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Preconceito está associado a ignorância, diz Kobra sobre grafiteiros torturados no Rio

Grafite em homenagem ao piloto brasileiro de Fórmula 1 Ayrton Senna, criado pelo artista brasileiro Eduardo Kobra, em prédio no centro de São Paulo - Rahel Patrasso/Xinhua - Rahel Patrasso/Xinhua
Grafite de Kobra em homenagem a Ayrton Senna em prédio no centro de São Paulo
Imagem: Rahel Patrasso/Xinhua

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

29/02/2016 06h00

Nesta semana, a Justiça do Rio de Janeiro aceitou a denúncia do Ministério Público contra dois homens acusados de torturarem três grafiteiros no centro da capital fluminense no começo do ano. Os grafiteiros foram espancados com barras de ferro e cobertos de tinta por seguranças da Saara (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega), um centro de comércio popular no centro da cidade.

Para o grafiteiro Eduardo Kobra, 40, que chegou a ser pintado e preso quando fazia trabalhos no passado, "nada justifica violência". Kobra, que tem trabalhos expostos pelas ruas de mais de 15 países, acredita que o preconceito contra o grafite está muito relacionado à ignorância e que é preciso mudar essa cultura no Brasil. “Há tantos artistas que de forma voluntária saem das suas casas com as suas tintas e vão doar os seus trabalhos para a cidade", diz. "Precisamos perceber a oportunidade que nós temos como vanguarda na street art e incentivar."

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com o artista:

UOL - Há pouco tempo, no Rio de Janeiro, três grafiteiros foram agredidos e torturados por seguranças da Saara, um centro de compras popular no centro da cidade. Como você vê esses casos de violência? O grafite ainda é visto como algo marginal no Brasil?
Eduardo Kobra - Sou contra qualquer tipo de agressão. Nada justifica violência. Ainda mais por parte de pessoas que estão ali com a função de proteger e cuidar. Quando se trata de artistas, caímos em outro detalhe que é a falta de conhecimento. Esse preconceito está muito associado à ignorância. Há tantos artistas que de forma voluntária saem das suas casas com as suas tintas e vão doar os seus trabalhos para a cidade, muitas vezes com muita dificuldade, tanto para comprar as tintas quanto para executar o trabalho… No passado, as pessoas passavam e me chamavam de vagabundo. Falavam, “vai procurar um trabalho, procurar o que fazer”. Até hoje, ainda observamos esse tipo de atitude.

Aqui em São Paulo conseguimos uma melhora nesse quadro. Áreas importantes da cidade, como a avenida 23 de Maio, foram cedidas aos artistas, mas a maioria dos que estão pintando nas ruas já sofreram com violência. Eu já passei por uma situação similar a essa, fui pintado e cheguei a ser detido três vezes por pichação. É constrangedor. O melhor caminho nessas horas é aplicar a lei. E tenho certeza de que a lei não permite nenhum tipo de violência.

Qual a diferença entre pichação, grafite e mural?
Não é uma questão de evolução, mas do trabalho que cada um se propõe e tem vocação. Eu já fui pichador, mas na época era também grafiteiro. Na pichação são apenas letras. Como eu já desenhava, comecei a fazer desenhos, que é o grafite. A diferença é a questão da legalidade. O grafiteiro pinta de forma ilegal. O mural é autorizado. Como desenvolvi uma técnica que demora para fazer, envolve luz e sombra, preciso pedir autorização ao proprietário, e meu trabalho está mais na linha de mural.

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Você comentou que já foi pichador. Como vê a pichação?
Eu seria hipócrita se falasse que vejo problema. Passei muitos anos fazendo pichação, tenho muitos amigos da época, faz parte da minha história. Porém, como cheguei a ser detido e tudo o mais e tive vários problemas familiares por conta disso, chegou um momento em que ficou complicado seguir. É uma escolha de cada um.

 E como é essa relação entre as administrações municipais, como São Paulo e Rio, e os grafiteiros?

Em São Paulo, ainda é proibido você sair e fazer um grafite sem permissão, seja um desenho ou uma pichação. É tido como crime ambiental. O grafiteiro, quando sai para pintar, está sujeito a essa lei. Mas a cidade abriu muito espaço, como a 23. Virou até uma marca registrada. Tem artistas daqui indo para o mundo todo. Em São Paulo, eu já fiz tanto trabalhos autorizados quanto ilegais. Em outros Estados, a abertura não é tão grande. São Paulo acaba tendo um pouco mais de tradição nesse aspecto.

Você falou que muita gente acaba saindo do Brasil. Como é essa relação com o grafite brasileiro no exterior?
Eu pinto desde os 12 anos, tenho 40, então são 28 anos pintando nas ruas. Chegou um determinando momento, até pela questão das redes sociais, em que o grafite brasileiro passou a ser reconhecido lá fora. Ficamos conhecidos como um lugar de artistas com um trabalho muito original, com técnicas diferenciadas. Aqui os artistas tiveram que improvisar muito, não tinham dinheiro para comprar o material e também nenhum tipo de formação.

Até por uma questão cultural, a abertura lá fora é muito maior. Nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas já estão mais acostumadas a lidar com esse universo de arte. Quando fiz os primeiros murais na Europa, por mais que o meu desenho estivesse feio ou algo do tipo, as pessoas incentivavam. Percebiam ali a dificuldade de estar em cima uma escada, pintando. No Brasil, demorou bastante para as pessoas começarem a perceber isso. Ultimamente, vejo bem mais gente interagindo com os artistas do que há poucos anos.

Quais as suas referências? O que você procura passar nos murais?
Eu tento usar os muros não só como uma questão estética, mas também como suporte para passar algum tipo de mensagem, coisas em que eu acredito, como a questão da proteção aos animais. Antes meus trabalhos eram muito americanizados, aprendi observando os grafiteiros de Nova York, dos trens, do hip hop da década de 1980. Só com o passar de alguns anos comecei a me sentir seguro para fazer os meus próprios desenhos, daí que a situação se inverteu. Pude levar meu trabalho para Nova York, que é o lugar onde o grafite surgiu, conhecer alguns dos artistas em que me inspirava.

Como você vê o papel do grafite nas metrópoles?
O grafite, a arte de rua, surgiu em sua maioria na periferia. Hoje eu percebo que tem um movimento no mundo inteiro de pegar bairros que ou eram muito violentos, ou estavam destruídos, abandonados, e transformá-los pela arte de rua, com aconteceu em Wynwood, em Miami. Todo ano mais de 400 artistas vão para lá e pintam e repintam o lugar. Isso modificou completamente o bairro, que virou até ponto turístico. O bacana da arte de rua é esse lado democrático, de levar o acesso à arte para todo mundo. O grafite também chama a atenção de muitos jovens da periferia, e é uma vocação que temos aqui no Brasil. É possível tirar muitas pessoas do crime através da arte.

Como você vê a legislação sobre grafite?
Aqui em São Paulo tem a Lei Cidade Limpa, que prevê que o lugar das propagandas irregulares seja ocupado por trabalhos de arte, mas exige autorização dos proprietários e do governo. Eu acredito que o que tem que mudar não é a legislação, mas a atitude das pessoas. Perceber a oportunidade que nós temos como vanguarda na street art e incentivar, até financeiramente. Às vezes com uma doação de uma pequena quantidade de tinta você muda a vida de alguém.