

Como ficou o caso na Justiça

O Ministério Público do Distrito Federal denunciou o dentista Wilson Oliveira por lesão corporal grave. A denúncia foi apresentada à Justiça em novembro de 2009. Em 2010, ele fez um acordo judicial que o livrou de uma possível pena de prisão. Em troca, pagou uma indenização de R$ 51 mil à família de César Ferreira.

Um laudo do IML (Instituto Médico Legal) mostrou que os outros 26 dentes do jovem eram sadios e não havia motivo para a extração.

Apesar de ser alvo de uma ação criminal na Justiça, o dentista não foi punido no âmbito profissional.

O CRO-DF decidiu pela absolvição, por três de cinco votos da comissão que analisou o caso, segundo reportagens da época. Procurado novamente pela reportagem do UOL, o CRO-DF informou que o processo é sigiloso e não poderia detalhar os motivos de o dentista ter sido inocentado.

O dentista Wilson Oliveira Santos informou, por meio de seu advogado, que não daria entrevista para esta reportagem ou comentaria os processos que foram abertos contra ele.

A família de César também entrou na Justiça para exigir uma indenização do governo do Distrito Federal. O valor foi fixado em R$ 50 mil, mas a Justiça entendeu que o governo não precisaria fazer o pagamento, pois a família já havia recebido uma indenização de igual valor do dentista.

Anulações e prescrição

No governo do Distrito Federal, a Secretaria de Saúde chegou a abrir ao menos quatro processos disciplinares para apurar o caso, sem conseguir aplicar nenhuma punição ao dentista.

O primeiro processo, aberto ainda em 2009, esgotou seu prazo de funcionamento sem chegar a uma conclusão. O segundo e o terceiro foram instaurados respectivamente em abril e setembro de 2011, mas ambos foram encerrados pela secretaria sem um desfecho “por razões de ordem procedimental”, segundo consta em parecer da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, órgão de assessoramento jurídico do governo.

O parecer revela ainda um argumento curioso da defesa. No processo o dentista argumenta que não poderia ser considerado culpado pois não havia nos autos do processo prova de que todos os dentes do jovem César eram saudáveis e devessem permanecer na boca do paciente.

Diz o parecer jurídico, ao descrever os pontos da defesa de Wilson Santos: “não haveria evidência nos autos que indicasse a necessidade de permanência ou a higidez de todos os dentes do paciente”.

Já no quarto processo aberto pela Secretaria de Saúde, o corregedor-geral de Saúde do DF foi contra o parecer da comissão de ética que inocentava o dentista e pediu sua demissão.

A decisão precisaria ainda ser confirmada pelo governador, mas antes disso foi anulada por julgamento dos desembargadores do TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal) que, assim como o advogado de Wilson Santos e o Ministério Público, entenderam que a pena seria exagerada para o fato.

Um dos argumentos foi de que não houve negligência (“desídia”). Na sessão do julgamento, dois dos desembargadores afirmaram que a demissão por desídia exige atos reiterados, e só havia a denúncia de um caso contra o dentista.

O Ministério Público também apontou, em parecer no julgamento, que o corregedor só poderia alterar a recomendação da comissão que julgou o caso se provasse que a decisão tomada ignorou as provas disponíveis, o que não teria acontecido. 

Ainda segundo o parecer do Ministério Público, apesar de o dentista ter deixado de conferir se havia autorização da família para o procedimento, ele teria confiado em sua análise clínica para decidir pela necessidade da extração. Aldenora afirma que um dos argumentos usados na época para justificar o procedimento, foi de que o dentista teria identificado uma "patologia na arcada dentária", segundo ela conta.

Posteriormente, em novembro de 2013, todos os processos disciplinares da Secretaria de Saúde foram anulados com base em parecer da Procuradoria-Geral do DF.

A Procuradoria entendeu que foram cometidos erros na composição das comissões de servidores que julgariam o caso: apenas funcionários com nível superior de escolaridade, assim como o dentista, poderiam atuar no processo. O quarto processo não havia cometido esse erro, mas havia aproveitado a apuração do anterior, que foi considerado nulo, e por isso teve que voltar à estaca zero.

Segundo a Secretaria de Saúde informou à reportagem do UOL, após a decisão, o processo disciplinar foi retomado. Mas, antes que se chegasse a uma conclusão, foi atingido o prazo de prescrição, quando o servidor não pode mais ser punido por já ter passado muito tempo desde o fato que gerou a denúncia.

Outros casos

Na época que o caso de César Ferreira veio a público, outros dois casos semelhantes de pacientes com deficiência mental que tiveram todos os dentes extraídos foram investigados. No entanto, o CRO-DF entendeu que os procedimentos eram necessários e foram autorizados pelas famílias dos pacientes.

Em vídeo de 2009, mãe relata desespero após cirurgia

Bandnews