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Ocupar ou não ocupar: rodas de samba e eventos de rua enfrentam restrições no Rio

Ensaio do bloco Tambores de Olokun no Aterro do Flamengo, zona sul do Rio - Divulgação
Ensaio do bloco Tambores de Olokun no Aterro do Flamengo, zona sul do Rio Imagem: Divulgação

Marina Lang

Colaboração para o UOL, no Rio

03/11/2017 00h18

A quatro meses do Carnaval, eventos de rua tradicionais do Rio de Janeiro vêm encontrando obstáculos por parte da prefeitura e da Polícia Militar, segundo relataram organizadores, músicos e produtores culturais ao UOL.

No dia 22 de outubro, um domingo, o bloco de cultura afro e maracatu Tambores de Olokun afirmou ter sido proibido de fazer o ensaio no Aterro do Flamengo pela prefeitura. “Estávamos na concentração do ensaio para o Carnaval e um superintendente da prefeitura junto ao grupo de moradores Amigos do Aterro Presente vieram nos dizer que não poderíamos ensaiar naquele local”, relatou a professora de dança Juliana Sotero.

Segundo ela, o grupo treina no local há cinco anos, e trata-se da primeira abordagem na tentativa de impedir o ensaio do bloco. “Disseram que o barulho do baque incomoda os gatos da região e nos pediram para ocupar 100 m à frente. O problema é que o local indicado não comportava o grupo. Ficamos uma hora negociando e dissemos que íamos ensaiar do mesmo jeito. Tivemos apoio de advogados que fazem parte do bloco. Quando começamos, [a prefeitura e o grupo de moradores] não voltaram”, disse Sotero.

“O Tambores de Olokun faz barulho entre 16h e 20h e estamos tomando bastante cuidado com o lixo: levamos sacos e recolhemos o máximo possível”, argumenta.

A professora de dança diz que tem notado maior cerceamento em relação a eventos musicais e culturais no Rio de Janeiro. “Isso fica evidente em lugares privilegiados na zona sul, mas há vários outros territórios na cidade em que provavelmente existam tentativas de abafar esse tipo de festa.”

O produtor cultural Julio Barroso, que acompanhou pessoalmente a questão do Tambores de Olokun no domingo, concorda e enxerga perseguição política na questão.

“Desde o começo do ano a cultura tem sido criminalizada e estigmatizada pela prefeitura. A classe artística do Rio de Janeiro --que se posicionou politicamente contra o impeachment de Dilma e é contrária ao que está acontecendo com o país-- vem sendo perseguida”, declarou. Ele citou como exemplo a redução do valor de subvenção das escolas de samba do Grupo Especial (de R$ 24 milhões para R$ 12 milhões), anunciado em junho deste ano.

A sensação de cerceamento a eventos da cultura de rua é o tom geral dos artistas e produtores com os quais a reportagem do UOL conversou. Um deles, que preferiu não se identificar por temer represálias, afirma que recebeu uma negativa ao informar a realização de um festival cultural de rua via sistema Carioca Digital. “A negativa foi esdrúxula, dizia que o evento não procede por falta de conveniência”, relatou. “Este prefeito está indo contra os direitos fundamentais do país democrático, a liberdade de expressão e o direito de ir e vir.”

No dia 20 de outubro, foi a vez do Rivalzinho, festa de rua tradicional no centro do Rio, que alega ter sido interditado parcialmente pela prefeitura.

“Pela decisão, podemos continuar funcionando, mas não podemos colocar nosso som, o que, na prática, inviabiliza nossas festas. Essa é a segunda medida do tipo em menos de seis meses”, disse o estabelecimento em nota. “O desencontro de informações e posições dos órgãos da prefeitura é espantoso. A cada semana, uma situação diferente é gerada: um setor multa, ameaça, interdita, e outro faz promessas de valorização da atividade com a sonhada transformação da rua Álvaro Alvim em um corredor cultural”, prossegue o comunicado.

Até o fechamento da reportagem, os organizadores do Rivalzinho ainda aguardavam uma deliberação da prefeitura a respeito da questão.

Outro lado e reviravolta

Procurada pelo UOL, a Prefeitura do Rio nega que o bloco Tambores de Olokun tenha sido proibido de se apresentar no aterro. Em nota, a assessoria do gabinete do prefeito Marcelo Crivella (PRB) afirma que “o órgão solicitou apenas a mudança do local do ensaio para 100 metros à frente, dentro do próprio parque, para atender ao pedido do Grupo de Protetoras dos Gatos do Parque do Flamengo. Segundo os protetores, o som dos tambores pode causar estresse e depressão, o que afeta a saúde dos animais”.

Já o superintendente da Zona Sul, Marcelo Maywald, agiu rápido: encontrou os organizadores do bloco após o episódio para chegarem a um consenso. Em post no Facebook, dois dias após conversar com a reportagem do UOL, o produtor cultural Julio Barroso se surpreendeu e elogiou o resultado da reunião.

Maywald teria atribuído o problema a uma “falha de comunicação” e colocou todos os representantes da querela em diálogo. “[As protetoras dos gatos] eram duas senhorinhas simpáticas que tinham idade para ser minha mãe”, escreveu Barroso.

Na base das críticas das antagonistas, segundo o relato do produtor cultural, estavam os maus-tratos que os felinos sofriam no aterro --algo que os artistas, por sua vez, negaram ter feito em qualquer ocasião. A paz foi selada no convite ao Grupo de Protetoras dos Gatos do Parque do Flamengo para participar do bloco e falar ao microfone a respeito do trabalho que vem desenvolvendo com os animais. O superintendente também garantiu ao grupo que a prefeitura não irá atrapalhar os ensaios dos blocos na cidade.

