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'Não dá para evitar, é mais forte que a gente': o que dizem os motoristas adeptos do racha

Advogado diz que o que coíbe rachas é a certeza da punição; como ela não existe, motoristas praticam. Na imagem de arquivo, disputa na marginal Pinheiros, em SP - 24.mar.2014 - Avener Prado/Folhapress
Advogado diz que o que coíbe rachas é a certeza da punição; como ela não existe, motoristas praticam. Na imagem de arquivo, disputa na marginal Pinheiros, em SP Imagem: 24.mar.2014 - Avener Prado/Folhapress

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

20/01/2018 04h01

Um idoso atropelado quando atravessava a faixa de pedestres em frente ao prédio onde morava. A disputa entre um Chevrolet Camaro e uma Mercedes-Benz CLS, que atingiu uma Ecosport na qual duas famílias voltavam das férias na praia. Esses episódios registrados nas últimas semanas em São Paulo deixaram um saldo de três mortos, colocando luz sobre a prática do racha e seus perigos. 

Sobreviventes e especialistas em trânsito relatam e debatem esse tipo de disputa, mas pouco dizem publicamente os seus adeptos. A seguir, três deles contam de forma anônima suas experiências de alta velocidade atrás do volante --o quarto, que se diz ex-praticante, divulga vídeos de racha no YouTube. Em comum, todos se dizem apaixonados por carros, reconhecem o perigo de suas ações e nunca foram flagrados nem punidos por isso. 

4 Racha na marginal Pinheiros, em São Paulo  - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress
Carro de luxo em ponto de racha; foto foi registrada na marginal Pinheiros (SP), em 2014
Imagem: 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress

O Código Brasileiro de Trânsito prevê penalidades para quem disputar corrida, promover demonstração de perícia em manobras nas vias e realizar arrancada brusca, derrapagem ou frenagem com deslizamento de pneus. Todas as infrações são gravíssimas, com penalidade de até dez vezes o valor-base da multa (gravíssima), suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo. Os praticantes podem pegar até dez anos de prisão se causarem mortes.

Na prática, no entanto, não é que se vê. “O que coíbe não é a pena, é a certeza da punição. Como eles quase nunca são flagrados, continuam. Não há fiscalização física nem monitoramento por meio telemático [radares] onde se sabe que existem os rachas”, avalia Mauricio Januzzi, presidente da Comissão de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP).

Confira a seguir os depoimentos dos motoristas.

“Penso o mesmo que todo mundo: tá errado, eu tô errado”
André*, 25

Morador de Santos (72 km de São Paulo), André geralmente participa de dois encontros automotivos por semana. No final, é comum os fãs de velocidade darem “uma esticada, uma puxada, tirarem um rachinha”, como define. “A gente faz nas ruas da cidade, mesmo, mas tem o cuidado de ser de madrugada, porque tem menos movimento. Ali [em São Paulo] fazem em qualquer lugar, não respeitam.” 

André admite que seu hobby “não é certo”: “Certo seria não correr. Eu penso a mesma coisa que todo mundo: tá errado, eu tô errado”. Mas explica por que pratica o racha desde que comprou seu primeiro automóvel, assim que tirou carta:

A adrenalina traz um sentimento muito bom depois de sair do carro e, principalmente, durante o racha. A adrenalina de fazer uma ultrapassagem arriscada dá prazer, é excitante. Tem gente que gosta de pular de paraquedas, eu gosto de correr 

Ele conta que, aos 19 anos, já andou na contramão em uma avenida importante de Santos, com caminhões vindo na direção oposta. “Eu era mais moleque, não tinha limite”, continua ele, que sempre trabalhou com carros e preferiu não ter sua profissão revelada. 

3 Racha na marginal Pinheiros, em São Paulo  - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress
Adeptos reclamam do preço para correr em pistas fechadas, como o autódromo de Interlagos. Na foto de arquivo, fãs se reúnem em posto na marginal Pinheiros (SP)
Imagem: 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress

Para deixar seu carro mais rápido, calcula ter gasto R$ 9.000 no modelo comprado por cerca de R$ 50 mil. A cada mês, desembolsa R$ 600 com combustível. Mas diz não frequentar pistas de corrida justamente por causa do preço. “Não tem como ir ao autódromo e pagar R$ 500 para rodar 30, 40 minutos. Ainda mais porque a manutenção do carro é cara.” Critica o governo, dizendo que deveria haver opções baratas, como um autódromo público, e cita o exemplo das rodovias alemãs, sem limite de velocidade.

André revela algumas práticas que adota para acelerar: prefere as madrugadas, as ruas conhecidas (para não pegar buraco, por exemplo), liga o aplicativo Waze para evitar blitz e usa adesivos nas placas do carro para burlar radares (“custa R$ 130, é transparente e fica em cima das letras, a polícia nem vê”.). Nas rodovias, onde diz já ter chegado a 270 km/h, opta por um bloqueador que interfere na frequência de radares. Por fim, não entra em disputa com carros considerados inferiores.

