Topo

Agente que viu Massacre do Carandiru diz que corrupção atinge carcereiros e direção de presídios

Preso do pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru mostra livro sobre direitos humanos em 5 de outubro de 1992, quatro dias após intervenção da PM para conter uma rebelião; 111 presos morreram - Luiz Novaes/Folhapress - 5.out.1992
Preso do pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru mostra livro sobre direitos humanos em 5 de outubro de 1992, quatro dias após intervenção da PM para conter uma rebelião; 111 presos morreram Imagem: Luiz Novaes/Folhapress - 5.out.1992

Marcos Sergio Silva

Colaboração para o UOL, em São Paulo

15/01/2017 04h00

João (nome fictício) estava na Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte de São Paulo, quando a polícia invadiu e 111 presos morreram. Era o dia 1º de outubro de 1992, véspera da eleição municipal. Nove anos depois, estava no mesmo local quando uma rebelião em massa ocorreu em diversos presídios do Estado – e a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) tornou-se uma sigla nacionalmente conhecida. Hoje, trabalhando em um prisão no interior paulista, recebe pelo comunicador instantâneo WhatsApp de seu celular o recado de outros agentes que, como ele, acompanham a crise penitenciária no Norte do país.

“Lá [na Casa de Detenção do Carandiru, em 1992], poderia ter sido evitado, porque existia um clima no ar e sentimos que algo poderia acontecer. Havia um silêncio nos dias que antecederam a rebelião. Os presos estavam descontentes com os 'faxinas' (presos que cuidam da limpeza e têm circulação livre entre as celas, o que os outros presos não têm) –eles estavam fazendo coisas que os outros não gostavam. Foi tentado avisar a diretoria para que pudesse fazer alguma blitz, achar arma, o que não aconteceu. Aqui, foi a polícia que matou principalmente –quando eles entraram, tinha uns 30 presos mortos [o total de mortos no Carandiru foi de 111 detentos]. Vejo diferente a situação do Norte, porque é difícil separar preso por facção.”

João se refere à guerra entre o PCC, que tenta expandir sua influência para prisões fora de São Paulo, e a FDN, a Família do Norte, facção ligada ao Comando Vermelho e que reivindicou as mortes no complexo prisional Anísio Jobim, em Manaus (AM). Lá, 56 presos morreram, na segunda maior tragédia carcerária da história brasileira – a primeira é o Carandiru.

“No Norte, o presídio era terceirizado. Não tenho ideia se o agente tem a mesma instrução e preparo que nós. A experiência no Carandiru contou muito [para que a tragédia não fosse maior].”

De seu posto no interior de São Paulo, ele encontra cerca de três dezenas de funcionários que foram transferidos para lá desde a desativação e implosão da Detenção, em 2002. E teme que algo parecido com Manaus possa acontecer em seu reduto. “A gente que é agente penitenciário sempre fica receoso com essas situações”, diz.

“Sinto zero seguro, principalmente com a superlotação. A gente fica receoso de qualquer hora acontecer alguma coisa, porque é a gente que vai ficar com a faca no pescoço. E não tem como fugir. A maioria das agressões é na hora que abre para o banho de sol. Ou vai trancar eles, ou na hora da remoção."

O número de presos é sempre muito superior que o de funcionários. Nesta semana, soube de duas agressões em presídios.”

Preso oferece R$ 100 mil para fugir

Uma constante nessa trajetória foi acompanhar casos de corrupção dentro dos presídios que trabalhou. “Já vi diretor [de presídio] sair algemado por ligação com preso”, afirma João, que nega ter cometido qualquer irregularidade na profissão, embora já tenha sido alvo de extorsão por um detento.

“Já presenciei preso oferecer R$ 100 mil para fugir. A gente fica o tempo todo com o preso, que escuta você conversar com outro funcionário sobre a sua situação [financeira]. E preso é malandro, né? Já ouvi: ‘Poxa, tô preso aqui, meu carro está em casa, fica com ele até eu sair’. Ou oferecer algo para trazer um celular ou outra coisa. Eles vão tentar, porque sabem que um ou outro vão conseguir [corromper]. Tem funcionário que entra na conversa e entra em contato com a família, porque o preso usou malandragem para ludibriar.”

