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Faça mil vezes bem para quem te fizer mil vezes mal, diz refugiado com "fome de ajudar"

O congolês Omana, que criou entidade para ajudar outros refugiados que chegam a SP - Marcelo Justo/UOL
O congolês Omana, que criou entidade para ajudar outros refugiados que chegam a SP Imagem: Marcelo Justo/UOL

Clayton Freitas

Colaboração para o UOL, em São Paulo

08/01/2018 04h00

Em um domingo do final de dezembro, na Vila Matilde (zona leste de São Paulo), um cão late fervorosamente quando a reportagem bate palmas do lado de fora do portão da casa. É o local marcado com Omana Kasongo Ngandu Pentech, um refugiado de 52 anos da República Democrática do Congo (ex-Zaire).

Depois de muita demonstração de ferocidade do cão e da quase desistência do repórter e do fotógrafo, uma adolescente com "dreadlocks" (cabelos à moda rastafári) sai à porta: "Quem vocês estão procurando?", pergunta, com um sotaque estrangeiro quase indecifrável. "Buscamos Omana!"

A garota fecha a porta sem nada dizer. Depois de  algum tempo, um senhor alto, forte, sorridente e vestido elegantemente com um blazer claro aparece no portão ao lado: "Venham, amigos".

Omana, um professor que, além das letras, descobriu na luta pelos direitos humanos a vocação, leva a reportagem para o seu "escritório".

Fica na garagem da casa, onde ele instalou a poltrona onde se senta, uma mesa e cadeiras para receber as visitas. Atrás, um amontoado de donativos recebidos de uma escola na qual ele contou sua já tão conhecida história de luta e sobrevivência.

Vai completar cinco anos daquele dia, quando Omana foi baleado e, enquanto estava caído numa vala, sentiu o líquido quente escorrer pelo corpo, fruto do sangue que esvaía de pedaços de pessoas que jaziam mortas em cima dele. Impossível imaginar que aquele sorriso passara por tamanha atrocidade.

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Detalhe da camiseta da ONG que fundou em São Paulo
Imagem: Marcelo Justo/UOL

O celular dele toca. Omana fecha o largo sorriso, franze a testa, pede desculpas e atende ao telefone. Atravessa uma porta de ferro, fala alto do outro lado em um dialeto e, minutos depois, volta.

Novamente se desculpa, bate sua grande mão direita levemente na mesa e explica que acabara de receber um telefona de amigos de Uganda informando a decapitação de 34 companheiros seus.

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Diz que é a "guerra do governo contra as pessoas do Congo" e, talvez de forma inconsciente, dispara um sorriso como se nada tivesse acontecido.

Desferimos perguntas: sobre sua visão da política atual no Brasil, as dificuldades de um refugiado ao chegar ao país. E também sobre como ele, depois de ter passado pela experiência de quase morrer, ainda mantém o sorriso aberto e tamanha positividade.

A esta última questão ele assim responde, mostrando a profundidade do aprendizado: "Se alguém te fizer mil vezes mal, faz para ele mil vezes coisas boas".

Denúncias causaram prisão e agressões

A quase morte de Omana não é aqui licença poética.

Nascido na província de Kisangani, no leste do país, ele estudou letras, ciências e cultura africana na mais renomada universidade do Congo. Mesmo formado, não podia ser professor titular se não escrevesse sua tese.

Para isso, foi à França, onde travou contato com um grupo de direitos humanos e despertou ainda mais para as atrocidades que ocorriam em sua terra natal contra crianças --sequestradas e recrutadas para atuar em milícias-- e mulheres --vítimas de violência sexual.

De volta ao seu país, agora como professor titular, fundou, em paralelo à docência, uma ONG para defender os direitos das crianças e das mulheres. Seu trabalho, realizado com o apoio da própria mulher, consistia em fazer palestras para conscientizar a população. Isso provocou a ira do governo, e Omana tornara-se, assim, um forte opositor e perseguido.

Enquanto desenvolvia o trabalho na ONG, Omana foi preso, agredido e solto tantas quantas foram as vezes em que se insurgiu e denunciou as atrocidades cometidas em seu país.

Instado pela reportagem a exibir as marcas que carrega no corpo até hoje, de tiros, facadas e outras tantas formas de agressão de que foi vítima, Omana diz "não ser necessário" e que não se sente à vontade para tanto, abrindo novamente o seu largo sorriso.