Não vou correr com meu carro preparado contra um Paliozinho. Tem de ter a mesma potência ou ser mais forte. A ideia é ganhar, chegar na frente, ver quem é o melhor. Às vezes apostamos uma garrafa [de bebida], um tanque de gasolina

Ele conhece praticantes de racha que morreram e capotaram o carro --não conhece, no entanto, alguém que tenha sido preso por causa dessa prática. Diz que já “saiu de lado na pista, quase indo parar no canteiro” e tomou duas multas por excesso de velocidade na estrada (“era radar móvel, de dia. O colante na placa não funciona”). Admite que o medo existe, mas fala que “não dá para evitar, é mais forte que a gente [correr]”. “Da mesma forma que o paraquedas pode não abrir, um freio pode falhar. O caso do Ayrton Senna não foi uma falha?”, compara. 

Solteiro, considera-se um “cara tranquilo” e conta que a família desconhece seu envolvimento com rachas. Se sofresse um acidente e eles descobrissem, acredita que ficariam surpresos: “Eu falaria que não estava correndo, que foi uma fatalidade”.

“Tenho consciência, sei o que estou fazendo”
Vitor*, 21

“Respeito as leis de trânsito. Quase sempre obedeço, só não obedeço quando quero acelerar”, conta Vitor, 21, morador do interior de São Paulo que diz correr quando “vejo que posso, que dá, que não tem radar nem polícia”. Outra infração já cometida foi beber antes de dirigir e, em uma dessas ocasiões, ao deixarem um bar de madrugada, dois conhecidos pediram para sair do carro. “Eu nem estava muito rápido, mas o carro rebaixado dá essa impressão. Eles ficaram com medo e quiseram descer.”

O modelo 1.0 ele vendeu recentemente, ao mudar de cidade por causa do emprego, mas continua com sua moto de 600 cilindradas. “Eu gosto de moto, de carro. Em resumo, gosto de motor. Aos 3 anos eu usava o prato de comida como volante e, bem antes de tirar carta, já pilotava kart. Meu sonho de criança era ser motorista de viatura para poder acelerar”, lembra. Com esse histórico, nenhum acidente e uma só multa na carteira –velocidade acima do limite, a 89 km/h com a moto--, ele garante ser um bom motorista.

Tenho consciência, sei o que estou fazendo. Sei entrar e sair da curva, a hora certa de frear... Faço porque gosto e sei, mas muitos não sabem: fazem só para aparecer, se mostrar. Tem muita gente inconsequente, que acaba causando acidente 

2 Racha na marginal Pinheiros, em São Paulo  - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress
Praticantes de racha podem ter carteira suspensa, carro apreendido e ser presos; na foto de arquivo, carros se preparam para disputa em marginal de São Paulo
Imagem: 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress

Vitor conta que hoje, se quer acelerar, vai para as rodovias --nesse ambiente, diz, chegou a 170 km/h com o antigo carro e também com a moto. “Sei que tenho pouco juízo.”

“Se estou dirigindo e alguém me ultrapassa, não gosto. É instinto. Vou pesquisar, ver o que posso fazer [no veículo], melhorar.” Quando corria na cidade onde vivia (ele diz que a atual tem muitas lombadas), dava preferência às retas durante a madrugada, horário de menos movimento. Seus veículos são sempre modificados para “ganharem um toque e ficarem parecidos comigo”.

Meu vício é preparar, mexer e testar [os veículos]. Gasto 90% do meu salário com isso. Não tem coisa mais gostosa que ouvir o barulho do motor, o carro cantar pneu. Meu sonho é ter um turbinado: é como andar em uma montanha-russa

A montanha-russa, reconhece, oferece menos riscos. Ele diz saber que a prática de racha é errada e que “a multa deve ser uns R$ 2.000, R$ 3.000” –Vitor não conhece ninguém que tenha sido punido por isso. Mesmo sabendo dos riscos, para ele e para os outros, afirma que nada o faria parar: “Não tem como mudar minha opinião, minha cabeça, o que eu gosto”. Talvez, pondera, correria em pistas fechadas e não nas vias públicas se tivesse “muito dinheiro”. “No Brasil [correr em pista] é um absurdo, custa uma fortuna.”   

"Ultrapassar um carro potente é como fazer um gol"
Marcos*, 20

Se os moradores de São Paulo reclamam dos preços para correr em pistas fechadas, Marcos aponta a falta de um autódromo no Estado do Rio de Janeiro como motivo para os racheiros correrem nas vias públicas. “Mas é diferente de jogar futebol na rua por não ter um campo perto da sua casa. No racha, você pode machucar pessoas. Esses casos [recentes em São Paulo] não foram os primeiros e não serão os últimos. Infelizmente.”

Ele conta que, na cidade onde mora, os praticantes fecham de ponta a ponta um trecho de rua para disputar os pegas. Assim, diz, reduzem as chances de alguém de fora ser ferido naquilo que chama de “brincadeira”. “A preocupação que eu e meus amigos temos em relação à segurança não é a de todos, por isso tantos acidentes. Falta compaixão e respeito ao próximo: não só no trânsito como na sociedade em geral. As pessoas só veem seu lado.”

