Topo

Cidade do interior paulista vira exílio de agentes "desalojados" com o fim do Carandiru

Castelano, Rodrigues e Mazotto trabalhavam no Carandiru à época de sua desativação -  Simon Plestenjak/UOL
Castelano, Rodrigues e Mazotto trabalhavam no Carandiru à época de sua desativação Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Marcos Sergio Silva

Do UOL, em Serra Azul (SP)

03/10/2017 04h00

Enquanto o domingo de 15 de setembro de 2002 não chegava, os funcionários da Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte de São Paulo, viviam um dilema: com a desativação da unidade, prometida para aquele dia, para onde ir? O governo do Estado acenava com dois locais: a Penitenciária de Oswaldo Cruz, a 558 km da capital paulista, ou a de Serra Azul, a 317 km.

Serra Azul, uma cidade resumida a pouco mais de uma dezena de quarteirões em meio a rodovias vicinais e separada dos municípios vizinhos por uma floresta de eucaliptos que um dia serviu a uma empesa de papel e celulose, foi a escolhida. É um meio de caminho entre a grande Ribeirão Preto e a fronteira entre São Paulo e Minas Gerais.

Mapa -  -

“Era para ser uma cadeia geriátrica”, afirma Alberto Castelano Júnior, 64, que no Carandiru cumpriu as funções de agente penitenciário e de diretor do núcleo de contas bancárias de presos, de finanças e do sistema de saúde. “Mas os diretores dos outros presídios começaram a não liberar os presos mais velhos [para ir para Serra Azul] porque eles executavam serviços nessas penitenciárias --jardinagem, consertos. A gente trabalhou mais de um ano com menos presos do que a capacidade. Aí isso mudou.”

Era para ser uma cadeia geriátrica. Mas os diretores dos outros presídios começaram a não liberar os presos mais velhos porque eles executavam serviços nessas penitenciárias

Alberto Castelano Júnior, agente penitenciário aposentado

Dez anos antes, em 2 de outubro de 1992, eles estavam na Casa de Detenção no que ficou conhecido como o Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos. Em fevereiro de 2001, viveram um fim de semana de terror durante a megarrebelião que sintonizou 29 presídios do Estado por meio de telefones celulares que entraram irregularmente nas celas.

De uma só vez, cerca de 40 funcionários lotados na Casa de Detenção mudaram-se para Serra Azul. Distribuídos pelos nove pavilhões do Carandiru, muitos vieram a se conhecer na nova penitenciária, hoje com cerca de 6.000 presos –mais da metade dos 11.256 habitantes do município, de acordo com o Censo de 2010. “Eu optei por tranquilidade. Quem trabalhava naquele lugar [na Detenção], trabalha em qualquer outro”, afirma Dirceu Rodrigues, 49, que foi para a cidade do interior com a mulher, também agente penitenciária. “Eu queria criar os meus filhos em outro lugar. Entre Serra Azul e Oswaldo Cruz, optei por aqui --lá eram 560 km de distância, aqui é pouco mais de 300 km.”

O perfil da penitenciária mudou, de presos mais velhos para os do “seguro” --detentos jurados de morte por brigas entre facções ou criminosos sexuais. O tamanho também aumentou: de um único prédio passou a ter três: a P1 e a P3, com presos comuns e ligados a facções criminosas, como o PCC, e a P2, que continuou com os detentos que nem mesmo os presos comuns aceitam.

“Muitos de nós, funcionários, a gente veio conhecer aqui. O seu Alberto a gente conhecia porque trabalhava em um setor que tinha contato com todo mundo”, diz Dirceu.

Além dos egressos da Casa de Detenção, Serra Azul também recebeu os funcionários concursados para a penitenciária da cidade e viu suas ruas serem tomadas pelos agentes. E distanciou-se de uma rotina comum aos municípios que recebem novos cárceres do Estado: as famílias dos presos não moram lá. Elas até tentaram, mas, por causa de reclamações de moradores, rumaram para municípios vizinhos.

