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No bairro de jovens mortos em chacina em SP, escola é refúgio

Distrito de São Rafael, zona leste de SP, onde viviam os 5 jovens mortos em chacina - Zanone Fraissat/Folhapress
Distrito de São Rafael, zona leste de SP, onde viviam os 5 jovens mortos em chacina Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

11/12/2016 06h00

"Eu só vim aqui para ver a escola", respondeu o menino que descia com sua cadeira de rodas pelo terreno inclinado e contíguo, ao ser surpreendido e questionado sobre o que fazia ali.

Na memória de uma educadora da Escola Estadual Professor Isaac Schraiber, no Parque São Rafael, extremo leste da cidade de São Paulo, foi a lembrança que restou de Robson Fernando Donato de Paula, 16.

Ele era amigo de Jonathan Moreira Ferreira, 18, estudante dali. Os dois foram mortos com outros três jovens (Jones Ferreira Januário, 30; César Augusto Gomes Silva, 19; e Caíque Henrique Machado Silva, 18) em uma chacina recente na Grande São Paulo. Na Isaac Schraiber, também estudava o irmão gêmeo de Jonathan, Robert, que se transferiu para uma escola do Paraná 15 dias antes de o irmão e os outros rapazes desaparecerem, conforme registro escolar.

Os jovens sumiram na noite do dia 21 de outubro, uma sexta-feira, quando estavam a caminho de uma festa em Ribeirão Pires, município da região metropolitana de São Paulo, para a qual teriam sido convidados pelo perfil de uma garota no Facebook.

Foram encontrados em covas rasas, recobertos de cal (que age como ácido e apressa a decomposição dos corpos), no dia 6 de novembro, em uma área rural de Mogi das Cruzes (Grande São Paulo). Robson, que ficara paraplégico após um tiro de um policial militar em 2014, foi morto a facadas. Os outros quatro receberam tiros.

A suspeita é de que tenham sido assassinados para vingar a morte de um guarda civil municipal de Santo André (região do ABC paulista). Eles teriam sido emboscados no caminho da suposta festa. As investigações seguem em segredo de Justiça.

Evasão e Fundação Casa

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A Escola Estadual Professor Isaac Schraiber, no Parque São Rafael
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL
A educadora que viu Robson naquele dia, uma mulher de cabelos loiros e olhos pequeninos, se entristece com as mortes, ao mesmo tempo em que busca uma explicação e um consolo. Sentada em sua sala diante do computador, com o registro de aluno de Jonathan em mãos, vai refazendo a trajetória escolar do jovem.

Jonathan estudou a vida toda em escola pública e grande parte na Escola Municipal de Ensino Fundamental Júlio de Grammont, no vizinho Jardim Rodolfo Pirani, onde ele morava com a família. Concluiu o ensino fundamental sem repetir um ano.

Começou a ter problemas na passagem do ensino fundamental para o médio, processo que incluiu a mudança para a escola Isaac Schraiber. "O elo se perde nessa passagem", constata a educadora, lembrando a situação geral de evasão quando o jovem da periferia chega ao ensino médio. Na sua escola, por exemplo, das oito turmas de ensino médio iniciadas, apenas três concluem o curso.

A partir do ensino médio, o garoto alterna abandono escolar com internação na Fundação Casa, onde cumpriu medida socioeducativa e concluiu o primeiro ano do ensino médio. Não chegará ao fim do segundo.

'Chacina será logo esquecida'

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Citação do dramaturgo Bertolt Brecht no acesso à escola Prof. Carlos Henrique Liberalli
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL
Para a educadora da Isaac Schraiber, o ingresso desses meninos no crime é a consequência de uma "longa história de segregação", somada à falta de perspectivas de cidadania no presente e à pressão para ter bens de "status", ser popular e aceito pelo grupo. "Eles são frutos disso. A ponta final dessa situação toda é a periferia", ressalta.

"Estamos perdendo nossos jovens para o tráfico", concorda uma educadora da Escola Estadual Professor Carlos Henrique Liberalli, do vizinho Jardim Santo André. "Nossos jovens não conseguem ter o padrão de vida que veem na TV e na internet e partem para o crime."

Em 2016, ela lista as mortes de três de seus alunos, todas em decorrência de ações criminais. Um cenário trágico, diz, que vem se repetindo ano após ano. "Essa chacina agora gerou toda essa comoção e será logo esquecida, como todas as outras", diz, com pessimismo.