É uma irresponsabilidade, uma prática ilegal. Falar sobre isso é a confissão de um crime. Fazemos sabendo disso, mas, dentro do errado, queremos que todos só encontrem aquilo que foram buscar: diversão

O motivo que leva Marcos a acelerar ao máximo seu carro --no qual, incluindo as modificações, gastou cerca de R$ 7.000-- é a adrenalina. Ele compara a sensação à de um esporte radical e diz que “ultrapassar alguém com quem está competindo, principalmente com um carro melhor que o seu, é como fazer um gol no futebol. É arriscado, mas muita coisa é assim também. Para morrer basta estar vivo”, continua.

Sua família “tem ideia” que ele gosta de correr, mas não sabe da participação em rachas.

Fora da pista ocasionalmente fechada, onde diz ter chegado a 160 km/h, ele afirma raramente passar dos 100 km/h. “Dirijo de uma forma completamente diferente [no dia a dia]. Não tem por que correr: consome mais gasolina, pneu, freio, força o carro. Para quê? Para nada. Correr nas ruas e nas estradas, colocando os outros em risco, é coisa de quem não tem lucidez.”

Uma coisa é eu me machucar, outra é eu machucar alguém, carregar essa culpa e ter minha consciência me punindo. Não faço onde tem outros carros, pedestres. Precisa ter consciência, mas realmente tem gente que arrisca 

5 Racha na marginal Pinheiros, em São Paulo  - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress - 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress
Dirigir de madrugada é considerada uma medida de segurança pelos racheiros, pois as ruas estão mais vazias; foto de arquivo mostra adeptos de racha em São Paulo
Imagem: 21.mar.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress

“Em nenhuma ocasião o racha vai ser justificado”
Rodrigo Novo, 26

“Não é certo, não tem jeito. É errado. Em nenhum momento, em nenhuma ocasião o racha vai ser justificado”, afirma logo no começo da entrevista Rodrigo Novo, 26, fã de carros que admite já ter sido adepto da prática “por causa da adrenalina”. Dita logo no começo da conversa a frase surpreende, considerando que a reportagem chegou até ele justamente por causa dos vídeos postados no Dub Brasil, seu canal no YouTube cheio desse tipo de conteúdo.

“Minha paixão são os carros rebaixados e os supercarros [modelos esportivos de alto desempenho]. Já tirei racha, mas mudei muito e sou contra colocar a vida dos outros em risco. Também fiz muita postagem desses vídeos, que dão audiência, mas agora quero ensinar como o racha é perigoso”, diz ele, explicando a contradição entre os posts e seu discurso.

No quesito ‘racha’, sou como aquele cara que já usou drogas e agora vem falar sobre os malefícios

Na página com 130 mil inscritos, os vídeos com disputas automobilísticas são enviados pelos próprios usuários --a postagem mais popular, uma briga entre dois motoristas com direito a batida proposital, soma 2,6 milhões de acessos. Há também conteúdo próprio --a mais assistida analisa o Civic SI, “o monstro das ruas”, e tem 830 mil cliques. Dos dez mais, cinco mostram os também chamados pegas.

Rodrigo diz que vai investir em seu material e eliminar aos poucos os vídeos de rachas, para não derrubar de uma só vez o número de visualizações mensais. O YouTube responde hoje por parte de sua renda, que também vem do trabalho com marketing digital. A decisão de mudar o foco já estava em seu radar, mas se tornou oficial no final de 2017, quando um conhecido perdeu o melhor amigo em um racha. Outros dois morreram no mesmo acidente.

“Me deu medo de as pessoas estarem vendo os vídeos que eu posto no canal e quererem fazer igual. [...] É perigoso, você pode se matar e matar os outros”, resumiu no primeiro vídeo do YouTube em que se posiciona abertamente contra a prática. “Imagina se a mãe desse cara [morto] viesse falar que ele assistia aos meus vídeos? Tem muita gente seguindo, a responsabilidade aumentou”, continuou na conversa com a reportagem.

Se você gosta, assiste. Se quer fazer o que assiste no YouTube, vai para a pista [fechada]. [...] Motor todo mundo tem. Braço para segurar o carro são poucos [que têm]

Rodrigo defende o uso de pistas, como a do autódromo de Interlagos (SP), onde os fãs de velocidade contam com infraestrutura e podem correr sem colocar em risco sua vida e a de terceiros. Ele planeja alugar em março um espaço desse tipo no interior de São Paulo para gravar arrancadas de carros que fazem sucesso em seu canal.

Os automóveis, no entanto, não serão conduzidos por Rodrigo: desde que tomou dois tiros em um assalto, na cidade de São Paulo em 2013, ele parou de andar e ficou com os movimentos comprometidos, dirigindo somente carros adaptados para suas limitações físicas.

*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados