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Juiz rejeita denúncia por estupro e sequestro contra carcereiro da "Casa da Morte"

Torturada e estuprada, Inês foi a única prisioneira a sair viva da Casa da Morte - Hanrrikson Andrade/UOL
Torturada e estuprada, Inês foi a única prisioneira a sair viva da Casa da Morte Imagem: Hanrrikson Andrade/UOL

Do UOL, no Rio

09/03/2017 13h15Atualizada em 09/03/2017 13h34

O juiz Alcir Luiz Lopes Neto, titular da 1ª Vara Federal de Petrópolis, rejeitou a denúncia feita pelo MPF (Ministério Público Federal) no Rio de Janeiro contra o carcereiro do local que ficou conhecido como "Casa da Morte", centro de tortura montado pelo Exército em Petrópolis (RJ) durante a ditadura militar.

Conhecido como “Camarão”, o ex-sargento do Exército Antonio Waneir Pinheiro Lima é acusado pelos crimes de estupro e sequestro da militante política Inês Etienne Romeu, única prisioneira a deixar o local com vida.

Para o juiz, a denúncia do MPF não poderia ser aceita pois vai contra a Lei da Anistia aprovada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 1979 e faria parte de um “tribunal de exceção”. O magistrado também considera que a acusação de estupro feita pela procuradoria já prescreveu.

“Além do desrespeito à Lei de Anistia de 1979, as imputações criminais feitas na denúncia atentam também contra outra causa de extinção de punibilidade: a prescrição”, escreveu o magistrado. “Assim, além de ser caso de desrespeito ao direito adquirido em razão da Anistia de 1979, o caso também é de evidente desrespeito a outro direito adquirido do acusado, tendo em vista a verificação da prescrição: o de tentar fazer retroagir uma “norma” de caráter penal com a finalidade de prejudicar o acusado.”

Para negar o pedido, o juiz ainda fundamentou a decisão em processos e condenações de Inês pela Justiça Militar na época da ditadura, como, por exemplo, o “agrupamento que, sob orientação de governo estrangeiro ou organização internacional, exerce atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional”.

Um dos autores da denúncia, o procurador da República Sérgio Suiama lamentou, em seu perfil no Facebook, ter recebido a decisão nesta quarta-feira (8), no Dia Internacional da Mulher. Para ele, trata-se “do terceiro estupro de Inês Etienne Romeu”.

O MPF informou que irá recorrer da decisão e publicou uma nota pública sobre o caso. O torturador havia sido denunciado pelo órgão em dezembro.

“A única certeza do magistrado volta-se contra a vítima, por ele qualificada como uma terrorista perigosa, condenada pela Justiça Militar da ditadura a 10 anos de prisão por sequestro seguido de morte. Com base nesta certeza, o juiz federal conclui sua sentença dizendo que "ninguém é contra os "direitos humanos", desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”, diz o texto, assinado pela subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen.

Para Frischeisen, “como se trata de uma ação penal por crime de estupro, imagina-se que a "vantagem" à "minoria selecionada" seja o direito de todas as mulheres de não sofrerem violência sexual”.

Entenda o caso

Na época dirigente das organizações Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, VAR-Palmares e Polop -, Inês foi sequestrada por militares em São Paulo. Ela foi levada para a chamada “Casa da Morte”, um centro de prisão e tortura clandestino situado em Petrópolis, na região serrana no Rio, em maio de 1971.

De acordo com o MP, entre 7 de julho e 11 de agosto de 1971, Camarão manteve a vítima contra sua vontade dentro do centro ilegal de detenção, ameaçando-a, afirmando que a mataria, e utilizando recursos que tornaram impossível a defesa da vítima. "Em razão de sua militância estudantil e política, Inês Etienne Romeu tornou-se alvo do governo ditatorial brasileiro, tendo sido perseguida e monitorada por órgãos de inteligência, sequestrada, presa ilegalmente, torturada e estuprada conforme demonstram várias provas amealhadas na investigação”, afirmam os procuradores da República Antonio Passo Cabral, Sergio Suiama e Vanessa Seguezzi na denúncia.

“Além das torturas reconhecidamente aplicadas como padrão aos presos políticos no regime militar (choques elétricos, pau de arara, cadeira do dragão, espancamento), Inês ainda sofreu com a maldade de seus carcereiros, que a maltratavam apenas para seu divertimento. No inverno de Petrópolis, onde a temperatura podia chegar a menos de 10°C, era obrigada pelos carcereiros a deitar nua no cimento molhado”, narram os procuradores.

Segundo o MP, Inês tentou se suicidar quatro vezes durante o cativeiro. Em seu relato, ela descreve: “Por não ter me suicidado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, 'telefones', palmatórias. [...] A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais. 'Márcio' invadia minha cela para 'examinar' meu ânus e verificar se 'Camarão' havia praticado sodomia comigo. Este mesmo 'Márcio' obrigou-me a segurar em seu pênis enquanto se contorcia obscenamente. (...) Durante este período fui estuprada duas vezes por Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros”.

Inês morreu ano passado, em Niterói, na região metropolitana do Rio, aos 72 anos. Ela foi a única pessoa a ser libertada da Casa da Morte. Pelo menos 20 pessoas teriam morrido após torturas no local durante a ditadura.

Os torturadores a liberaram acreditando que depois de três meses de tortura e cativeiro na Casa da Morte, ela não participaria mais da luta armada e até passaria a colaborar para o regime militar. A revelação foi feita pelo tenente-coronel Paulo Malhães, morto em 2014.

De acordo com o MPF, Camarão admitiu ser o caseiro da Casa da Morte, mas disse que não houve tortura no local e nunca viu entrada e saída de presos, posição questionada pelos procuradores. “O que um militar da Brigada Paraquedista estaria fazendo em serviço em uma casa em Petrópolis, e não em uma unidade militar, como um quartel? Todas as provas dos autos, documental e testemunhal, com o próprio depoimento da vítima, o reconhecimento do acusado por foto, a confissão de Camarão de que realmente era o vigia da Casa da Morte, passando pelas quebras de sigilo, busca e apreensão e interceptação telefônica, tudo mostra que o acusado é culpado pelos crimes que lhe são imputados”.

Inês não pôde depor à Comissão Nacional da Verdade por um problema na fala. Mas a sua ida às reuniões do grupo possibilitou a identificação de seis torturadores da casa, ente eles “Camarão”. Todo o reconhecimento foi feito com base em fotografias apresentadas pelos integrantes da comissão.

O ex-sargento do Exército Antonio Waneir Pinheiro Lima e seu advogado não foram localizados para comentar a decisão até a publicação desse texto. A reportagem ainda tenta ouvir os dois.