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"Esperei 4 anos", diz moradora de bairro em SP onde faltam vagas em creches

Acesso à favela de Paraisópolis, na Vila Andrade, zona sul de São Paulo - Simon Plestenjak/UOL
Acesso à favela de Paraisópolis, na Vila Andrade, zona sul de São Paulo Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

05/11/2017 04h00

Abrir mão do trabalho e do salário como diarista foi a única solução para que Maria Aparecida Pereira, 37, pudesse cuidar de sua segunda filha, ainda um bebê de colo. A criança tem seis meses de idade e, assim que ela nasceu, a mãe procurou vaga em uma creche no bairro onde mora, na zona sul de São Paulo. “A resposta sai entre dezembro deste ano e janeiro de 2018”, ela diz. “Eu vou ficar aguardando. Por enquanto, ainda estou em casa, cuidando dela.”

Por conta de uma experiência negativa com a filha mais velha (veja mais abaixo), ela nem tentou a rede pública. Desta vez, procurou uma creche mantida pela iniciativa privada, com serviço gratuito. 

Maria Aparecida e o marido, que é ajudante de serviços gerais, moram há 12 anos no centro da comunidade de Paraisópolis, uma das maiores favelas da capital e que ocupa boa parte do bairro chamado Vila Andrade. A dificuldade para conseguir atendimento em creches na região é antiga, pelo que ela diz, principalmente nas unidades administradas pela Prefeitura de São Paulo.

Maria Aparecida Pereira, 37, diarista e moradora da favela de Paraisópolis, em São Paulo - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
A diarista Maria Aparecida Pereira deixou o emprego para cuidar da filha mais nova
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Em 2012, quando nasceu a primeira filha, o casal inscreveu a criança em uma creche municipal perto de casa logo que ela completou o primeiro ano de vida. Somente em junho de 2017 a vaga foi confirmada, quando a menina já tinha cinco anos.

É um absurdo esperar quatro anos para ter uma resposta. Falei que não precisava mais da vaga e, assim mesmo, agradeci

Maria Aparecida Pereira, diarista

A filha mais velha do casal só pôde frequentar a educação infantil a partir dos quatro anos. A mãe torce para que a caçula tenha mais sorte e consiga vaga na creche privada, que é bancada por um colégio particular da região.

“No CEI (Centro de Educação Infantil, da prefeitura) nem tentei desta vez, porque com certeza não vão chamar”, afirma.

De acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), estar na escola é um direito de toda criança no país desde o seu nascimento.

Vizinho de bairro rico e pior distrito em vagas de creche

Entre 96 distritos paulistanos, a Vila Andrade é o pior no atendimento à demanda de vagas em creches e no tempo que se espera pela realização desse atendimento. Localizado ao lado do Morumbi, região de alto poder aquisitivo, o bairro tem condições de vida bem diferentes em comparação ao vizinho.

Acesso à favela Paraisópolis, na Vila Andrade, zona sul de São Paulo - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Detalhe da favela de Paraisópolis, na Vila Andrade, zona sul de São Paulo
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Segundo informações do Mapa da Desigualdade, organizado pela Rede Nossa São Paulo com dados oficiais de 2016 para comparar diferentes regiões da cidade, são 441 dias (um ano, dois meses e 11 dias) de espera, em média, para conseguir uma vaga em creche na Vila Andrade.

O melhor índice é registrado em Guaianases, no extremo da zona leste, com espera de 25 dias, em média. No Morumbi, são 164 dias (5,5 meses).

A Vila Andrade também tem o pior desempenho no quesito “matrículas efetuadas em relação ao total de inscritos por vagas em creches municipais”, com apenas 39% da demanda atendida. O melhor resultado, em Guaianases, é de 98,6%. No Morumbi, chega a 61,5%.

"Em dois terços de São Paulo, em especial nas periferias sul e leste, você vê uma completa carência de infraestrutura de cidade. Historicamente isso vem acontecendo, precisa de muita vontade política e coragem para reverter esse processo", afirma Américo Sampaio, sociólogo e gestor de projetos na Rede Nossa São Paulo. 

