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App mapeia 42 pontos representativos da cultura afro-brasileira no Rio

Quitandeiras da Lapa (1819-1820, Rio de Janeiro) - Henry Chamberlain/Reprodução
Quitandeiras da Lapa (1819-1820, Rio de Janeiro) Imagem: Henry Chamberlain/Reprodução

Rogério Daflon

Da Agência Pública, no Rio

19/07/2016 13h44

Dentre os seis pontos do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, destaca-se o Centro Cultural José Bonifácio, um prédio renascentista onde funciona desde os anos 1990 um centro de referência da cultura afro-brasileira. A Pedra do Sal, na base do morro da Conceição, na região portuária do Rio de Janeiro, também integra o circuito. Sua rocha, na rua Argemiro Bulcão, era o lugar onde o sal era descarregado por escravos no século 18. A reportagem é da "Agência Pública".

A região foi palco do surgimento do samba nas duas primeiras décadas do século 20 pelas mãos de descendentes de escravos. Ranchos carnavalescos, afoxés e rodas de samba são parte de sua história. Atualmente, é ponto de convergência de sambistas da cidade.

As historiadoras Hebe Mattos, Martha Abreu e Keila Griberg consideram o circuito da prefeitura diminuto diante da presença histórica dos negros na zona portuária. As três criaram um aplicativo para celular com 42 lugares representativos da cultura afro-brasileira na região, de nome “Passados presentes”. Ele inclui também a história do porto após a abolição da escravatura, na virada do século 19 para o 20, quando negros vieram da Bahia para antigas áreas cafeeiras do Vale do Paraíba.

“É uma parte muito valiosa da história do porto, quando os escravos recém-libertos migram para a atividade portuária e se engajam em sindicatos de estivadores, influenciando em muito a ocupação do lugar”, diz Florentino.

“Mesmo os pontos indicados pela administração municipal apresentam problemas, como as placas rasgadas no Cais do Valongo”, diz Martha. “Ali, há terreiros de candomblé importantes, trapiches e cortiços que resistiram.” Ela aponta para a presença de cortiços no final do século 19, que abrigavam essa população de ex-escravos, como um marco.

“A destruição do cortiço Cabeça de Porco, determinada pelo então prefeito do Distrito Federal, Barata Ribeiro, expulsou mais de 4.000 pessoas dali”, diz o historiador Claudio Honorato. Esse cortiço ocupava quase toda a rua Barão de São Félix e se estendia até o morro da Providência. “Sua destruição foi algo nitidamente para dar exemplo.”

Há sete pontos indicados no aplicativo com tradicionais rodas de capoeira, o que sempre reforça a imagem do grande capoeirista da região, o Prata Preta, um dos líderes da Revolta da Vacina. A praça da Harmonia, onde houve a resistência, também está no aplicativo das historiadoras.

Um quilombo no meio do porto das remoções

Existe um quilombo na área da Pedra do Sal, explica Damião Braga, presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal, a quem quiser ouvir. E ouve avanços rumo à sua demarcação.

O município sancionou em 2014 uma proposta do então vereador Eliomar Coelho (PSOL), criando a Aeic (Área de Especial Interesse Cultural) do Quilombo da Pedra do Sal. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) fez um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Quilombo da Pedra do Sal. Em 2010, publicou nos diários oficiais do Estado do Rio e da União parte desse estudo, que consiste em um extenso relatório histórico e antropológico do quilombo, além de um levantamento fundiário.

“Temos o reconhecimento da Fundação Palmares, que é um órgão do governo federal, como Patrimônio Afro-Brasileiro. Agora falta a titulação do Incra, do Estado e do município”, diz Braga.

Segundo ele, o Incra tem o poder de titular cerca de 60% de toda a área, incluindo imóveis. Já o município tem um pouco menos de 40%, mas até agora não avançou na titulação. “Por que a prefeitura não faz a titulação?”, pergunta Braga. “Será porque ali é alvo de interesse imobiliário?”

Braga vê o processo de ocupação por negros como contraponto fundamental à gentrificação que vem ocorrendo no porto, por causa das obras de infraestrutura do Projeto Porto Maravilha. E garante que o quilombo fará seu papel de resistência nesse processo. Os argumentos para esse reconhecimento, reunidos no relatório do próprio Incra, são profundos.

Ele ressalta que o porto é um ponto de convergência da cultura negra em diferentes épocas. Um trecho do documento mostra esse poder agregador da região. “O território da Pedra do Sal, como local de chegada, recepção e ajuda entre baianos, no final do século 19, pode ser ainda evidenciado pelas declarações de uma de suas ilustres representantes, Carmem Teixeira da Conceição, conhecida como Tia Carmem: ‘Tinha na Pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era uma casa de baianos e africanos, quando chegavam da África ou da Bahia. Da casa deles se via o navio, aí já era uma bandeira branca, sinal de Oxalá, avisando que vinha chegando gente’”.

O relatório conclui: “Esse modo de viver e receber os que chegavam incorporou-se ao modo de vida da região e pode ser verificado com outros exemplos. Os antepassados dos que hoje reivindicam a identidade de remanescentes quilombolas chegaram à região da mesma forma. Foram acolhidos por negros, portuários e irmãos de santo, chegados anteriormente. Trataram de recompor os pedaços de sua própria experiência de desterritorialização, formando agremiações ou realizando atividades coletivas de trabalho, culto ou lazer”.

Morador do porto, o arquiteto Felipe Nin chama a atenção para o número de ocupações populares organizadas de prédios abandonados que foram destruídas pela prefeitura, como a Quilombo das Guerreiras, Machado de Assis e Zumbi dos Palmares. “A prefeitura quer demonstrar apreço pela memória, enquanto quer tirar a população pobre da região”, critica ele. O fotógrafo Maurício Hora, morador do morro da Providência, também foi testemunha da sanha da prefeitura de remover famílias. Ele chegou a escrever um artigo para o “New York Times” denunciando a falta de critério da gestão pública.

“Queriam tirar do morro da Providência o que lhe dá sentido: a população”. Nascido no morro, Maurício também está envolvido na luta pela demarcação do Quilombo da Pedra do Sal. “Nós somos negros e descendentes de escravos daqui. Temos de lutar pela nossa permanência”, afirma. Filho de estivador, Luiz Torres, pontua: “O Quilombo da Pedra do Sal vai ajudar a recuperar e preservar a história do negro no porto”.

A inglesa Maria Graham descreve o dia em que, no Valongo, flagrou o olhar assustado de negros adolescentes no mercado de escravos. Colocar-se no lugar daqueles jovens pode trazer uma reflexão importante sobre o passado que se soterra em nome da cobiça pelo amanhã: “Em uma casa, as portas estavam fechadas até meia altura e um grupo de rapazes e moças, que não pareciam ter mais de 15 anos, e alguns muito menos, debruçava-se sobre a meia porta e olhava a rua com faces curiosas. Eram evidentemente negros bem novos”.