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Juiz dribla Marco Civil e dá a Doria direito de identificar críticos no Facebook

Fachada da residência de João Doria, onde foi convocada Virada Cultural alternativa - Rivaldo Gomes - 24.jan.2017/Folhapress
Fachada da residência de João Doria, onde foi convocada Virada Cultural alternativa Imagem: Rivaldo Gomes - 24.jan.2017/Folhapress

Marcos Sergio Silva

Do UOL, em São Paulo

21/04/2017 04h00

A sentença publicada por um juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo no dia 6 de abril deste ano não serviu para que um embate jurídico e virtual travado desde dezembro entre os advogados do prefeito de São Paulo, João Doria, e uma página de Facebook chegasse ao fim.

De acordo com a decisão do juiz Fernando Henrique de Oliveira Biolcati, o evento “Virada Cultural na Casa de João Dorian (sic)”, da página “Deixe a Esquerda Livre”, programado para o dia 13 de maio de acordo com publicação na rede social, poderia acontecer --e a página continuar no ar--, mas o Facebook deveria fornecer a identificação das máquinas que organizaram os encontros, os textos e os memes publicados. O evento tem 6.600 pessoas confirmadas e cerca de 15 mil interessadas.

Essa orientação de Biolcati é contrária ao que determina o artigo 22 do Marco Civil da Internet. Segundo a lei 12.965, de 23 de abril de 2014, a parte interessada pode requerer “o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet”, desde que haja indícios de ocorrência de ilícito. O juiz, no entanto, entendeu na mesma decisão que a manifestação é legal.

O embate entre a página e a defesa de Doria vem desde o dia 5 de dezembro de 2016, quando o prefeito, antes mesmo da posse, disse que iria deslocar os eventos da Virada Cultural do centro da cidade para o autódromo de Interlagos, na zona sul paulistana. “Vamos deslocar a Virada Cultural para um único local e não vai ser o centro da cidade. Vamos fazer a Virada Cultural acontecer em Interlagos, 24 horas, com segurança, com transporte, com conforto e sem os transtornos que, infelizmente, pela dimensão que ela assumiu, ela proporciona”, disse na ocasião.

No mesmo dia, a página “Deixe a Esquerda Livre” criou o evento, com a descrição “Virada Cultural na casa de João Dorian (sic) com sessão de abraços em Bia Dorian [primeira-dama do município]”.

A gestão tucana voltou atrás um dia depois, afirmando que o evento iria continuar acontecendo na região central da cidade, mas com programação menos intensa. A Virada foi confirmada para os dias 20 e 21 de maio, com 70% dos eventos descentralizados.

Defesa caseira no tribunal

Administrada por duas pessoas, de 28 e 47 anos, a página não conta com advogados, enquanto Doria representou contra eles no Tribunal de Justiça paulista com o escritório do atual secretário municipal de Justiça, Anderson Pomini. “No dia em que o evento foi criado, um dos advogados do Doria mandou uma mensagem para que retirássemos o evento em 72 horas”, disse um dos organizadores, que não quis se identificar. “A frase final que ele usou foi: ‘A internet não é um mundo sem lei’.”

A página afirma ter recebido uma mensagem da defesa de Doria: “Notificamos vossa senhoria para que exclua de seu perfil o conteúdo ofensivo e criminoso que veicula mensagens e imagens em alusão ao senhor João Doria, sob pena de responder pela prática das seguintes infrações penais: perturbar alguém, o trabalho ou o sossego alheios (...) e causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. (...) Por fim, registramos que seu perfil, mensagens, compartilhamentos e demais informações da rede já foram devidamente arquivados para subsidiar ação penal pela prática das infrações, caso não retire todas as referências ao ofendido no prazo de 48 horas contadas da leitura desta mensagem”.

O escritório de Pomini justificou a mensagem, dizendo que, “antes do ajuizamento de qualquer ação judicial, os advogados têm a opção de interpelar a parte adversa para que providencie o cumprimento da obrigação”.

