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Fim de programa de segurança agrava violência na periferia de Porto Alegre

Flávio Ilha

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

27/05/2016 06h00

Em uma tarde de 2016, uma adolescente gravemente ferida pela fúria do ex-namorado aguardava sozinha a presença de um carro da Brigada Militar no Posto Avançado 30, no bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre.

Com hematomas espalhados pelo rosto, pelas pernas e pelos braços, a garota de 17 anos esperaria em vão pela presença da polícia. O posto está fechado desde novembro de 2015, devido às restrições orçamentárias do governo gaúcho. A menina acabou socorrida graças ao chamado da reportagem do UOL para o 190 -- mesmo assim, o resgate só foi feito 28 minutos depois da ligação. 

A estrutura da Brigada Militar no bairro Rubem Berta, uma das regiões mais violentas da cidade, tem lixo acumulado nos fundos da construção e está abandonada, sem vestígios de utilização. Foi erguida há mais de 20 anos, em 1994, e desde então nunca tinha parado de funcionar.

Um morador que mora ao lado do posto relata que até a virada do ano um PM ainda fazia ronda no local para garantir o patrimônio, mas sem registrar ocorrências.

Desde janeiro passado, nem isso. “Neste ano nunca vi brigadiano aí no postinho. Está tudo vazio, o que é uma pena”, diz o morador, que prefere não se identificar devido à cotidiana disputa entre facções criminosas no local.

Assim como o PA-30, outras unidades da Brigada Militar foram desativadas a partir de 2015 pelo governo do Estado, incluindo os quatro Territórios de Paz criados em 2011 com apoio do Ministério da Justiça, devido às limitações orçamentárias. Os Territórios foram instalados nas regiões periféricas mais controladas pelo tráfico na cidade  ---e, durante quatro anos, conseguiram reduzir os índices de violência. Mas foram tragados pela crise financeira do Estado.

“É o bairro que mais mata jovens em Porto Alegre. No dia em que fecharam o posto, o resultado foi quatro adolescentes baleados. Viramos uma terra sem lei”, lamenta o presidente da associação dos moradores do bairro Rubem Berta, Cleusi Coelho. O adolescente Christian Jorge da Silva, 17, relata que um colega levou um tiro nas costas quando voltava da escola, ao meio-dia. “Eu e meus amigos evitamos sair à noite. Quando saímos, procuramos voltar antes das 22h”, diz o estudante.

A coordenadora pedagógica da creche Negrinho do Pastoreio, Alexandra Mello, afirma que a escola teve de mudar o horário de entrada das crianças por causa do fechamento do posto que fica ao lado -- antes, o portão da creche ficava aberto até as 9h; agora, fecha às 8h15. “Sempre havia dois ou até três carros circulando pela vila, que faziam base aqui no postinho. Agora não tem mais como deixar o portão aberto, não tem segurança”, informa a professora.

Assim como no bairro Rubem Berta, outras três unidades de policiamento ostensivo foram desativadas nos bairros de Santa Teresa, Restinga e Lomba do Pinheiro. Eles estão assolados pela disputa entre facções de traficantes, são super-habitados e com uma população predominantemente pobre.

No bairro Santa Teresa, na zona sul, o Território de Paz ocupava a sede da Associação dos Moradores da Vila Nossa Senhora do Brasil. Em novembro de 2015, o local foi devolvido à comunidade pela Brigada Militar, que retirou até as câmeras de segurança usadas na ronda.

“Todo mundo vive apavorado aqui. Antes ficavam cinco carros ali na frente, que circulavam sempre pela vila. Agora temos que contar com a sorte”, lamenta o dono de um mercadinho localizado em frente ao posto abandonado, que também não quis se identificar.

O dono de uma ferragem na mesma rua, que mora há 40 anos no bairro, diz que já foi ameaçado de morte pelos traficantes que disputam a hegemonia na rua Neves - conhecida pela população como "Faixa de Gaza". Hoje, fecha a loja pontualmente às 18h e não sai mais de casa – situada em cima da ferragem: “Uma pena que saíram, pois fazem muita falta”.