“O diretor do presídio me chamou e disse que o pessoal da cidade estava reclamando [de certas atitudes de parentes de presos vieram morar na cidade]. Eu chamei aqueles que ele havia apontado e disse: ‘Olha, se não se aquietarem, você vai para Presidente Venceslau [a 602 km de São Paulo, no extremo oeste do Estado, exatamente o oposto de onde está Serra Azul]”, afirma Alberto.

Mazotto, Pinheiro e Castelano diante da maquete de papelão do Carandiru doada por um preso - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Mazotto, Pinheiro e Castelano diante da maquete de papelão da Casa de Detenção
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

"Queria mostrar nas escolas o que foi o Carandiru"

Depois de 28 anos na Casa de Detenção, Alberto Castelano tinha uma ideia simples ao chegar ao interior de São Paulo: cumprir seus últimos anos no sistema e se aposentar. “Vim para colaborar com os funcionários novos que não sabiam o que era trabalhar em uma cadeia”, diz. “Esse grupo, de 2002 até agora, ficou superentrosado com o sistema. Pelo nosso tempo, a gente foi se aposentando.”

Dos 40 originais, restaram em torno de 15 na ativa. Boa parte deles se reúne na casa e no quintal de outro egresso do Carandiru, Ronaldo Mazotto, 49. O agente virou uma espécie de museólogo informal da velha Casa de Detenção, com sua réplica em papelão da “casa de pedra”, objetos apreendidos nas revistas e outros que foram enviados por gente que já esteve sob sua vigilância.

“Esse aqui eu vi nascer”, diz Alberto, segurando um velho celular Nokia. O aparelho foi apreendido durante uma revista e foi um dos primeiros destinados a entrar na Detenção. Duas Bíblias têm lugar especial no acervo: uma está toda recortada para que uma pistola automática entrasse no Carandiru --foi apreendida antes. Outra tem o formato de uma faca em seu miolo. O fundo azul do quintal de Mazotto ainda guarda obras sobre o que um dia foi o maior presídio de São Paulo.

“Queria levar esse acervo para as escolas, para mostrar o que um dia foi o Carandiru, mas ainda não encontrei quem bancasse”, disse. Há cinco anos, trabalha em um livro sobre os seus dias como agente penitenciário da Detenção. Desde então, está à procura de uma editora que queira publicar suas memórias.

Queria levar esse acervo para as escolas, para mostrar o que um dia foi o Carandiru

Ronaldo Mazotto, agente penitenciário que mantém um acervo da Casa de Detenção em sua cassa

Era bonito de ver: 'Eu estou do lado da lei'

Todos têm uma história sobre como entraram no sistema penitenciário. Mazotto, o dono da casa, viu pai, tio, primo trabalhando na Casa de Detenção. “Quando abriu concurso para agente penitenciário, eu trabalhava no parque da Água Branca. Meu pai incentivou, dizia que o salário ia melhorar muito. Se juntar minha família, tinha mais de 50 anos de Casa de Detenção.”

Já Alberto trabalhava na manufatura de brinquedos Estrela, no Belém (zona leste de São Paulo). “Eu comandava uma seção de contas a pagar, tinha 20 e poucos subordinados”, diz. “Até que um colega de faculdade disse que tinha vaga na Petrobras. Quando chegou lá, era só indicação política. Fiquei sem nada, então fiz concurso de agente penitenciário. E passei --tinha mais vagas do que inscritos [ri].”

Dirceu virou agente por opção, por achar bonito o trabalho policial. “Achei que eles sabiam atuar, conheciam todas as áreas pelo olhar, pelas pessoas. Era um negócio bonito de ver: ‘Eu estou do lado da lei’. Até hoje, passado tudo isso, ainda gosto do que faço. Eu me sinto necessário.”

A casa de Mazotto virou um ponto de encontro periódico da turma. Quem ainda está na ativa se reveza entre turnos diários de oito horas ou em regimes de plantão de 12 horas de trabalho por 36 de folga. “Trocamos ideia e nos reunimos periodicamente”, diz Alberto, aposentado há dois anos. “Calma”, diz. “Eu não me aposentei, eu sobrevivi.”