Advogados a favor da página do Facebook deram orientações, como a de publicar um aviso de que o evento era fictício. “Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”, diz a nota na descrição do evento, toda em letras maiúsculas. “Em uma conversa informal, eles [os amigos advogados] sugeriram que fizéssemos isso. Tipo uma blindagem.”

“O direito de manifestação está protegido pela Constituição no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais. No caso em questão, não se trata nem sequer de manifestação em si, mas de convocação para uma manifestação futura, que pode ocorrer ou não. Esse direito de convocação, desde que seja feito nos termos da lei, está plenamente protegido dentro das regras de liberdade de expressão. O pedido dos advogados não faz nenhum sentido jurídico”, afirma o advogado Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, mestre em direito por Harvard e representante do MIT (Massachusetts Institute of Technology) Media Lab no Brasil e um dos idealizadores do Marco Civil da Internet brasileira, considerado uma "Constituição das redes".

Página da Virada João Dorian no Facebook - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

No evento designado "Virada Cultural na Casa do João Dorian", busca-se determinar uma forma de protesto contra o autor. Aliás, dificultar ou impedir, por via transversa, manifestação de cunho político e reivindicatório significa afronta ao Estado Democrático do Direito
Fernando Henrique de Oliveira Biolcati, juiz do Tribunal de Justiça de SP

Na decisão, Biolcati afirmou que o direito de reunião pacífica é garantido a todos, desde que não impeça outros previamente marcados de acontecerem no local. “O autor [Doria] é empresário de renome, com programas de televisão e prefeito da cidade de São Paulo. (...) A quem pretende ocupar cargo público, principalmente eletivo, os limites entre vida privada e aquilo considerado de interesse social são mais tênues. (...) No evento designado 'Virada Cultural na Casa do João Dorian', busca-se somente determinar uma forma de protesto contra o autor, diante de sua alegação de que a Virada Cultural de São Paulo seria transferida para o autódromo de Interlagos, inexistindo mínimo indício de que se destine o evento à balbúrdia. Aliás, dificultar ou impedir, por via transversa, manifestação de cunho político e reivindicatório, sob o argumento da perturbação pública, significa afronta à base do Estado Democrático do Direito, estabelecida no artigo 1º, da Constituição Federal.”

Doria exige os IPs dos organizadores

A defesa de Doria afirmou, por e-mail, que a sentença foi objeto de embargos declaratórios e, tão logo a decisão sobre os embargos seja publicada, haverá uma resposta sobre eventual interposição de recurso. Sobre a decisão do fornecimento do IPs pelo Facebook, o escritório de Anderson Pomini disse que irá exigir da rede social os números de identificação. “Há uma ordem judicial que deverá ser cumprida.”

O Facebook foi procurado pela reportagem e afirmou, por meio de nota, que não comenta casos específicos. Segundo a decisão, a rede social será a responsável por entregar os IPs dos criadores e mantenedores da página. No entanto, a empresa costuma se amparar no Marco Civil da Internet para divulgar dados sigilosos de seus usuários. Como a decisão não segue a lei federal, entendendo inclusive que não há infração cometida pelos usuários, as identificações não devem ser entregues.

Ronaldo Lemos - Roberto Jayme/UOL - Roberto Jayme/UOL
Imagem: Roberto Jayme/UOL

O Marco Civil da Internet deixa bem claro que a regra geral é a privacidade. Nesse caso, o próprio juiz disse que não há ilícito. Não faz nenhum sentido a entrega dos dados
Ronaldo Lemos, um dos idealizadores do Marco Civil da Internet brasileira

“O Marco Civil da Internet deixa bem claro que a regra geral é a privacidade. Nesse caso, o próprio juiz disse que não há ilícito. Dessa forma, não faz nenhum sentido a entrega dos dados. Essa decisão viola o Marco Civil”, afirma Ronaldo Lemos. “O caminho correto é recorrer da decisão, que foi preferida pelo juiz singular de primeira instância. É preciso assim solicitar ao Tribunal de Justiça que reforme a decisão, fazendo valer o Marco Civil.”