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De perseguição na ditadura a quadro no Faustão: a história de oito irmãos e seu circo

Os Zanchettini: Amaury (caracterizado com o palhaço Pequi), Edlamar, Áurea, Wanda (a matriarca), Sílvio, Erimeide, Solange, Márcia e Márcio - Rafael Moro Martins/UOL
Os Zanchettini: Amaury (caracterizado com o palhaço Pequi), Edlamar, Áurea, Wanda (a matriarca), Sílvio, Erimeide, Solange, Márcia e Márcio Imagem: Rafael Moro Martins/UOL

Rafael Moro Martins

Colaboração para o UOL, em Curitiba

04/01/2017 05h00

"Pra quem é de circo, casa é onde o circo está. Criança, do mesmo jeito: nasce onde o circo está", explica Erimeide Zanchettini, 55. É o caso dela mesma, vinda de uma família de dez irmãos nascidos na estrada e criados entre trailers, lonas, picadeiro, roupas de palhaço e globo da morte. Até hoje. A história de Erimeide, da mãe dela, Wanda Zanchettin, 87, da família toda, não se pode contar separada da história do circo Zanchettini.

A história dos Zanchettini é única, mas também muito similar à das cerca de cinco mil famílias que ainda hoje rodam o país, em caravanas de caminhões, carros e trailers. A estimativa é de uma das irmãs, Edlamar, 59, de nome inspirado na atriz hollywoodiana Hedy Lamarr, atual presidente do Conselho Nacional de Circos Itinerantes, criado justamente para defender a causa dos artistas mambembes.

"Somos ao todo dez irmãos. Oito vivem nesse e desse circo. Uns 60 anos atrás minha avó já estava no negócio, trabalhou em São Paulo até montar o próprio circo. Quanto minha mãe e meus tios ficaram jovens, fizeram sociedade com meu pai num outro. Finalmente, meu pai e minha mãe montaram o próprio circo, que durante um tempo chamou-se circo teatro Gávea, e foi rebatizado Zanchettini após a morte do meu pai. Isso em 1990", rememora Erimeide.

"E não somos só nós. Os primos, os tios, todo mundo tem circo. Tem o Torricceli, o Romani, o Áurea", enumera.

Acho que tem uns dez circos só na nossa família."

A reportagem do UOL visitou o modesto, mas bem cuidado circo Zanchettini numa fria e chuvosa tarde de dezembro em Curitiba. A cidade, hoje, é a base da família, a maior parte dela nascida entre o noroeste e o oeste do Paraná, que comprou uma casa em Santa Felicidade, bairro famoso pelos restaurantes italianos de frango com polenta.

"É pra mãe descansar", diz Erimeide --Wanda, há alguns meses, teve um acidente vascular cerebral. "Usamos quando alguém fica doente, como endereço para correspondência. Mas a mãe não quer saber da casa. O próprio neurologista falou que seria melhor pra recuperação dela ficar com a gente." Assim foi feito. E ela fez questão de conhecer o repórter que visitava seu circo --e de posar para a foto com os filhos.

Circo Zanchettini - Rafael Moro Martins/UOL - Rafael Moro Martins/UOL
Imagem: Rafael Moro Martins/UOL

Dona Wanda, a matriarca, é nascida em Santa Puitã, distrito de Ponta Porã (MS). Erimeide é de Cidade Gaúcha (PR), tal qual o irmão Amaury, 54 --mais conhecido como Palhaço Pequi, uma das atrações do espetáculo. Outro irmão, Sílvio, 43, nasceu em Aparecidinha (PR). Márcia, 45, em Naviraí (MS). Há ainda na trupe gente nascida em Santa Catarina e em Goiás.

O circo dos Zanchettini tem 39 integrantes. A maior parte é da família. Alguns, como André Luís de Souza, 28, que no espetáculo faz os números de equilibrismo, são "adotados". “Ele chegou aqui com menos de um ano. A tia dele era casada com Márcio, meu irmão --também do circo. Foi adotado por nós. Pelo circo e pela família”, conta Erimeide, atualmente a mestre de cerimônias do Zanchettini.

