Topo

Boliviano acusa shopping Bourbon e Motorola de racismo: "me chamaram de ladrão e demônio"

Fachada do shopping Bourbon, na Pompeia, zona oeste de São Paulo - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress - 27.mar.2008
Fachada do shopping Bourbon, na Pompeia, zona oeste de São Paulo Imagem: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress - 27.mar.2008

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

19/06/2017 18h47

O bacharel em direito Sérgio Muñoz Morales, 45, trajava calça jeans clara, blusa branca, sapato e jaqueta de couro quando decidiu dar uma volta pelo shopping center Bourbon, na zona oeste de São Paulo, no último dia 11, antes de pegar a sessão de cinema das 19h20 ali mesmo. Na avaliação dele, no entanto, foram os traços andinos – pele parda, cabelos negros, olhos bem amendoados –, e não a vestimenta, que renderam uma abordagem que acabou se tornando, desde então, caso de polícia: acusado de furto pela funcionária de um quiosque da Motorola, empresa de aparelhos de telecomunicação, Muñoz afirma ter sido humilhado e constrangido pela mulher e pelo shopping ao ser tratado como ladrão e com truculência pelos seguranças do estabelecimento.

Em entrevista ao UOL, o boliviano, que está no Brasil há 23 anos, contou ter registrado boletim de ocorrência contra a funcionária e contra o Bourbon porque se disse vítima de racismo.

Ele narrou que olhava modelos de celular no quiosque, por volta de 18h30, enquanto não dava o horário da sessão de cinema. Ao deixar o local falando com uma amiga no aparelho dele próprio, afirma, foi abordado pela funcionária do quiosque de maneira hostil. Como era domingo, véspera do dia dos namorados, o shopping estava cheio. 

“Ela veio até mim e disse: ‘Faz favor de devolver o celular que você pegou’. Eu neguei que tivesse pego qualquer coisa, mas ela chamou dois seguranças, e um deles já chegou de um jeito truculento, me pegando pelo braço, e gritando: ‘Devolve, demônio, foi você que pegou’. Perguntei ao segurança se ele estava louco, e a funcionária insistiu que o aparelho supostamente furtado estava no meu bolso. ‘Eu vou te mostrar o que tem no meu bolso. Mas depois você me pede desculpas, ok?’, disse a ela, e então mostrei o que havia no meu bolso: minha carteira”, relatou.

Sérgio Muñoz, 45, veio da Bolívia para São Paulo há 23 anos; na cidade, ele se formou em direito - Arquivo pessoal/UOL - Arquivo pessoal/UOL
Sérgio Muñoz, 45, veio da Bolívia para São Paulo há 23 anos; na cidade, ele se formou em direito
Imagem: Arquivo pessoal/UOL

O pedido de desculpas dela foi apresentado? “Imagina. Ela insistiu que eu tinha passado o aparelho a outra pessoa. Só quando eu apresentei minha carteira da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], os seguranças, que estavam em seis, começaram a me tratar melhor. De repente, de ‘cara’ e ‘demônio’, começaram a me chamar por ‘doutor’. E a moça ainda seguiu achando que tinha sido eu, até que chamei a Polícia Militar, fizemos uma acareação e os policiais me revistaram”, disse.

"Sabe por que me pararam? Porque sou boliviano"

Para Muñoz, a questão racial é o que teria determinado a abordagem da funcionária e, depois, dos seguranças.

“Sabe por que me pararam? Porque sou boliviano, minhas características são de boliviano. ‘Ah, um celular sumiu? Se um boliviano passou, com certeza ele que levou’. É isso o que pensam, em geral, e não acho justo sobretudo em uma cidade como São Paulo, que abriga tantas etnias e culturas”, definiu.

Muñoz em foto tirada no Bourbon em frente ao quiosque da Motorola no qual foi acusado de furto - Arquivo pessoal/UOL - Arquivo pessoal/UOL
Muñoz em foto tirada no Bourbon em frente ao quiosque da Motorola no qual foi acusado de furto
Imagem: Arquivo pessoal/UOL

Ele afirmou que vai processar a funcionária da Motorola pelos crimes de calúnia, difamação, injúria e discriminação racial. Na esfera cível, disse, processará por dano moral a mulher, a Motorola e o shopping, nos quais vê "responsabilidade objetiva".

“Em 23 anos aqui, nunca me envolvi em nenhum crime, nunca tive um único desentendimento que envolvesse polícia. Foi tamanho o constrangimento que eu nem dormi naquele dia, de tão chateado que eu fiquei”, descreveu.

Indagado se esse foi o primeiro episódio de discriminação que afirma ter enfrentado em São Paulo, o Muñoz disse que não – e no próprio Bourbon, shopping em que ele era mais assíduo em função de morar nas imediações.

“Já fui seguido este ano por dois seguranças em um supermercado do mesmo shopping. Não esbocei nenhuma reação, quando percebi, porque sei que estavam fazendo o trabalho deles. Em anos anteriores, já tinha sofrido discriminação no transporte púbico”.

O que ele espera agora?

“Espero que outras pessoas que passem por situações de discriminação acionem o Estado para que isso não aconteça mais. Muitos imigrantes, até por estarem ilegais, têm medo de levar uma denúncia dessas adiante porque sabem que a lei aqui é demorada para se aplicar. Eu também ficava amedrontado, mas hoje acredito que sou operador do direito, e, se não faço valer meus direitos, quem fará valer?”, questiona.

Qual o sentimento de ser alvo desse tipo de abordagem? "De impunidade. Você se sente totalmente desprotegido --e mesmo eu, com meu conhecimento jurídico, me senti assim. Foi na região onde moro e aonde levo os meus filhos [uma menina de 12 e um menino de dez anos] com frequência. Graças a Deus que, nesse dia, não os levei –seria muito mais constrangedor para mim e até para eles. Graças a Deus”, desabafou.

Shopping e Motorola apuram o caso

Procurados, tanto o shopping Bourbon quanto a Motorola informaram que ainda estão apurando o que ocorreu.

“A empresa informa que a situação registrada entre um cliente e a operadora do quiosque está sendo melhor apurada, inclusive no que se refere à participação do segurança terceirizado”, resumiu o shopping, por meio da assessoria de imprensa.

Também por nota, a Motorola disse que “lamenta” pelo ocorrido, do qual teve conhecimento na última sexta (16). “Desde então, a empresa está apurando as informações a respeito da situação”. A empresa não respondeu se alguma medida foi adotada em relação à funcionária que acusou Muñoz de furto.

Pátio Higienópolis é investigado por racismo

O caso no Bourbon foi registrado nove dias depois de outra denúncia de racismo –dessa vez, no shopping center Pátio Higienópolis, área central da capital paulista. Na ocasião, o filho do artista plástico Enio Squeff foi confundido no shopping com um mendigo, mesmo trajando uniforme do colégio particular Sion, localizado nas imediações. O menino tem sete anos e é negro.

Na última quarta (14), o Ministério Público em São Paulo instaurou inquérito para apurar se o Pátio Higienópolis tem práticas racistas e sem estímulo à igualdade racial isoladamente ou de forma sistemática, institucional.

Por nota, o shopping informou que "reitera que todos os frequentadores são e serão sempre bem-vindos, sem qualquer tipo de discriminação" e que “lamenta profundamente pelo fato isolado ocorrido, [mas] destaca que não compactua com este tipo de procedimento e esclarece ainda que reorientou a colaboradora envolvida”.