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Rifas e quentinhas: com crise, servidores do Rio apelam para 'bicos' e até poupança dos filhos

O auxiliar administrativo Luciano Marques faz entrega de quentinhas no Rio - Luan Santos/UOL
O auxiliar administrativo Luciano Marques faz entrega de quentinhas no Rio Imagem: Luan Santos/UOL

Luan Santos

Colaboração para o UOL, no Rio

25/06/2017 04h00Atualizada em 26/06/2017 23h03

As contas de milhares de servidores do Rio de Janeiro, que ainda não receberam o salário integral de abril, não fecham. A crise no Estado --que pode agora não estar tão próxima de um alívio em razão de impasse na adesão ao RRF (Regime de Recuperação Fiscal)-- força funcionários públicos da ativa e aposentados a viverem de bicos, como vender balas e quentinhas, e até a apelarem para a poupança dos filhos.

Na última terça-feira (20), o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) afirmou que o Executivo pagará todos os salários atrasados de servidores em até 60 dias após a efetivação da adesão ao RRF. "Depois de assinado com o governo federal, o que eu acredito que não passe das duas próximas semanas, a gente vai chegar a um acordo. Eu acredito que, de 45 a 60 dias, nós colocamos todos os salários em dia", declarou ele, em entrevista à rádio "CBN".
 
Entretanto, a estimativa de Pezão para a assinatura do plano de recuperação com o governo federal pode ser frustrada se o Executivo fluminense enfrentar resistência na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) para aprovação de uma lei que estabelece teto de gastos públicos no Estado --a última contrapartida exigida pela União. Isso porque o presidente da Alerj, Jorge Picciani (PMDB-RJ), que controla a base governista, é contra a proposta.
 
Por meio de nota, o governo de Pezão afirmou que vem conversando com o governo federal para a homologação do plano. "A expectativa é que essas conversas evoluam satisfatoriamente, visando à estabilidade financeira do Estado, assim como a regularização dos salários dos servidores públicos estaduais o mais rapidamente possível", diz o comunicado encaminhado ao UOL na noite de sábado (24).
 
Enquanto o plano que suspende o pagamento da dívida pública fluminense por três anos não entra em vigor, servidores passaram a lançar mão de bicos e até de uma segunda profissão para sobreviver.
 
O auxiliar administrativo Luciano Marques, 35, que atua há seis anos da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Desenvolvimento Social, conta que está prestes a virar mototaxista de aplicativo. "Não tive outra saída ao ver as contas vencerem no fim do mês. Essa instabilidade de pagamento mudou a vida de muita gente", disse.
 
Neste momento de situação apertada, ele contou com o apoio de duas amigas. "É o que vem me salvando." Juntos, eles implementaram um serviço de entrega de quentinhas - comida congelada -, feitas em casa. "É assim que vou colocando as minhas contas em dia."
 
O sonho de Luciano em se formar em administração também foi afetado. Ele cogitou trancar a matrícula da faculdade. "Fiquei sem condições financeiras de me deslocar até a universidade e também com um grande desgaste emocional. Por vezes pensei em desistir de estudar, o estímulo é nenhum com essa crise. Fico muito desmotivado, pois sempre me dediquei."
 
A aposentada Regina Leite também fala em perda de esperança por dias melhores. "Não há uma luz. Parece que a nossa situação só piora a cada dia."
 
A professora de português conta com o apoio das amigas e familiares para comprar medicamentos de hipertensão, que precisa tomar diariamente, e até mesmo comida. Dona Regina desabafou: "É um desrespeito isso tudo que estão fazendo com a gente. Dedicamos praticamente a vida toda para educar e transformar pessoas e estamos sendo retribuídos desta forma pelo poder público. É dormir sem saber como irá pagar as contas de amanhã. Pagam a gente como e quando querem."
 
Mais de 128 mil servidores ativos, aposentados e pensionistas ainda não receberam o mês de abril integralmente --a remuneração foi dividida em parcelas-- e mais de 220 mil servidores ainda não tiveram acesso ao 13º referente no ano passado.
 

Venda de balas e rifas nas ruas

Aposentada há quatro meses, Mariá Casanova, 66, diz que se esconde da proprietária do apartamento onde mora, na capital fluminense, porque está com o aluguel atrasado há dois meses. Após quase 40 anos trabalhando no Hospital Getúlio Vargas Filho, em Niterói, ela começou a vender balas e rifas nas ruas do Rio. 
 
Mariá também depende da família. "Queria ter uma aposentadoria saudável, não com o dinheiro dos outros, mas com o que eu trabalhei."
 
Ante o atraso dos salários, a aposentada Lucia Guerrah também foi obrigada a voltar a trabalhar e se tornou cuidadora de uma idosa.
 
"Muito triste chegar na idade do descanso e ter preocupações, ter que voltar a trabalhar. Nunca planejei isso para mim. Choro todos os dias por causa da situação que estou vivendo", disse.
 
A enfermeira Andressa Araújo, servidora do Hospital Pedro Ernesto há cinco anos, está sem receber seus vencimentos há dois meses. Ela conta como faz para sobreviver em meio aos atrasos. 
 
"Para suprir as contas primordiais, acabei utilizando a poupança da minha filha, que hoje está com 11 anos. Porém, com o estender da situação, não há mais dinheiro. Já começaram a faltar coisas em casa, contas vencidas, o aluguel. Cheguei a pegar dinheiro emprestado para ir trabalhar", relata Andressa. 
 
Na avaliação de Andressa e outros servidores ouvidos pelo UOL, o plano de recuperação fiscal é uma estratégia que só trará resultados no longo prazo. "Nossa situação é caótica e precisamos de uma intervenção e solução imediata."
 
Por conta da crise, o hospital que pertence à Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e é referência em cirurgias cardíacas e neurológicas, reduziu os atendimentos a partir da última segunda-feira (19). A unidade deixou de aceitar novas internações até chegar a cerca de 70 leitos (o total é de 512) e estão sendo realizadas apenas cirurgias de alto risco; consultas e exames também estão suspensos.