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Projeto de termelétrica no litoral de SP ameaça terras indígenas e mata atlântica

Indígenas e moradores de Peruíbe (SP) protestam contra termelétrica em setembro - Joana Moncau/Repórter Brasil
Indígenas e moradores de Peruíbe (SP) protestam contra termelétrica em setembro Imagem: Joana Moncau/Repórter Brasil

Felipe Floresti

Da Repórter Brasil, em Peruíbe (SP)

22/11/2017 04h00

Não é a primeira vez que Lílian Securela, 52, se vê obrigada a resgatar a força do seu nome indígena: Tupã Rendy, que em tupi-guarani, quer dizer "irmã do trovão". Em 2008, o então bilionário Eike Batista queria construir um porto em Peruíbe, na Baixada Santista (SP), a poucos quilômetros da terra indígena Piaçaguera, onde vivem Securela e outras 40 famílias.

A comunidade, juntamente com os moradores da cidade, resistiu e Eike terminou desistindo do Porto Brasil.

Desta vez, a batalha é maior: ela luta contra o projeto da maior termelétrica em área urbana do mundo, prevista para ser construída a apenas cinco quilômetros de Piaçaguera.

Na comunidade, pouco se sabe sobre o impacto ambiental que a termelétrica teria na região. "Ainda falta esclarecer muita coisa. Porque começaram [a dizer] só isso: 'Vai ter uma usina', ponto. Ninguém sabe como vai ser", diz Securela.

Sabe-se que é um projeto ambicioso, orçado em R$ 5 bilhões. Conta com uma usina movida a gás natural, uma rede de transmissão de energia de 92 km, dois gasodutos subterrâneos que somam 92 km e um porto offshore, afastado da costa, que receberia cargueiros com o gás natural.

Essa estrutura afeta pelo menos seis territórios indígenas, sete cidades litorâneas e uma população de aproximadamente meio milhão de pessoas.

Criança desenha - Joana Moncau/Repórter Brasil - Joana Moncau/Repórter Brasil
Criança desenha possíveis impactos da termelétrica na comunidade: "Essa usina vai matar a natureza! Socorro", escreveu
Imagem: Joana Moncau/Repórter Brasil

O processo de licenciamento ambiental correu rapidamente, se comparado a outros projetos de grande porte, de acordo com o Ministério Público Federal.

Foi protocolado em abril pela Gastrading Comercializadora de Energia S.A e, em um intervalo de dez dias, a empresa marcou audiências públicas em cinco cidades (Cubatão, Praia Grande, Itanhaém, Mongaguá e Peruíbe).

"Diante da complexidade do empreendimento, é recomendável que as audiências tivessem sido feitas de maneira espaçada", afirma o procurador Yuri Correa da Luz. "Também chama a nossa atenção o fato de os empreendedores serem provenientes do mercado financeiro; são novos no ramo de energia."

Foi apenas quando a audiência chegou a Itanhaém, há três meses, que as lideranças indígenas descobriram que o projeto existia. A notícia, desacreditada no princípio, caiu como uma tormenta sobre os indígenas. Mas Securela conseguiu juntar forças para mobilizar a comunidade, se unir às demais aldeias e fazer barulho. 

O momento de apresentar o projeto à sociedade local, porém, parece "encantado". A primeira audiência em Peruíbe foi adiada porque moradores indígenas e não indígenas estavam tão mobilizados que o local escolhido para o evento não tinha capacidade para receber a todos.

A segunda audiência, remarcada para 28 de setembro, tampouco aconteceu. Uma liminar da Justiça proibiu o evento, sob a justificativa de falta de um auto de vistoria do Corpo de Bombeiros.

Mesmo com o cancelamento da segunda audiência, Securela e moradores da região foram ao local e protestaram contra a usina empunhando faixas.

Associações de moradores, biólogos, juízes, advogados e políticos passaram a pressionar. Em 1º de novembro, vereadores de Peruíbe aprovaram uma lei municipal proibindo a instalação de qualquer projeto de impacto ambiental na cidade.

A Gastrading, responsável pelo projeto, entrou com uma ação na Justiça alegando inconstitucionalidade da lei e desvio de finalidade, segundo nota oficial (leia íntegra ao final da reportagem).

Securela - Joana Moncau/Repórter Brasil - Joana Moncau/Repórter Brasil
Lílian Securela, liderança de Piaçaguera: "Ainda falta esclarecer muita coisa"
Imagem: Joana Moncau/Repórter Brasil

Os impactos da obra

A Gastrading, empresa do grupo Léros, fez renascer as tensões, muito atuais em todo o país, da disputa entre o desenvolvimento e a preservação do meio ambiente. As termelétricas, que produzem energia a partir da queima de recursos fósseis, são mais poluentes do que as hidrelétricas --consideradas uma matriz limpa e base principal da política energética brasileira.