Após liderar uma paralisação de 13 dias em seu país para alertar sobre as violações dos direitos humanos, Omana foi mais uma vez preso. Mulheres marcharam nuas até a delegacia onde ele estava, o que constrangeu as autoridades locais, que o liberaram. Foi o estopim para o que viria a seguir.

De volta a sua casa, ficou de sobreaviso, sabendo que poderia ser morto a qualquer momento. Militares foram até lá e, enquanto Omana os recebia na porta, sua mulher e filhos fugiram com todo o dinheiro que ele tinha para Uganda, país vizinho.

Ao ser detido, Omana foi encaminhado para um caminhão, viu a própria vala onde viria a cair "morto" e, numa sorte da vida, descobriu que um dos militares o reconheceu, prometendo ajuda.

Mas, em vez do auxílio, os companheiros de farda do rapaz desferiram tiros, que deixaram Omana inconsciente em meio a pedaços de corpos e sangue quente de outros "insurgentes" do governo da República Democrática do Congo.

Dois dias se passaram. Nesse período, o professor foi resgatado, levado até Uganda e, de lá, ao Quênia. Ao acordar e ser atendido, ele foi questionado por um médico brasileiro sobre qual país gostaria de se refugiar, já que, se permanecesse na região, seria morto. Escolheu como refúgio o Brasil, ficou um ano sem notícias de sua família e só soube depois que sua filha mais velha fora morta no dia da invasão a sua casa.

A garota não estava no local no dia da invasão, mas numa igreja local. Foi perseguida e assassinada. Só três anos depois Omana conseguiu reunir o que restou de sua família novamente, e hoje todos vivem na zona leste de São Paulo, que concentra um grande número de refugiados na capital paulista.

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Omana e os filhos na zona leste de São Paulo
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Esperança com nome de palmeira

No Brasil, Omana queria trabalhar, lecionar em uma universidade. Virou funcionário de um lava-rápido no Itaim Bibi (bairro rico da zona oeste de São Paulo). Inconformado, ficou pouco tempo e depois descobriu uma escola de idiomas onde poderia lecionar francês para brasileiros.

Um dos alunos ouviu sua história, quis ajudá-lo e o levou para uma empresa em Alphaville, em Barueri (Grande São Paulo), onde ficou durante quatro anos lecionando francês. Inquieto, Omana decidiu se engajar em algum projeto social e conheceu uma ONG, onde teve um espaço para dar suas aulas e ganhar dinheiro.

Decidiu, em abril de 2016, montar sua própria ONG, a Mungazi, homenagem a uma espécie de palmeira com funções variadas, que vão de remédio a construção de casas. "Tem muitos significados [a palmeira], inclusive de esperança. Você pode cortar o mungazi, mas ela volta a crescer por sua raiz", afirma. 

Questionado se isso está relacionado à sua história, ele confirma, já que diz ter sido muito bem recebido no Brasil, mas que sua raiz está no Congo, onde tenta auxiliar aqueles que ficaram. "Minha cabeça está lá, no povo que eu deixei lá", afirma.

Congolês ajuda 1.500 refugiados

O sorridente congolês diz que a Mungazi auxilia quase 1.500 refugiados. Entristece-se, porém, ao calcular que 95% deles não têm trabalho e que o Brasil, apesar de tê-lo recebido, não tem uma política satisfatória para abrigar aqueles que chegam de países que estão em conflito, em situação de guerras ou de flagelos naturais.

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Imagem: Marcelo Justo/UOL
Dá como exemplo o seu caso, já que, mesmo tendo formação na França, não pode lecionar em instituições de ensino superior no Brasil. "Eu não entendo direito o que é esquerda, direita aqui. Parece tudo igual. E sei que o país passou por uma séria crise econômica e política", afirma.

Questionado sobre como conserva o largo sorriso no rosto ante tudo o que passou, ele abre mais ainda seus lábios, mostra seus grandes dentes e afirma: "Eu sorrio porque é uma forma de conversar, de aproximar as pessoas. Você nunca vai me ver com raiva. Se eu te recebesse aqui carrancudo, como teríamos um contato? O que eu passei é uma forma que Deus escolheu para me mostrar que, sempre que eu passar uma dificuldade, vou me lembrar do que passei no Congo e seguir em frente", diz.