"Eu nunca soube o que é ter um elo com uma cidade, um lugar. Por conta disso, era difícil estudar. Íamos para a aula como alunos ouvintes, sem matrícula formal, histórico escolar ou coisa do tipo. Dependendo do tamanho da cidade em que estávamos, precisávamos levar cadeiras da plateia do circo para assistir às aulas. Mas todos fizemos até o segundo grau", diz ela, orgulhosa.

Na ditadura, ameaças e visitas do Dops

Nem sempre, contudo, a vida na estrada é fácil. E já foi muito dura anos atrás, quando o país vivia sob a ditadura militar. "Os circos eram muito perseguidos na década de 1970. Era comum estarmos trabalhando e chegarem polícia, Exército, pararem o espetáculo, revistarem todo mundo –os artistas e a plateia", lembra Márcia.

Isso quando era possível se apresentar. "Uma vez, em Cantagalo (331 km a oeste de Curitiba), chegou o delegado e nos impediu de seguir montando a lona. Minha mãe pediu pra trabalhar, mas ouviu que não tinha conversa, que seríamos enquadrados. Pegaram um rapaz que trabalhava no circo, que tinha saído para buscar feijão, e o fizeram comer grama do jardim da praça", conta Erimeide. "Noutra, em Catanduvas (476 km a oeste de Curitiba), fomos ameaçados de morte pelo prefeito se entrássemos na cidade."

Poder entrar era só um dos problemas. "O espetáculo tinha que ter autorização do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Tínhamos que contar quais os textos das piadas. E eles vinham ver se era isso mesmo, sentavam na primeira fila", fala Márcio.

"O Brasil daquele tempo, no interior, era um faroeste. Minha mãe viu desmatarem o que virou [a cidade de] Maringá (436 km a noroeste de Curitiba, fundada em 1947, hoje a terceira mais populosa cidade do Paraná, com mais de 400 mil habitantes), relembra Erimeide

Matava-se a tiro por pouca coisa."

Na "cidade grande", derrotando os celulares

Apesar da casa da família na cidade, havia 14 anos que o circo Zanchettini não aparecia em Curitiba. "Queríamos vir antes, até pra cuidar da mãe, quando estávamos no Mato Grosso do Sul. Era dezembro de 2015. Mas choveu muito, caíram pontes, e o acesso ao Sul do país ficou interditado. Refizemos o plano, tomamos um caminho mais longo", conta ela.

"Circo é assim. Um vai na frente, cuidando da burocracia na cidade seguinte. Se surge um empecilho, que obrigue a um pulo (termo usado para definir a distância entre duas paradas) muito grande, refazemos o planejamento", explica Márcia.

Pois nem só em cidade pequena tem público para circos como dos Zanchettini.

Na cidade grande, o que trazemos é um alívio. O povo está cansado de shopping, do celular, do videogame", acredita Amaury.

Encantar os moradores das metrópoles com seu espetáculo à moda antiga --e, por vezes, até ingênuo-- é um orgulho para a família. "Uma vez, apareceu um senhor, que trouxe o neto e um livro. No final, ele veio dizer que tinha pensado em ler o livro para passar o tempo durante o espetáculo, mas que não conseguiu tirar os olhos do picadeiro, e que no dia seguinte traria a mulher", fala Erimeide. "Quando os palhaços entram no picadeiro, não tem criança que não largue o celular", garante o Pequi.

Também há quem aproveite a chegada do circo para realizar sonhos acalentados desde outros tempos. "Uma vez, um homem, era doutor, vizinho de onde estávamos montados, pagou entrada, mas pediu pra entrar de furão, por baixo da lona. Era um sonho de infância. E não foi a única vez que aconteceu", diverte-se ela.