A estratégia atual da Gastrading é semelhante à da LLX, de Eike Batista, cujos representantes ofereciam casas, dinheiro e terrenos maiores em outros locais para fazer com que os indígenas desistissem de suas terras. Agora, representantes da Gastrading visitam comunidades caiçaras e os bairros mais carentes da cidade prometendo empregos e capacitação.

Os números propagandeados são de encher os olhos: cerca de 4.500 vagas seriam criadas nas obras para implantação do projeto, batizado de Verde Atlântico Energias.

As obras trazem também impactos negativos. Tráfego de caminhões, barulho e cada vez mais gente --atraídas pela oferta de empregos-- no humilde bairro Cidade Nova Peruíbe, o mais próximo da usina.

"O município seria descaracterizado. Perderia sua vocação ambiental e assumiria outro perfil socioeconômico", diz Rosangela Barbosa, advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que está acompanhando o caso.

A Estância Balneária de Peruíbe tem no turismo sua vocação e principal fonte de renda. Principalmente o ecológico, já que 70% de seu território é de área de preservação. São 32 km de praias, algumas praticamente intocadas.

Praia - Joana Moncau/Repórter Brasil - Joana Moncau/Repórter Brasil
Crianças da terra indígena Piaçaguera brincam na praia de Peruíbe
Imagem: Joana Moncau/Repórter Brasil

Desde o início, as obras preveem a destruição de mata atlântica, tanto nos 46 hectares da usina como ao longo dos 92 km da linha de transmissão, o que afetaria não apenas as comunidades indígenas da região, mas o habitat de diversas espécies ameaçadas. Entre elas, plantas como a juçara e a canela, aves como o tucano-de-bico-preto, além de mamíferos, como a onça-pintada e a preguiça. 

Acabada a obra, os empregos desapareceriam. A previsão é que a usina empregue 350 pessoas em sua operação, de acordo com a própria empresa. Os postos de trabalho exigiriam mão de obra especializada.

Botos, baleias e tartarugas ameaçadas

A Área de Proteção Ambiental Marinha Litoral Centro também deve sofrer. Envolvendo todo o litoral da cidade, vai abrigar a parte marinha do projeto.

Um emissário submarino a 2 km da costa vai despejar 2.400 toneladas de água ao mar por hora, em temperatura superior à natural, causando um desequilíbrio ao ecossistema marinho. As embarcações, com riscos de acidentes e derramamentos de óleo, também apresentam ameaça. Estão na mira toninhas, baleias-francas, cachalotes, botos cinzas e pelo menos cinco espécies de tartarugas.

É do ar que vem o maior perigo a toda a população, incluindo a Terra Indígena Piaçaguera e outras cinco dentro da área de impacto do projeto (Guarani do Aguapeu, Serra do Itatins, Peruíbe, Tenondé Porã e Itaóca).

A professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Sonia Corina Hess, especialista em química e meio ambiente, se debruçou sobre os números concedidos pela empresa para o processo de licenciamento ambiental.

Segundo seus cálculos, serão emitidas 3.000 toneladas de óxido de nitrogênio e 304 toneladas de enxofre todo ano por suas chaminés.

Esses gases, quando entram na atmosfera, reagem, formando ácido nítrico e ácido sulfúrico. São esses os principais componentes da chuva ácida.

Ela causa severos danos aos ecossistemas, como a perda da fertilidade do solo, corrosão das partes externas das plantas, perda da capacidade de crescimento e até morte. Contamina rios, lagos e o mar, causando sua acidificação e a morte de espécies animais e vegetais, segundo a especialista.

"Porém, minha preocupação maior é com a saúde das pessoas", afirma Hess.

O óxido de nitrogênio tem potencial de causar doenças como impotência, câncer, diabetes, mal de Parkinson, alergias e inflamações. "Estudos novos indicam que não existem níveis seguros dessas substâncias nas pessoas", revela Hess. "Elas vão ficar doentes, principalmente os moradores e trabalhadores, que estarão diante de uma exposição crônica."

A empresa informou, em nota, que "a atividade é compatível com a região ambientalmente, não oferecendo riscos ao meio ambiente ou à saúde da população local". A Gastrading diz ainda que "existem milhares de usinas termoelétricas em funcionamento no mundo e no Brasil e, em nenhuma delas, se observa como efeito a chuva ácida", diz a nota.

Ibama é contra a instalação da termelétrica

Diante da magnitude dos impactos, até o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que geralmente é o encarregado de processos de licenciamento ambiental desse tipo, se posicionou contra a termelétrica.

"Qual é o benefício para a população que mora ali, que vive em paz em seu meio ambiente controlado, quando de repente vem um empreendimento desse porte, com tamanho impacto?", questionou, durante audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, o superintendente do órgão para o Estado, engenheiro José Edilson Marques. "Esse processo está fadado a erro", completou.

Mas o processo de licenciamento saiu das mãos do Ibama e foi passado para os cuidados da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo).

