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Por que cidadãos saqueiam lojas quando não há PM nas ruas?

Eletrodomésticos furtados pela população são devolvidos em delegacia no ES - Gilson Borba/UOL
Eletrodomésticos furtados pela população são devolvidos em delegacia no ES Imagem: Gilson Borba/UOL

Mirthyani Bezerra

Do UOL, em São Paulo

10/02/2017 18h35

Um morador de Cachoeiro Itapemirim, no interior do Espírito Santo, afirmou ontem ao UOL que “por impulso” levou para casa uma máquina de lavar de uma loja Dadalto que estava sendo saqueada. Acabou procurando uma delegacia depois para devolver o produto.

Como ele, muitos capixabas também se sentiram na liberdade de entrar em lojas para saquear produtos, os mais variados, depois que a notícia de que não havia mais policiais militares nas ruas dos municípios do Espírito Santo começou a se espalhar.

Desde o dia 4 de fevereiro, um movimento de familiares tem impedido que policiais militares saiam dos seus batalhões, o que paralisou as atividades da Polícia Militar do Estado. Os saques do ES não são um fato inédito, basta lembrar o que aconteceu em Pernambuco e na Bahia em 2014, também durante paralisação de policiais militares.

Esse “impulso” sentido pelo capixaba entrevistado pelo UOL é um reflexo de um “efeito bocejo”-- quando uma pessoa abre a boca seguindo o gesto de outra pessoa, num movimento em cascata --, segundo Bruno Paes Manso, cientista político e pesquisador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP (Universidade de São Paulo). Esse fenômeno social é parecido com o que acontece em casos de linchamentos e enfrentamento de torcidas organizadas, por exemplo, quando o comportamento de massa se sobrepõe ao individual.

“São comportamentos de multidões, quando os freios morais estão suspensos e as pessoas agem por emoção, no calor dos acontecimentos. Depois ela volta para casa, vê a geladeira que foi saqueada e cai na real. Percebe que talvez tenha feito um juízo diferente da realidade, que pode ser presa, que os vizinhos podem pensar mal”, explica.

Segundo Paes Manso, saques são comuns em momentos traumáticos, de violência extrema. “Em condições normais, as pessoas não entram na loja para saquear porque tem polícia por perto", diz.

"Não tem a ver com a ausência de polícia, mas com a suspensão das normas do dia a dia causada por algum evento traumático [no caso do ES, a violência gerada pela paralisação da PM]” Bruno Paes Manso, cientista político

Esther Solano, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), afirma que a condição de anonimato é essencial para que esse comportamento de massa aconteça. “Se eu for sozinho, eu vou ser identificado. Se eu sou anônimo, se estou espalhado na multidão, me sinto imune”, explica.

É o conceito de “difusão da responsabilidade”, como explica Ignácio Cano, coordenador do LAV (Laboratório de Análises de Violência) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). “A lógica é que já que o fato está acontecendo, a pessoa vai lá levar a parte dela sem se responsabilizar. É o que acontece com quem participa de um linchamento, por exemplo”, compara.

Vídeo flagra saques ao comércio do Espírito Santo

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Saques mostram que algo não anda bem na sociedade

Esse estado de “anomia”, que é quando lei e a regra não prevalecem mais como norma de orientação da conduta, traduz o sentimento social profundo de que algo não está bem na sociedade, na opinião de Sérgio Adorno, professor titular em sociologia da USP e coordenador científico do NEV.

“Esses atos de saque são protestos coletivos. Existe uma crise de liderança nesse país, não tem um modelo, um comportamento a serem seguidos. Quem tem retidão moral na nossa sociedade? Como é o comportamento das pessoas públicas?”, questiona.

A ideia é corroborada por Esther Solano. Segundo ela, o Brasil vive uma crise de legitimidade generalizada nos entes públicos e o caos vivido no Espírito Santo demonstra a falta de capacidade do Estado em gerar confiança nas pessoas. “Muitas pessoas pensam que o governo faz o que quer, então elas também se sentem na liberdade de fazerem o que querem”, diz.

Solano acrescenta que esse sentimento causa um “encorajamento coletivo” para fazer algo que o cidadão não faria no âmbito individual. “Esse encorajamento não é necessariamente negativo. Ele pode motivar ações coletivas positivas, como protestos, quando as pessoas que pensam de maneira semelhante, apoiam a iniciativa, se sentem identificadas com ela, se sentem refletidas no outro”, afirma.

Cabe ao Estado garantir uma convivência respeitável

Esse comportamento coletivo não é “privilégio” do Brasil. “Saques acontecem em sociedades em períodos de grave crise. Aconteceu na Europa no final do século 19, nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século 20”, afirmou Adorno.

O sociólogo diz ainda que é preciso ter cuidado ao analisar esses momentos de crise. “Violência é uma linguagem social e tentar entendê-la é uma tarefa complexa. Tem que ir com cuidado para não acabar criando um ambiente que acentue as desigualdades no país, para não associar o bandido com o trabalhador de baixa renda e o ‘cidadão de bem’ com a classe média”, afirma.

Segundo ele, esse tipo de problema só pode ser evitado quando governantes e legisladores entenderem que cabe a eles garantir o bem comum. “É responsabilidade deles garantir uma vida digna para todos, uma convivência respeitável, que a dignidade de cada um seja respeitada”, acrescenta.

Para Ignácio Cano, a presença do Estado evita que existam as condições que “dão lugar a esse tipo de fenômeno”, em curto prazo. “Em longo prazo, é preciso trabalhar com a educação para conscientizar a sociedade [sobre civilidade]”, conclui.