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R$ 320 mil, o preço de uma lona

Não se ganha muito dinheiro com o circo, conta Amaury. "Dá dinheiro pra viver. Pra ficar rico, não. Mas a gente não precisa de muito para ser feliz. Nossas crianças conhecem lugares diferentes, são capazes de perceber mudanças de lua, de estação, que as crianças da cidade não percebem", afirma.

"Acabamos de comprar uma lona nova para o circo", ele explica. Com 40 metros de diâmetro, e dois mastros, a dos Zanchettini é do "tamanho médio", na definição da família. Custou R$ 320 mil --financiados. "Vamos pagar em oito anos. Temos nossa casa, que usamos quando precisamos. Nossa vida é muito boa."

"Veja" --ele prossegue-- "esse terreno [no Santa Quitéria, bairro de classe média na região oeste de Curitiba, onde anos atrás funcionava uma filial da Ceasa] era abandonado. Chegamos, limpamos o terreno, acabamos com o mato, erguemos a lona e trouxemos um bom espetáculo. Esses dias, vizinhos vieram nos convidar para participar da novena de Natal. Fomos, com prazer. Onde vamos, somos bem aceitos", orgulha-se.

No circo, todos fazem de tudo um pouco --"o espetáculo é 10% do trabalho", diz Erimeide. Enquanto a reportagem conversava com parte da família, Márcio terminava de arrumar e pintar um par de caixas de som. Eles mesmos prepararam uma das grandes atrações da casa --o "taxixi", um velho Fiat 147 pintados com o laranja e preto característicos dos táxis curitibanos, sem vidros, que abre ao meio no grand finale do número dos palhaços.

Globo da morte do Circo Zanchettini - Rafael Moro Martins/UOL - Rafael Moro Martins/UOL
Imagem: Rafael Moro Martins/UOL
As motos --atualmente quatro, em breve cinco-- do globo da morte nunca saem de dentro da estrutura metálica.

Elas não podem falhar. Senão, colocam em risco a vida de quem está lá dentro", conta André Luís.

Ele atualmente treina para fazer parte do número --e é também um dos responsáveis, junto com a namorada, Luria, por cuidar das redes sociais do circo.

O "cavalo bêbado" do Faustão

Mágoa, mesmo, os Zanchettini só mostram quando falam do que consideram uma perseguição de ambientalistas e até de autoridades aos circos que mantêm animais. Quando vem à tona, o tema puxa incontáveis histórias --eles dizem que houve até agressões contra famílias circenses.

"Nossos bichos são criados como animais de estimação, desde filhotes. São parte da família", protesta Edlamar. Em Curitiba, por força de lei municipal, é proibido se apresentar com animais. Por conta disso, os dos Zanchettini ficam em chácaras de amigos.

"Muito bem cuidados", ela faz questão de dizer. "Teve circo que perdeu os animais, levados para zoológicos, e eles morreram em questão de semanas. De outro, levaram os dromedários, que hoje carregam turistas em resorts de luxo no Nordeste. Por que eles, as hípicas, os jóqueis clubes podem, e nós não?", questiona.

"Nós tivemos tigre, leoa, que morreram conosco, assistidos por veterinários. Perdemos dinheiro com isso, mas cuidamos direito dos nossos bichos", afirma Erimeide. Ela lamenta, aliás, que a lei curitibana impeça a família de apresentar um de seus melhores números --é dos Zanchettini, aliás, o "cavalo bêbado", que fez sucesso num quadro do "Domingão do Faustão".

Nada, porém, que os faça pensar em largar a vida.

Eu nasci no circo. Não sei fazer outra coisa", fala Amaury.

"O Orlando Orfei, que era amigo da família, uma vez contou uma história pra mãe, de quando ouviu dizerem que ele estava velho, deveria se aposentar. Ele dizia: 'veja, a rainha da Inglaterra abre a porta do seu palácio e acena para sua cidade e seus súditos. Eu abro a porta do meu trailer e vejo o mundo'".