A presidente interina da Associação, Andréia Terres, lembra que a Brigada Militar reformou o prédio onde instalou o Território de Paz com doações da comunidade, que se mobilizou para garantir o policiamento. Além de reforçar a segurança, o local também passou a concentrar atividades comunitárias, especialmente com os jovens do bairro que frequentemente são recrutados pelo tráfico.

“Aqui a área de lazer é a rua, justamente onde estão os traficantes”, reclama a líder comunitária. Segundo ela, o governo anunciou em abril de 2015 que não teria dinheiro para manter o efetivo na área. Seis meses depois, em novembro, desativou o posto. Nem o PM de plantão, que monitorava a área até fevereiro, apareceu mais. “Tiraram até a placa de identificação aqui da frente. Não adianta, eles cortam sempre onde a gente mais precisa”, diz Terres.

A menos de dois quilômetros dali, na vila Tronco, a reportagem do UOL também se deparou com um posto avançado da Brigada Militar sem policiamento. O único soldado que estava de plantão informou que apenas fazia a guarda do patrimônio. Ele se dirigiu ao local com sua moto particular porque a corporação não tinha carro disponível para deslocá-lo. O zelador de um prédio em frente disse que a PM só aparece “quando tem baderna”.

Na Restinga, no extremo sul de Porto Alegre, a estrutura do Território de Paz, que tinha apoio de uma dezena de câmeras de segurança, foi desativada logo depois do Carnaval. Na Lomba do Pinheiro, os micro-ônibus que serviam de base para os Territórios, também equipados com câmeras de segurança, foram retirados. O telecentro que funcionava no local, reformado pela comunidade para abrigar estrutura de segurança, foi desativado.

Juntos, os quatro bairros que receberam os Territórios a partir de 2011 por meio do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) foram responsáveis por 179 homicídios em 2014 -- 31% das mortes violentas da cidade, apesar de concentrarem apenas 15% da população. Em 2015, a Secretaria da Segurança do Estado não divulgou indicadores criminais por bairros. Mas houve um aumento de 2% no volume de homicídios, com mais 12 mortes violentas em relação ao mesmo período do ano anterior.

Na última quarta-feira (25), o secretário da Segurança Pública, Wantuir Jacini, anunciou que o Estado passará a divulga indicadores de criminalidade apenas a cada seis, devido à defasagem tecnológica do sistema utilizado.

O secretário informou que o governo já adquiriu um novo software para modernizar a coleta de dados, mas que não há previsão para que o novo equipamento seja colocado em operação. As próximas estatísticas deverão ser divulgadas apenas em agosto.

O governo passado, que implementou os territórios, divulgou um ano depois da implantação que o índice de mortes violentas havia caído 30% nos quatro locais devido à ação das polícias e de outros órgãos do Estado, como de assistência social e justiça e direitos humanos. A estatística, entretanto, foi contestada pela atual gestão.

Logo que assumiu, em janeiro de 2015, o secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Wantuir Jacini, determinou um corte de 40% nas horas extras da Brigada Militar para gerar uma economia de R$ 24 milhões anuais na folha de pagamentos da corporação. O subcomandante da Brigada, coronel Paulo Stocker, disse na época que os cortes seriam pontuais e que a população não iria "sentir absolutamente nada”.

Jacini reconheceu, porém, que o desmonte dos Territórios de Paz acabou prejudicando as comunidades envolvidas, mas dividiu a responsabilidade com outros órgãos públicos que, segundo ele, deveriam complementar a ação policial. “Só ficaram as polícias (nos Territórios de Paz). As outras instituições, principalmente das áreas de assistência social, foram saindo antes. Na parte social o programa infelizmente não gerou efeitos”, justificou.

O secretário disse que o governo estuda um programa alternativo que ainda está em fase de definição por parte das áreas técnicas envolvidas na segurança pública. Não há prazo, segundo Jacini, para a definição do tipo de projeto que será implantado nem data para que isso ocorra.

Outros dez Territórios de Paz implantados em cidades da região metropolitana também foram desativados pelo governo gaúcho desde abril de 2015.