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Em 10 anos, polícia do RJ mata quase o dobro que a polícia de todos os EUA

Em dezembro de 2015, cinco jovens morreram ao terem o carro onde estavam atingido por 63 tiros disparados por PMs em Costa Barros - Fabiano Rocha/Agência O Globo
Em dezembro de 2015, cinco jovens morreram ao terem o carro onde estavam atingido por 63 tiros disparados por PMs em Costa Barros Imagem: Fabiano Rocha/Agência O Globo

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

11/11/2016 06h00

No dia 1º de novembro, um grupo de moradores da favela Chapéu Mangueira, na praia do Leme, na zona sul do Rio de Janeiro, desceu o morro arrastando em um lençol ensanguentado o jovem Jonas Jesus de Souza, 20, baleado durante tiroteio entre criminosos e policiais militares. Ele não foi socorrido pelos PMs e morreu no hospital, cerca de duas horas depois, após ser levado até lá de ônibus.

O atestado que confirmou o óbito de Jonas, militar e pai de um menino de 1 ano, acrescentou mais uma vítima às estatísticas de pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro, número que tem crescido mês a mês desde o começo do ano, de acordo com dados do ISP (Instituto de Segurança Pública).

Entre janeiro e setembro, último dado disponível, já foram registradas 635 mortes contra 645 em todo ano passado.

Considerando os últimos dez anos, a polícia no Estado foi responsável pela morte de 8.052 pessoas –no mesmo período, entre 2006 e 2015, 4.526 pessoas foram mortas pelas polícias dos 50 Estados dos EUA, conforme dados do FBI (Federal Bureau of Investigation), 56,3% dos mortos pela polícia fluminense.

No Rio, onde vivem, de acordo com o IBGE, 16 milhões de pessoas, a taxa de mortes em decorrência de intervenção policial por 100 mil habitantes --índice geralmente usado para aferir a criminalidade e comparar crimes em regiões diferentes--, foi de 3,9 em 2015.

Nos EUA, onde a CIA (Central Intelligence Agency) registra cerca de 324 milhões de habitantes, a taxa no ano passado ficou em 0,19. 

 

Lá, as mortes cometidas por policiais têm causado uma série de protestos, como o movimento "Black Lives Matter", e levaram à criação de levantamentos paralelos e à promessa do atual governo de que não só a metodologia de contagem das mortes como a letalidade da polícia americana será revista –um levantamento conduzido pelo jornal de "The Guardian" batizado de "The Counted" contabilizou 915 mortos nos EUA pela polícia em 2015, contra os 632 registrados oficialmente.

No Rio, mesmo os comentários do Poder Público sobre as mortes, à exceção de alguns casos, são raros.

Questionada sobre o grande número de mortes cometidas por policiais, a Secretaria de Segurança limitou-se a orientar a reportagem do UOL a procurar a Polícia Militar. A PM, por sua vez, não comentou o dado em si e afirmou, em nota, que "continuará intensificando operações e ações para coibir crimes de letalidade violenta e aperfeiçoando o emprego do efetivo para reduzir os demais índices criminais".

José Mariano Beltrame, que deixou a chefia da Segurança Pública do Estado em outubro após quase dez anos no cargo, justificava com frequência as mortes causadas por policiais como um dos resultados da "guerra" existente no Estado, em especial na capital fluminense. 

“Você tem algo aqui, que não existe no resto do mundo, que são três facções criminosas ideologicamente distintas, que se odeiam e que todas elas têm uma idolatria, um apego imenso por armas de guerra”, afirmou, em junho, em entrevista ao jornal "El País". "Há áreas que a gente chama 'de guerra', ilhas de violência com um imperador lá dentro e seu respectivo staff de segurança."

Para a organização Human Rights Watch, que lançou em julho o relatório "O Bom Policial Tem Medo: Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro", os números endossam "o entendimento das autoridades de que execuções extrajudiciais são bastante comuns" no Estado.

"O número de mortos por ação policial é muito maior do que o número de baixas na polícia, fazendo com que seja difícil acreditar que todas estas mortes ocorreram em situações em que a polícia estava sendo atacada", diz o relatório. Para cada policial assassinado no Rio de Janeiro em 2015, outras 25 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais, de acordo com levantamento feito pelo UOL com base em dados do ISP. Nos EUA, segundo a ONG, esse número é de nove para um.

As 645 mortes cometidas pela polícia fluminense em 2015 representam, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 19,3% do total das 3.345 mortes decorrentes de intervenção policial no país registrado no ano passado.

Diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno diz que fica claro o uso excessivo da força letal tanto no Estado quanto no resto no país e ressalta que não há interesse em aferir esse número --e menos ainda em investigá-lo.

“Não há vontade política para registrar essas mortes, cobrar sua apuração. É uma letalidade muito grande, no Rio e no Brasil como um todo. Isso considerando os esforços para registro, há muita subnotificação. Nos EUA, até o número de balas disparadas pelos policiais é controlado, você tem esse nível de detalhamento, há comoção em torno do tema. Por isso, sempre usamos 'ao menos tantos mortos' nos anuários [publicação anual produzida pelo Fórum com números de segurança pública no país]”, afirma.

Jonas - Reprodução/Faceboook - Reprodução/Faceboook
Jonas com a companheira Geiziane e o filho de um ano
Imagem: Reprodução/Faceboook

Os moradores da Chapéu Mangueira que socorreram Jonas, o jovem baleado no Leme, tentaram colocar a vítima no banco de trás de um carro de polícia, mas os PMs, assustados, arrancaram em alta velocidade, deixando-o caído no asfalto, a poucos metros da orla.

Eles atiraram pedras contra um ônibus que passava por ali até pará-lo, colocaram o jovem dentro do coletivo e o levaram até o Hospital Municipal Rocha Maia, no bairro vizinho de Botafogo. Pouco depois de chegar à unidade, Jonas, baleado na cabeça, não resistiu aos ferimentos e morreu.

Jonas, na versão da Polícia Militar, foi encontrado baleado durante uma operação na favela, quando os agentes apuravam uma denúncia sobre o paradeiro de um traficante em um local conhecido como "Igrejinha”. De acordo com a assessoria da corporação, “os policiais foram recebidos a tiros e revidaram”. Na sequência, o encontraram, já ferido.

Segundo a polícia, ele trazia consigo uma pistola, munição, granadas, drogas e rádios transmissores. Os agentes não teriam conseguido fazer o socorro devido a um "tumulto causado por populares" que teriam atirado pedras contra a viatura que fazia o transporte do jovem.