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Cuidadora adota idosa que vivia há mais de 50 anos em hospital de SP que fechou

Ainda criança, Dona Cotinha foi deixada como indigente em hospital de Araraquara (SP) - Arquivo Pessoal
Ainda criança, Dona Cotinha foi deixada como indigente em hospital de Araraquara (SP) Imagem: Arquivo Pessoal

Wanderley Preite Sobrinho

Colaboração para o UOL

26/10/2017 14h06

Ela não tem sobrenome e, por mais de 50 anos, também não teve uma família. Dona Cotinha, como foi apelidada, ainda era uma criança quando foi deixada como indigente em um hospital de Araraquara (SP) depois de um acidente que matou seu irmão e lhe deixou com sequelas para o resto da vida. Permaneceu muda nas cinco décadas em que viveu de favor no Beneficência Portuguesa, passando e dobrando lençóis nos fundos de uma lavanderia.

A história começou a mudar quando a unidade de saúde fechou as portas e decidiu mandá-la para um abrigo. Foi quando a então copeira do hospital, Glaucia Santos Gomes, de 29 anos, decidiu lhe dar um lar.

Dona Cotinha chegou ao Beneficência aparentando idade entre 11 e 12 anos. “Contam que ela caminhava no acostamento de uma rodovia de mãos dadas a um menino de 4 anos quando um caminhão atropelou os dois”, contou Glaucia ao UOL. “Ele chegou morto e, ela, enfaixada dos pés à cabeça. Ficou seis anos enfaixada. Diziam que ela gritava, chorava de dor.”

Cotinha adora brincar de boneca e recebe carinho da filha de Glauce, Emily - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Cotinha adora brincar de boneca e recebe carinho da filha de Glauce, Emily
Imagem: Arquivo Pessoal

Como os funcionários do hospital deduziram que seu destino seria o orfanato, decidiram ficar com a criança, que aos poucos se recuperou e passou a trabalhar no hospital. Em 2006, foi transferida para a cozinha porque a umidade da lavanderia lhe trouxe problemas respiratórios.

Glaucia conheceu Cotinha naquele ano, quando começou a trabalhar na unidade. “Ela estava limpando a mesa. Na hora, pensei que fosse uma funcionaria.” Com o tempo, a relação entre elas se estreitou, como acontecia à maioria das pessoas que se aproximava de Cotinha, hoje com aproximadamente 62 anos. “Temos uma noção da idade porque o acidente foi em uma rodovia onde, há 50 anos, construíram um pontilhão”, conta Glaucia.

Em janeiro de 2016, o drama de Cotinha ganhou um novo capítulo. Foi quando o hospital fechou, atolado em dívidas. Ao notar que ninguém impediria que a idosa fosse mandada para um abrigo, Glaucia não pensou duas vezes e decidiu levá-la para sua casa. Estava certa de que o Beneficência Portuguesa iria reabrir mais cedo ou mais tarde. Mas não foi o que aconteceu.

“Todo mundo tinha uma relação com ela, mas quando o hospital fechou, ninguém quis saber. Então eu a levei pra minha casa”, conta Glaucia, que a acomodou no quarto da filha, Emilly, de 3 anos. “Meu marido também pensou que fosse temporário e aceitou que ela ficasse. Quando percebemos que o hospital não reabriria, decidimos ficar com ela de vez.”

Glauce diz que a vê como uma criança também de 3 anos. “Acho que ela tem um atraso mental. Ela entende, é inteligente. Teria se desenvolvido se tivesse ido a uma escola na época”, conta.

Dona Cotinha, que adora se juntar à Emilly para brincar de boneca, só balbuciou as primeiras palavras depois dos 50 anos, ainda com a dicção de uma criança que aprende a falar. Quando não está brincando, ajuda Glauce nos afazeres de casa. “Eu viro as costas e ela já está arrumando as coisas, pondo tudo no lugar. Ela guarda a louça, forra a cama dela…”

Dona Cotinha comemora aniversário no dia 12 de outubro, Dia das Crianças - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Dona Cotinha comemora aniversário no dia 12 de outubro, Dia das Crianças
Imagem: Arquivo Pessoal

Um nome

A ex-copeira decidiu falar publicamente sobre o assunto apenas recentemente, quando a idosa quebrou o pulso ao se desequilibrar e cair perto da garagem. Glauce conta que o hospital registrou Cotinha como indigente porque sua certidão de nascimento - feita há pouco tempo - não consta os nomes dos pais nem seu sobrenome. “O cartório colocou o nome dela de Maria de Tal. Quando eu vou ao médico, eles não aceitam. Ninguém entende porque faltam esses dados.”

Glauce tentou usar a certidão para dar entrada em uma aposentadoria por invalidez, mas vem enfrentando ainda mais dificuldade. “O INSS pediu CPF e RG para gerar uma conta na internet e mandar os dados a Brasília. Então, a Defensoria Pública está tentando emitir uma nova certidão, mas pra isso estão procurando algum registro dela em cartórios da região de Araraquara.”

Embora seja saudável, Cotinha precisará de cuidados especiais com o avanço da idade, por isso a necessidade de uma aposentadoria. “A probabilidade é que a saúde dela se debilite com o tempo, possivelmente tenha de usar fralda. Eu estou preparada. Se essa missão é minha, eu não vou deixá-la, nem conseguiria por minha cabeça no travesseiro e dormir. Então vamos lá, só peço ajuda até que eu consiga tirar a certidão.”

Glauce, que agora trabalha como cuidadora em uma casa de repouso, sonha em ver seu sobrenome na certidão de Cotinha. “Talvez fique Maria Gomes”, torce. “Queremos que a data de nascimento seja o dia 12 de outubro, Dia das Crianças, que é quando a gente comemora o aniversário dela.”

A última data foi celebrada na casa de repouso. “Eu trabalho em esquema de plantão de 36 por 12 horas. Aí eu trago ela e a Emilly pra ficarem comigo”, diz. “Fizemos um almoço especial, levamos bexiga…”

Glauce não se envaidece quando recebe elogios. “Eu sei que estou recebendo tudo em dobro. Eu consegui um emprego em que as pessoas deixam que eu a leve, por exemplo. Ao fazer bem a ela, eu abro as portas pra mim e dou um bom exemplo a minha filha.”

A cuidadora prefere que as doações sejam para as necessidades de Cotinha. “Eu prefiro comida e roupas. Tem gente que quer ajudar com dinheiro. No começou eu não queria receber, mas agora eu aceito. O que chegar está muito bom.” Para quem puder ajudar, os contatos de Glaucia são: (16) 98200-9625 e (16) 99963-2598.