Acusação de corrupção de diretores

Em outra situação, afirma, o diretor do presídio “vendeu” a copa dos funcionários (onde eles fazem as refeições) para os presos. “Quando a gente chegou no fim de semana, os presos haviam dominado. Fomos falar com o diretor, e todos os funcionários [que reclamaram] foram tirados do plantão e remanejados para outros pavilhões."

Outro relato aponta, mais uma vez, suposta corrupção vinda da chefia: "Uma vez, eu fiquei afastado porque o diretor queria que eu dividisse com ele o que eu supostamente pegava do preso – o que eu nunca fiz, porque não faço negócio com preso. Não aceitei a situação, e a única maneira foi sair de licença”.

Manifestação de presos no Carandiru em 2001, contra a transferência de membros do PCC - Evelson de Freitas/Folhapress - Evelson de Freitas/Folhapress
Manifestação de presos no Carandiru em 2001, contra a transferência de membros do PCC
Imagem: Evelson de Freitas/Folhapress

"Vi muita gente arrancando cabeça e jogando bola com ela"

Pelo WhatsApp, recebe uma gravação sobre possíveis retaliações do PCC no Norte e no Nordeste. Compara com o massacre de 1992. “Ali era só tiro”, lembra. “Não teve nada de arrancar cabeça ou coração."

No dia a dia, vi muita gente arrancando cabeça e jogando bola com ela, picava coração. O povo brigava até a morte e a gente não tinha o que fazer. Porque eram 500 presos e só dois agentes penitenciários. Esperava matar, e acabou, acabou.”

A grande mudança, afirma, foi a chegada do PCC nos presídios paulistas. “Hoje, é muito difícil saber de uma rebelião, de funcionário como refém –o que acontece é funcionário agredido. Até preso matar outro preso é difícil. Antes, quando não tinha [o domínio do PCC], era um mundo sem lei. Toda semana tinha funcionário de refém e preso morto – cortavam cabeça, arrancavam o coração. Na época em que a Seita Satânica dominava o Carandiru, quase todo dia tinha morto. Um preso não pode matar outro se não tiver autorização lá de cima [da alta organização do PCC]. Se matar alguém por motivo banal, o presídio inteiro sofre, e atrapalha o negócio.”

“A primeira vez que vi um preso arrancando a cabeça do outro até morrer me impressionou. Mas, no decorrer do período que a gente vai trabalhando, a gente vai se acostumando. Funcionários que viram isso a primeira vez pediram exoneração. É difícil ver um cara com vida, sem a cabeça, se debatendo...”

Outro lado

A Secretaria de Administração Penitenciária foi procurada por e-mail e telefone às 15h desta quarta-feira (11). Até a publicação desta reportagem, no entanto, não havia respondido aos questionamentos da reportagem:

1) O agente teme uma possível retaliação quanto ao ocorrido no Norte do país nos presídios paulistas. A SAP considera essa hipótese?

2) Ele diz que funcionários não recebem reajuste ou aumento há dois anos. É fato conhecido pela secretaria?

3) Ele também diz que há defasagem de funcionários no quadro de agentes penitenciários. A informação procede?

4) Ele afirma ter presenciado casos de corrupção por parte de diretores e funcionários, mas não cita nomes. A SAP tem algum número de casos investigados e resolvidos no presídio?

5) Ele atribui ao PCC a recente paz nos presídios paulistas, algo que a SAP já negou em ocasiões anteriores. Qual o posicionamento da secretaria?

6) A secretaria oferece tratamento psicológico e psiquiátrico para agentes penitenciários que assistem a casos como os do Norte do país? Como ele feito? Quantos agentes já pediram esse tipo de assistência?