A reportagem procurou o grupo Amigos do Aterro Presente e o Grupo de Protetoras dos Gatos do Parque do Flamengo, mas nenhum representante foi localizado para comentar o assunto.

A prefeitura não comentou as críticas relativas à administração tampouco àquelas direcionadas ao prefeito Marcelo Crivella. Apenas afirmou que “as manifestações culturais de rua não estão sujeitas a proibições. Problemas pontuais estão sendo encaminhados e resolvidos pela Secretaria de Cultura”.

Já a Secretaria Municipal de Cultura anunciou, em nota, a criação dos Quarteirões Culturais, cujo intuito é fortalecer as festas de rua e manifestações culturais nas áreas afetadas (leia a íntegra do comunicado no final da reportagem).

Em setembro, a prefeitura anunciou que vai transformar o Parque dos Atletas, na zona oeste, em "blocódromo" no Carnaval sob o argumento de desobstruir o trânsito na Barra da Tijuca, medida que desagradou a Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro do Rio. 
 

Rodas de samba

Não é só o bloco de cultura afro que enfrentou percalços quando se trata de cerceamento para realização: três carros com policiais militares armados com fuzis impediram a realização da roda de samba PedeTeresa no dia 20 de outubro. A roda acontece às sextas-feiras, há dois anos, na Praça Tiradentes (centro do Rio).

“Os policiais foram educados e gentis, mas é claro que [ver um fuzil] intimida”,  disse ao UOL o músico Wanderson Luna, um dos organizadores do evento. Ele afirmou também que um representante da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana, que responde à Prefeitura do Rio) disse que a organização de coleta de resíduos não apoiará mais o evento.

Ele relata que não se trata da primeira vez que o cerceamento acontece. “Há dois meses nos impediram de fazer. E, no dia 11, fizemos a [roda de samba] Festa da Raça, também na Praça Tiradentes. Um grupo de 15 policiais tentou impedir a realização do evento, mas já estava lotado de pessoas e acabaram liberando”, disse.

Luna, que é coordenador da Rede Carioca de Rodas de Samba, também vê 2017 como um ano “extremamente difícil” para as tradicionais festas de rua. “Numa articulação da sociedade civil, nós conseguimos o decreto nº 43423, que avaliza a realização das rodas de samba sem a necessidade de alvará. Só que a polícia não vem reconhecendo este decreto. Não há uma articulação entre município e Estado”, pondera.

“Este ano estamos passando por muitas dificuldades. Sempre é uma guerra ao pedir no novo sistema de autorização. Sempre houve problema de liberação antes, mas nunca deixou de sair. Agora, tudo é mais complicado”, observa o músico.

A Rede Carioca de Rodas de Samba também aponta que 2017 tem sido um ano mais difícil para a realização desse tipo de evento cultural e tradicional da cidade. “Para a rede não é lidar com governo A ou B. De fato, nossa proposta não é nos envolvermos politicamente. Queremos dialogar com qualquer governo sobre as necessidades culturais da cidade”, disse a porta-voz da associação, Juliana Moraes. “Tentam controlar para que as rodas não aconteçam, para que aquilo não se torne algo maior, para que as pessoas não se manifestem artisticamente.”

A associação informa ainda que, além dos dois impedimentos da roda de samba PedeTeresa, a roda de samba Pedra do Sal “por inúmeras vezes teve que se confrontar para que a sua realização acontecesse”. A rede enumera também o Pagode do Balde, “uma roda que acontece em Guadalupe desde 1998 e que, a partir de maio deste ano, parou. Uma das questões recorrentes foi autorização com a polícia”.

Procurada pela reportagem, a Polícia Militar informou que, “segundo o comandante do 5º BPM [responsável pela área da Praça Tiradentes, onde ocorre a roda de samba PedeTeresa], os realizadores do evento não apresentaram documentação necessária”. A assessoria da PM, porém, não respondeu quando perguntada a respeito do decreto municipal nº 43423, que dispensa a autorização para a realização das rodas de samba na cidade do Rio de Janeiro.

Em nota, a Secretaria Municipal da Prefeitura do Rio informou que os secretários municipal e estadual da Cultura (Nilcemar Nogueira e André Lazaroni, respectivamente) se reuniram “a fim de evitar que ações policiais e de fiscalização interrompam ou cancelem programações de rua, como ocorreu com a roda de samba PedeTeresa, na Praça Tiradentes, na última sexta-feira”.

Segundo o comunicado, os secretários devem se reunir também com a Secretaria Estadual de Segurança, o Comando-Geral da PM, a Guarda Municipal e a Secretaria de Ordem Pública.

A Secretaria Municipal de Cultura declarou ainda que “também irá encaminhar ao prefeito Marcelo Crivella a minuta de um decreto que propõe a criação dos chamados Quarteirões Culturais em diversas regiões do Rio. A ideia é fazer com que áreas como a rua Álvaro Alvim, na Cinelândia, Ponto Chic, em Padre Miguel, Praça Tiradentes, no centro, Aterro do Flamengo e Pedra do Sal, na Gamboa, entre outras, sejam salvaguardadas, fortalecidas e incentivadas”.

Já a Comlurb --que teria dito ao organizador da roda de samba PedeTeresa que não apoiaria o evento-- declarou em comunicado que “realiza limpeza após a realização de eventos em áreas públicas desde que previamente autorizados pelos órgãos municipais responsáveis”.

A Secretaria de Cultura do Estado do Rio não se manifestou até a publicação da reportagem.