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Há um ano, o gari José leva pão e água potável a usuários da cracolândia em SP

O gari José (de boné), morador de Embu das Artes (região metropolitana de SP), leva pão e água a usuários da cracolândia há um ano - Janaina Garcia/UOL
O gari José (de boné), morador de Embu das Artes (região metropolitana de SP), leva pão e água a usuários da cracolândia há um ano Imagem: Janaina Garcia/UOL

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

25/06/2017 04h00

Uma fila de usuários se forma no fluxo da cracolândia da rua Helvétia com a alameda Cleveland, região central de São Paulo, por volta das 14 horas, no dia seguinte à reocupação da área pelas centenas de dependentes químicos que, desde 21 de maio passado, estavam na praça Princesa Isabel, a 400 metros dali.

Organizada, a ponta da fila apresenta um homem pardo, de chinelo, roupas simples, boné surrado e a voz forte que grita, entre uma palavra e outra de conforto a quem se dirige a ele, um “olha o pão! Olha a água, irmão!” entrecortado por expressões religiosas.

Na última quinta-feira (22), quando a cena --que se repete todos os dias há um ano --foi presenciada pela reportagem, havia algo a mais: “Não deu tempo de passar manteiga: hoje o pão vai com goiabada”. Os usuários aplaudem –e pedem que a conversa da repórter não interrompa a entrega do alimento. “A gente tá fritando aqui no sol, pastor!”, berra um rapaz de pouco mais de 20 anos que aguarda a vez.

“Pastor” é o apelido que o gari José Carlos Rodrigo de Matos, 47, ganhou nesses 12 meses em que tem se dedicado a levar água potável e pão aos dependentes químicos da cracolândia. “Não sou evangélico, sou católico, mas sempre trago uma palavra da Bíblia para eles”, diz, com o livro debaixo do braço.

Matos é morador de Embu das Artes, na Grande São Paulo, mas é contratado da varrição de rua em São Paulo, onde atua, todos os dias, no bairro nobre de Moema, na zona sul da capital. Nas horas vagas ou depois do trabalho, ele conta, corre em busca das doações de pães e água para levar aos usuários. Em média, garante, são três sacos de pães –cerca de 300 unidades – e alguns galões de água com canecas plásticas retornáveis (também doadas) por dia.

Até a operação pela remoção do fluxo na região, dia 21 de maio passado, ele ia às quintas e sábados. Com a transferência à praça, passou a ir todo dia.

Na quinta (22), pão com manteiga foi substituído pelo pão com goiabada. Alimento, assim como água em galões, é fruto de doações - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
Na quinta (22), pão com manteiga foi substituído pelo pão com goiabada. Alimento, assim como água em galões, é fruto de doações
Imagem: Janaina Garcia/UOL

“São sempre as mesmas pessoas que ajudam com as doações de pão e água. É um caminho longo até chegar aos irmãos da cracolândia, mas é um caminho que vale a pena –a generosidade é algo que sempre vale a pena a quem pratica e a quem recebe”, define.

Matos não tem carro nem moto: faz o transporte todo em ônibus --usa três linhas, desde Embu, localizada a cerca de 30 km da capital.

Como surgiu a vontade de ajudar um público que, não raro, desperta sentimentos diversos da solidariedade em outras pessoas? “Foi há pouco mais de um ano, quando vi irmãos moradores de rua serem tirados da praça da República [também na região central] com crianças que tinham fome”, afirma.

O gari José Matos leva água potável há um ano aos usuários da cracolândia em SP - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
O gari José Matos leva água potável há um ano aos usuários da cracolândia em SP
Imagem: Janaina Garcia/UOL

Se a família dele aceita? “Não aceita bem, não – nem minha mulher, nem meus filhos, de 23 e de 18 anos. Não aceitam pelo seguinte: imagina o quanto foi duro para eles me verem chegar com essa marca de bala de borracha nas costas, semana passada? Mas te garanto: se eu pudesse, eu dava um abraço no policial ou no guarda que fizeram isso comigo. Porque eu acho que a vida de todos, incluindo a deles, tem que ser preservada – mesmo a daqueles agentes que só olharam para mim, ferido, quando eu precisava de ajuda. A gente tem que estar sempre no caminho do bem”, justificou.

A marca de bala de borracha nas costas a que o gari se referiu teria sido resultado, segundo ele, de uma ação da PM na praça Princesa Isabel na véspera do feriado de Corpus Christi. Na ocasião, segundo as autoridades de segurança, a PM teria tentado prender um traficante nas imediações, e, ao entrar na praça, usuários teriam reagido aos policiais e aos GCMs –de forma que dois guardas teriam se ferido.

“O caminho nosso aqui é tão grande, né, moça? Mas o meu trabalho é doação – sinto que é para isso que estou aqui, em um sentido amplo”, despediu-se.

O gari mostra a marca da bala de borracha do dia em que conta ter sido atingido por agentes de segurança na praça Princesa Isabel - Janaina Garcia/UOL - Janaina Garcia/UOL
O gari mostra a marca da bala de borracha do dia em que conta ter sido atingido por agentes de segurança na praça Princesa Isabel
Imagem: Janaina Garcia/UOL

A fila de usuários ávidos pelo pão e pela água limpa parece não se importar em comer e beber em um espaço dominado pelo consumo ostensivo do crack –em cachimbos, muitas vezes, improvisados com antenas de TV, pedaços de torneira e outros materiais --e pelas condições de higiene precárias, com lixo, urina e fezes espalhados antes da limpeza das equipes da prefeitura. Alguns pedem dois pães e são contemplados.

Um rapaz que se identificou à reportagem como Bruno, de 32 anos, resumiu a ação do “pastor” logo depois de pegar a parte dele em pão com goiabada e água: “É uma das poucas mãos estendidas aqui dentro, pra gente, sem querer nada em troca”. Com a família em São Paulo, Bruno trocou a casa dos pais e um quiosque no terminal rodoviário do Tietê pela vida na cracolândia há seis meses. Se pensa em sair dali? Ele preferiu não responder.