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Como descer fora do ponto pode ajudar as passageiras de ônibus em SP?

Brunna Valin trabalha até as 22h no centro de São Paulo e volta para casa de ônibus - Evelson de Freitas/UOL
Brunna Valin trabalha até as 22h no centro de São Paulo e volta para casa de ônibus Imagem: Evelson de Freitas/UOL

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

03/01/2017 05h00

Quando sai do trabalho, por volta das 22h, é na avenida São Luís, no centro de São Paulo, que Brunna Valin pega o ônibus para voltar para casa, na periferia paulistana. O percurso até o Jardim Fernandes, na zona leste, a 20 km de distância, leva quase 90 minutos. Até chegar lá, imprevistos podem acontecer.

O ponto de ônibus mais perto de onde ela mora fica a 20 minutos andando, e a rua é pouco iluminada. Para encurtar a caminhada, ela ainda usa uma lotação depois do ônibus. Nos últimos sete meses, porém, por duas vezes foi abordada por ladrões, à noite, e perdeu a bolsa.

“Eram dois rapazes [na primeira vez], e um deles me chutou, ele foi agressivo. Eu estava voltando de um ensaio de dança, no fim de semana, estava carregando umas roupas de shows que às vezes faço, e eles levaram”, ela diz.

Valin, 41, é transexual e orientadora socioeducativa no CRD (Centro de Referência e Defesa da Diversidade). Afirma que as pessoas do gênero feminino são vistas por bandidos como as mais oportunas. “O sexo frágil, para o assaltante, é o feminino. É a mulher que é a mais frágil”, diz. Por isso costuma pedir ao motorista de ônibus que pare no local que considera mais seguro para descer.

Já aconteceu de eu ser assediada e o assediador descer no ponto de ônibus junto comigo"

Brunna Valin, orientadora socioeducativa

Desde julho de 2016 em São Paulo, a lei municipal 16.490 garante a passageiras e idosos o direito de desembarcar fora do ponto entre 22h e 5h. A regulamentação por decreto saiu em outubro, deixando explícito que a identificação de gênero deve ser respeitada.

Valin acha bom não precisar depender do humor do motorista. “Em alguns casos, eles colaboram. Já passei pelo sim e pelo não do motorista [antes da nova lei].”

Brunna Valin, ao desembarcar do ônibus na zona leste de São Paulo - Evelson de Freitas/UOL - Evelson de Freitas/UOL
Brunna Valin desembarca fora do ponto, na zona leste, perto da rua onde fica sua casa
Imagem: Evelson de Freitas/UOL

A proposta dos vereadores Toninho Vespoli (PSOL) e Gilberto Natalini (PV) partiu de relatos das próprias usuárias do transporte coletivo.

“As mulheres acabam vivendo uma tortura psicológica todas as noites, principalmente aquelas que trabalham e estudam”, diz Vespoli. “Não é só a agressão que a pessoa pode sofrer, o problema também é viver apavorada.”

De acordo com o vereador, inesperadamente, algumas pessoas entraram em contato com ele pelas redes sociais para reclamar da lei, com o argumento de que a preocupação com a segurança deveria valer para todos, e não só para as mulheres.

“Vários homens me procuraram para dizer que também sofriam violência, que poderiam ser assaltados: ‘Por que só para mulher?’. Isso suscitou um debate, a mulher tem especificidades. Se for violentada, por exemplo, o trauma é infinitamente maior do que o trauma de alguém levar seu celular”, aponta ele, como uma das razões para a relevância da lei.

“Não é só o assalto na rua”, afirma Valin. “Pode ser uma saída para os casos de assédio que acontecem dentro dos ônibus. Eu já passei por assédio sexual, já pedi para descer fora do meu ponto por causa disso. Porque já aconteceu de eu ser assediada e o assediador descer no ponto junto comigo.”

Solução de emergência

A arte-educadora Francine Machado de Mendonça, 38, acha que a lei ajuda, mas é uma medida paliativa. Moradora do bairro Sacomã, na zona sul da cidade, ela usa quatro conduções (entre metrô e ônibus) para dar aulas à noite, três vezes por semana, em uma escola na periferia de Santo André.

Demora muito até você educar os meninos para respeitar as mulheres."

Francine Machado de Mendonça, arte-educadora

“Parece um pouco aquela história das cotas [raciais] como política de reparação, porque esperam que a escola vá resolver todos os problemas [da sociedade]”, ela afirma. “Demora muito até você educar os meninos para respeitar as mulheres. Até que isso aconteça efetivamente, eles fazem uma medida emergencial, que resolve temporariamente, enquanto a escola está fazendo seu trabalho de formiguinha para os meninos não serem violentos.”

Francine Machado de Mendonça, arte-educadora e professora - Gabriela Fujita/UOL - Gabriela Fujita/UOL
Francine de Mendonça pega até quatro conduções para trabalhar à noite em Santo André
Imagem: Gabriela Fujita/UOL

A professora sai da escola às 22h30 e só chega em casa por volta de meia-noite. Ela diz se considerar privilegiada, de certa forma, em relação a outras mulheres porque, às vezes, pode contar com uma carona. Mas diz que já foi assaltada várias vezes, mesmo estando acompanhada.

“Teve uma época que eu morei na Vila Mariana e estudava na Bela Vista [região próxima à avenida Paulista]. Eu descia no metrô Ana Rosa e tinha que andar umas quatro ruas até chegar em casa. Era um lugar um pouco deserto, onde as pessoas têm mais carro e não ficam na rua à noite. Uma vez, eu estava com o meu namorado, abordaram a gente e levaram todo o salário dele.”

Embora critique as más condições de infraestrutura na periferia, em relação aos bairros mais centrais de São Paulo, o que faz aumentar o risco de violência, ela acha que a possibilidade de descer fora do ponto é positiva.

“Tem muita mulher como eu trabalhando, estudando, chegando tarde em casa, que não tem alguém que a busque. Na periferia, você está meio jogado para as traças. O que ajudar, vai ser bem-vindo, mesmo que seja uma medida paliativa, enquanto as de longo prazo não chegam”, ela avalia.

O que diz a lei

Segundo o decreto publicado no "Diário Oficial", os veículos vinculados ao sistema de transporte coletivo urbano de passageiros na cidade de São Paulo poderão parar fora dos pontos preestabelecidos para desembarque entre 22h e 5h, em dias úteis, feriados e finais de semana.

A regra também vale para as pessoas que estiverem acompanhando as mulheres ou idosos, desde que todos desembarquem no mesmo local.

Independentemente do que está registrado no documento da passageira, deve ser considerada sua identidade de gênero autodeclarada, permitindo a travestis e mulheres transexuais descerem fora do ponto de ônibus.

O desembarque deve ser feito dentro do itinerário determinado pela Secretaria Municipal de Transportes ou pela SPTrans e é preciso que exista um espaço mínimo para o motorista estacionar.

Não é permitido descer fora do ponto em corredores exclusivos que fiquem à esquerda das vias usadas pelos carros nem nos viadutos, túneis e pontes.

Se não houver condições de parar, o motorista deve sugerir uma alternativa adequada.

Entre julho e outubro de 2016, foram feitas 6.473 reclamações de pedidos de embarque e desembarque não atendidos, segundo informações da SPTrans. Desse total, 24 queixas se referiam à lei 16.490.

O SPUrbanuss, sindicato que representa as 14 empresas concessionárias do serviço de transporte coletivo, com 9.000 ônibus, informou que todos os operadores foram orientados para as normas da nova lei e que as reclamações devem ser feitas pelo telefone 156.