"Para os jovens, é mais fácil conseguir as coisas pelo 'não trabalho', e isso acaba virando o trabalho deles", complementa a educadora do Isaac Schraiber. "O certo virou o errado, e o errado virou o certo. Eles acabam achando que aquilo que fazem é o certo."

Vida dupla

Escola Rafael 3 - Guilherme Azevedo/UOL - Guilherme Azevedo/UOL
Inscrição no muro de escola no distrito de São Rafael
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL
Na escola Júlio de Grammont, outra educadora compartilha desesperanças: "Estamos num lugar muito difícil, em que há poucas oportunidades para os jovens e eles acabam aliciados", descreve. "O pai dele está preso, o irmão está preso e a tendência de que ele seja preso é grande também. É um círculo que parece que não termina nunca. As referências desses jovens são muito ruins."

Sobre os garotos que foram mortos e estudaram na Júlio de Grammont (além de Jonathan, também foi aluno César Augusto Gomes Silva), ela diz se recordar bem: "Estavam sempre com os tênis mais caros, só vestiam roupas de marca. Eram indícios de que algo estava acontecendo. Esses jovens sempre tiveram uma vida dupla. Estavam aqui, mas também em outro lugar. Está muito claro que eles estavam envolvidos com o crime. Aqui só tem o crime."

Ela disse "saber bem" também como age a polícia na região: "Ela vem aqui disposta a não respeitar nada. Parece que estamos todos sentenciados". Exemplifica com o caso de um aluno de apenas seis anos, que se desespera quando vê um policial por perto, porque, para ele, "a polícia só bate e mata".

Escola São Rafael 4 - Guilherme Azevedo/UOL - Guilherme Azevedo/UOL
Trabalhos dos alunos da região sobre o racismo
Imagem: Guilherme Azevedo/UOL
Para as educadoras dessas três escolas, é preciso rever e melhorar a política para os jovens, e a escola é elemento central desse movimento: "A escola é o único local que eles têm", resume a educadora da escola Carlos Henrique Liberalli. "A escola é ainda o lugar mais seguro para essas crianças", afirma a profissional da Júlio de Grammont.

A educadora da Isaac Schraiber conta uma história para explicitar a importância da escola na comunidade. Todos os dias encontrava um grupo de jovens na frente da escola, embora não fosse de alunos, e isso a incomodava. Por que não saíam dali?

Até que um dia interpelou o grupo: "O que vocês querem?". Eles responderam que gostavam da escola e queriam ficar lá dentro. Ela propôs: "Vocês me tragam um projeto que eu autorizo a entrada de vocês". Para a surpresa dela, montaram um grupo de dança. Ela então cedeu uma sala para o grupo ensaiar: "Eles agora se apresentam para os alunos, estão sempre aí, dançando", sorri.

Região tem alta em roubos e assassinatos

Do lado de fora das escolas do distrito de São Rafael, a onda recente de assaltos domina as conversas. Os moradores contam que não dá para parar no semáforo à noite que logo atacam. Dizem que não se pode ficar na rua depois de certa hora, porque se torna perigoso. "Estão assaltando até gente do próprio bairro", reclamam.

A morte dos garotos coincidiu com a escalada da violência no São Rafael, onde vivem, segundo a Prefeitura de São Paulo, cerca de 150 mil pessoas. A partir de meados de outubro, como reação à crescente insegurança, os moradores lançam a página "Moradores do Parque São Rafael - Chega de Impunidade" no Facebook e organizam uma passeata pedindo mais segurança e a abertura da delegacia local aos fins de semana. Hoje, eles têm de se dirigir à delegacia do vizinho São Mateus se precisarem registrar ocorrências.

Meninos chacinados 2 - Hélvio Romero/Estadão Conteúdo - Hélvio Romero/Estadão Conteúdo
Choro no velório de jovens encontrados mortos em Mogi das Cruzes (SP)
Imagem: Hélvio Romero/Estadão Conteúdo
Os números recentes da violência local confirmam a observação nas ruas.

Segundo a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, o número de roubos no distrito cresceu 29,4% de 2015 para 2016 (até outubro, foram 1.201 casos contra 928 no mesmo período do ano passado). Já em toda a cidade de São Paulo a subida foi de 15,2%.

Em relação ao número de assassinatos, o São Rafael registrou 20 vítimas até outubro de 2016 contra 16 até o mesmo mês de 2015, um crescimento de 25%. Na cidade de São Paulo, o número de assassinatos caiu 16,6% de 2015 para 2016.