A entidade sem fins lucrativos faz este mapeamento com dados públicos há cinco anos. Para o pesquisador Sampaio, a região central da cidade é sempre a que mais recebe investimentos porque "também é a que tem maior influência política".

Vista do bairro do Morumbi, em São Paulo (SP), mostra prédio de apartamentos de luxo que faz divisa com a favela de Paraisópolis - Tuca Vieira/Folhapress - Tuca Vieira/Folhapress
Fotografia de 2004 mostra o contraste entre Paraisópolis e o bairro do Morumbi
Imagem: Tuca Vieira/Folhapress

“Paguei para deixar minha filha em berçário improvisado”

Moradora de Paraisópolis há 20 anos, Débora Gonçalves dos Santos Bezerra, 35, tem duas filhas, de 11 e 6 anos de idade. Nenhuma das duas passou por creches regulares nos primeiros anos de vida.

Débora Gonçalves dos Santos Bezerra, 35, moradora da favela de Paraisópolis - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Durante dois anos, Débora pagou para que cuidassem de sua filha, hoje com 11 anos
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Auxiliar de serviços gerais, a mãe das crianças sempre trabalhou, assim como o marido, que é motorista em uma transportadora.

Quando a primeira filha nasceu, ela pediu vaga em uma creche privada, mas a resposta só saiu dois anos depois. No caso da mais nova, a vaga veio um ano após o pedido ter sido feito.

“Nesses dois anos, para a mais velha, eu paguei para uma escolinha informal, tipo berçário. Naquela época, uns 12 anos atrás, eu pagava R$ 150 por mês”, diz Débora.

Com a segunda filha, foi a mesma coisa. Ela passou o primeiro ano de vida inteiro com cuidadoras informais.

O rico tem mais oportunidade e escolhe onde o filho vai estudar. A gente não pode fazer isso

Débora Gonçalves dos Santos Bezerra, auxiliar de serviços gerais

“A mãe precisa trabalhar para trazer o sustento para casa”

Sem vaga na creche, o jeito encontrado por algumas famílias é pagar para que alguém fique com a criança. Este é o caso da Viviane de Carvalho Salvador, 31, cuidadora de idosos em uma residência terapêutica. Ela e o marido têm emprego formal, com carga horária de até 12 horas por dia. A filha do casal completa seis anos em novembro e ficou com a avó paterna até os quatro anos, enquanto os pais trabalhavam.

Viviane de Carvalho Salvador, 31, moradora da favela de Paraisópolis - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Resposta da creche só veio quando a filha de Viviane já tinha quatro anos
Imagem: Simon Plestenjak/UOL
"Tentei em um CEI quando ela tinha dois meses, mas me chamaram só no ano retrasado, quando ela já tinha quatro anos de idade”, diz.

Criada em Paraisópolis, Viviane passou com a filha o mesmo problema que seus pais enfrentaram há três décadas. Os dois trabalhavam, e ela ficava na casa da avó. Só teve o primeiro contato com um ambiente educacional aos sete anos e nunca foi para a creche. 

“A gente precisa trabalhar e não tem com quem deixar. O que acontece muitas vezes é deixar a criança sozinha em casa. Aí ‘montam’ em cima da mãe e dizem que ela é a culpada. Mas ela precisa trabalhar para trazer o sustento para casa”, diz.

“Graças a Deus tem as associações privadas”

Além de creches municipais, entidades privadas educacionais amparam parte da demanda na Vila Andrade. Uma delas é a Associação Crescer Sempre, criada em 1998 para oferecer educação infantil, principalmente para as famílias de Paraisópolis.

O atendimento começou com 150 crianças de quatro a seis anos de idade e chegou a 600, em período integral, diz Márcia Oliveira Paladino, 42, pedagoga e coordenadora-geral de educação infantil na entidade sem fins lucrativos.

A lista de espera chegou a 2.000 crianças no primeiro ano

Márcia Oliveira Paladino, pedagoga

Atualmente, são atendidas pela associação cerca de 900 pessoas, entre educação infantil, reforço para alunos de oitava e nona séries, ensino médio integral e cursos profissionalizantes. A fila de espera ainda existe e é de 200 crianças.

“A sugestão de oferecer esse serviço veio dos professores de primeiro ano de escolas estaduais na região, que já eram ajudadas pelo criador da Crescer Sempre antes da sua fundação”, ela explica. “Esses professores recebiam as crianças sem passar por educação infantil e, portanto, sem estimulação, sem o básico.”

Márcia Oliveira Paladino, 42, pedagoga e coordenadora-geral da Associação Crescer Sempre - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Márcia Oliveira Paladino, pedagoga e coordenadora da Associação Crescer Sempre
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

“A formação que se tem de zero a seis anos é superimportante para a vida. Existem vários estudos hoje que falam sobre isso e a gente vê isso na prática”, diz a pedagoga. “Aqueles que não passaram por uma educação infantil têm uma postura e uma organização totalmente diferentes daqueles que passaram. Em termos de conteúdo, se perde, mas isso é mais fácil recuperar.”

“Graças a Deus tem essas associações privadas”, diz Maria Aparecida Pereira. “A maioria das nossas crianças, tudo o que elas têm e sabem vem de associação privada, não pública”, afirma Viviane de Carvalho Salvador.

Demanda em São Paulo é de 132 mil vagas em creches

De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, os dados da educação infantil atualizados em 30 de setembro de 2017 (os mais recentes) mostram que foram criadas 7.762 vagas em creches desde o começo do ano. Com isso, o atendimento de alunos com até três anos de idade chegou a 291.979 matrículas em CEIs (Centros de Educação Infantil). No mês de setembro de 2017, a demanda em creches era de 132.365 vagas.

Segundo a assessoria, "a estratégia de atendimento em creche prevê a criação de mais 23 mil vagas ainda neste ano por meio de ampliação de convênios, totalizando 30 mil vagas". Para isso, serão gastos R$ 49 milhões, segundo a Prefeitura de São Paulo, em parcerias com entidades privadas já existentes.

Em dezembro de 2016, a demanda por vagas em creche era de 65.040 e havia 284.217 crianças matriculadas.

A Prefeitura de São Paulo informou que não tem como comentar os números apontados pela Rede Nossa São Paulo, por se tratar de dados do ano de 2016, referente à gestão municipal passada (Fernando Haddad, do PT). A assessoria da gestão João Doria (PSDB) afirmou também que não há um levantamento disponível sobre tempo de espera por vaga em creche. Também não foi divulgado à reportagem o número de entidades privadas com as quais a prefeitura mantém convênio para atender crianças menores de quatro anos nem o número de CEIs na cidade.

A reportagem tentou contato com Gabriel Chalita (PDT), secretário de Educação entre 2015 e 2016, mas ele estava em viagem e não pôde responder.

O UOL também procurou a ex-vice-prefeita Nádia Campeão (PCdoB), que sucedeu Chalita na secretaria. Ela afirmou que, na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), de 2013 até o dia 30 de novembro de 2016, foram acrescidas à rede municipal de Educação 99.229 novas matrículas no ensino infantil, sendo 82.896 para crianças de zero a três anos e 16.333 para as de quatro a cinco anos. "Ao todo, foram implantadas neste período 425 novas unidades de creches [considerando modelos direto, indireto e conveniado]".

Segundo Nádia, no final da gestão Haddad a demanda por creche foi "a menor registrada para o mês em comparação com anos anteriores".

A ex-secretária aponta que Campo Limpo, onde fica o distrito da Vila Andrade, recebeu 12.273 vagas em CEIs. Na área, continua, foram construídos 16 centros de educação infantil. Segundo ela, nessa região e na Capela do Socorro há dificuldade em localizar terrenos que possam ser destinados a esse tipo de construção (a área é de manancial, com várias restrições) e estejam próximos à demanda ("no caso das creches a proximidade é fundamental"), diz.