Txeramoê - Joana Moncau/Repórter Brasil - Joana Moncau/Repórter Brasil
O txeramoê, líder espiritual da aldeia, Elias Awadju, fala em meio à roda na tribo
Imagem: Joana Moncau/Repórter Brasil

A Cetesb informou que o Ibama lhe delegou o licenciamento "por meio de Acordo de Cooperação Técnica assinado entre as partes, previsto na Lei Complementar nº 140, de 08/12/2011". Dessa forma, a Cetesb é exclusivamente responsável pela emissão das licenças ambientais para todas as fases de implantação do empreendimento (licença prévia, de instalação e de operação), como informou por meio de sua assessoria de imprensa.

A instituição ainda não emitiu parecer técnico e não informou qual a previsão para que isso aconteça. 

A legislação defende os interesses indígenas, exigindo que as comunidades  afetadas sejam ouvidas. Seu modo de vida, cosmologia e relação com o território devem ser levados em conta. Um processo que deve levar cerca de seis meses. Para Tupã Rendy, tudo bem. Acostumada com anos de luta, sabe bem que a pressa, nesse caso, é inimiga.

Enquanto isso, os índios da Piaçaguera estão preparados. Prometem não descansar até que o projeto ocupe o mesmo lugar que o Porto Real --aquele que foi cancelado relatado no início deste texto.

Quem afirma isso é o txeramoê, líder espiritual da aldeia, Elias Awadju. "Essa luta vai ser grande. Mas vamos vencer, da mesma forma que vencemos as outras."

A comunidade Piaçaguera diz que só sossega quando a tormenta passar e quando as folhas da mata estejam fora de risco.

Leia a íntegra da nota da Gastrading

"A Gastrading esclarece que, no dia 1º de novembro, impetrou ação junto ao Poder Judicial contra a Câmara Municipal da Estância Balneária de Peruíbe devido ao projeto de emenda à Lei Orgânica nº 03/2017 e de número 46/2017, por entender que esta é uma 'AÇÃO INCONSTITUCIONAL'. A empresa seguiu todo o rito do licenciamento ambiental, atendendo a todas as legislações municipais, estaduais e federais. As leis apreciadas no dia 1º de novembro evidenciam um desvio de finalidade com vistas a prejudicar somente o licenciamento ambiental do Projeto Verde Atlântico Energias, que está sendo realizado desde 2015. 

A Gastrading também entende que esse posicionamento da Câmara de Vereadores não representa a opinião da totalidade da população de Peruíbe e nem do Brasil. O país está prestes a vivenciar um novo 'apagão de energia' devido à crise hídrica. Assim, o país necessitará colocar em funcionamento usinas térmicas a óleo e carvão, que representam maiores custos de operação, consequentemente, energia elétrica mais cara e mais poluente.

A decisão do juiz: 'Não há risco de irreversibilidade da situação fática com eventual aprovação dos citados projetos, sem olvidar da possibilidade de reconhece-los irregulares, por desobediência ao rito próprio, ou mesmo na finalidade concreta deles...'. Também no despacho, o juiz cita a Câmara de Vereadores para prestar esclarecimentos sobre a ocorrência do trâmite dos projetos junto à CCJ para controle político ou preventivo dos citados projetos. Ainda foi solicitado parecer do Ministério Público Estadual.

Pelas razões citadas acima, a Gastrading reafirma seu compromisso junto à população de Peruíbe e do Brasil que dará continuidade ao Projeto Verde Atlântico Energias, pois entende que 'as regras existem para serem cumpridas'. O Brasil passa por um momento político que requer o claro cumprimento das legislações para atender aos interesses nacionais e mundiais, pois a geração de energia elétrica tem o gás natural como combustível é uma realidade em diversos países do mundo, considerando a alta eficiência, baixa nível de poluição e preços competitivos. Além disso, o projeto irá disponibilizar gás natural para atender a Baixada Santista e o Estado de São Paulo.

Sobre o Projeto Verde Atlântico Energias: O projeto Verde Atlântico Energias contempla uma Usina Termelétrica (UTE) e um Terminal GNL (Gás Natural Liquefeito), a serem construídos em Peruíbe (Litoral Sul de São Paulo). A iniciativa tem por objetivo gerar eletricidade a preços competitivos e oferecer alternativa confiável, mais limpa e com baixo impacto ambiental, além de disponibilizar gás natural para toda a região da Baixada Santista e para o estado de São Paulo. O projeto terá capacidade de geração de até 1,7 gigawatts de energia e potencial para atender 1,7 milhão de moradores na região.

A proposta de negócio da Gastrading é investir na diversificação da matriz energética brasileira e o gás natural é uma alternativa mais limpa em relação a outras fontes mais poluidoras, como o óleo e o carvão. Além disso, o projeto segue os padrões tecnológicos mais modernos do mundo, prezando por alta eficiência e baixa emissão de gases do efeito estufa. A tecnologia utilizada pela usina será a de ciclo combinado, que faz o reaproveitamento da queima do gás, gerando energia com índice de eficiência que chega a 62%. Essa metodologia tem baixíssimo impacto na qualidade do ar porque não gera particulados e não exala cheiro".