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Historiador relata 'rotina de guerra' na Rocinha: 'nossos direitos estão suspensos e a cidade aprova'

1.fev.2018 - O professor Fernando Ermiro fala sobre a rotina na Rocinha: "acordo, não sei se vou ter água, se vou ter luz, se conseguirei sair de casa" - Paula Bianchi/UOL
1.fev.2018 - O professor Fernando Ermiro fala sobre a rotina na Rocinha: 'acordo, não sei se vou ter água, se vou ter luz, se conseguirei sair de casa' Imagem: Paula Bianchi/UOL

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

06/02/2018 04h00

Com cerca de 100 mil habitantes, vista para o mar da zona sul do Rio de Janeiro e um sem fim de becos e vielas espalhados entre os bairros da Gávea e de São Conrado, a favela da Rocinha passou nos últimos quatro meses por alguns dos momentos mais violentos da sua história.

Desde setembro, ao menos 39 pessoas apontadas pela polícia como suspeitas morreram em confrontos com a PM --uma média de duas mortes por semana--, além de um policial militar e de uma turista espanhola que visitava a região. Outros oito policiais e dez moradores foram feridos em trocas de tiro. Ao mesmo tempo, facções de traficantes rivais disputam a favela, tornando tiroteios e incursões policiais situações rotineiras.

Nascido e criado na comunidade, o professor de história Fernando Ermiro, 46, diz ter se acostumado ao que descreve como uma "rotina de guerra". “Acordo, não sei se vou ter água, se vou ter luz --frequentemente não tenho--, se conseguirei sair de casa”.

Ele questiona até que ponto a estratégia adotada para combater a criminalidade no local tem dado resultados e lembra que os moradores acabam reféns da situação, cercados pelos dois lados.

Placa Rocinha - Reprodução/Facebook/Parceiros da Rocinha - Reprodução/Facebook/Parceiros da Rocinha
26.jan.2018 - Placa de boas-vindas na Rocinha com marcas de tiro
Imagem: Reprodução/Facebook/Parceiros da Rocinha

Em janeiro, Ermiro --que trabalha em um projeto social na favela que incluiu aulas de reforço escolar, uma escolinha para os filhos do moradores e um centro cultural batizado de Garagem Literária--, passou cinco dias sem luz depois que um tiroteio interrompeu o fornecimento de energia. Ao cobrar o conserto, ouviu da empresa responsável que não seria possível chegar já que havia boatos de tiroteios.

“Por que não declaram uma guerra logo? Daí ao menos eu me posiciono, posso chamar a interferência internacional para fazer alguma coisa.”

Na última quinta-feira (1º), ele ajudava nos últimos preparativos para o primeiro sarau do Garagem, que reuniu, entre outros, os escritores Xico Sá, Gregório Duvivier e Zuenir Ventura. Enquanto alguém riscava a palavra "bem-vindos" a giz no asfalto em frente ao centro cultural, pessoas ligavam no telefone de Ermiro perguntando se era “seguro” subir até o local.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

"UPP foi só um espetáculo"

A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] entrou [na Rocinha] em 2011, mas foi só um espetáculo, aquela cena [dos blindados da Marinha subindo]. Funcionou apenas na estrada da Gávea [via que passa por dentro da favela e liga o bairro de São Conrado à Gávea, na zona sul da cidade]. A nossa vida, como moradores, não mudou em nada. Continuamos indo ao trabalho, com frequência ficando sem luz, sem água, não conseguindo sair de casa por conta de tiroteios.

Teve o impacto negativo do fim do ‘acordo tácito’ de não-violência. A Rocinha não está fechada nela mesma. Ela faz parte da cidade e dialoga com ela, em especial com os bairros do entorno [Gávea, Leblon e São Conrado]. Antes, o número de assaltos aqui e na região era muito menor. O tráfico falou: 'agora é com a polícia, não cobrimos mais a área'.

Antes, a estrada da Gávea era uma grande zona franca, com criminosos com armamentos por todos os lados. Com a chegada da polícia, eles recuaram para dentro da favela, mas continuam armados. Ninguém perdeu, ninguém entregou as armas.

23.out.2017 - PM faz revista em morador na Rocinha - Eduardo Anizelli/Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress
23.out.2017 - PM faz revista em morador na Rocinha
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

"Quando o Bope entra, eu não saio na rua"

Nasci e cresci aqui e já acompanhei muita coisa, mas esses últimos quatro meses foram os piores que já presenciei. O tráfico é organizado e muito desorganizado ao mesmo tempo. Teve uma mudança da facção que comandava a favela, dos Amigos dos Amigos para o Comando Vermelho, que parece ter sido muito mal realizada. E tem algo na polícia do Rio que está contra o CV. Coincidentemente, nos últimos meses, tivemos muitos problemas tanto na Rocinha quando na Cidade de Deus, duas favelas comandadas pelo CV.

A relação com o Bope [Batalhão de Operações Especiais] e o Choque nunca foi boa. Quando o Bope entra, eu não saio na rua, eles não são de diálogo, são truculentos. Antes, eles vinham uma vez ou outra, mas agora entram todos os dias.

Não tenho nada com o tráfico, mas a polícia enxerga todo mundo que está aqui como uma coisa só, não vem disposta a conversar. Na quarta-feira [24 de janeiro], que foi o pior dia, fiquei até 18h em casa com a minha esposa e meu filho de quatro anos ouvindo os tiros.

Tem essas situações em que você não consegue sair mesmo. Nos outros dias, você sai, mas com muito cuidado. Ouve um tiroteio e pensa: 'ok, está lá embaixo, está mais para tal região, por isso posso ir por aqui'.

Tráfico e polícia se escondem atrás do trabalhador

Não há mais nenhum espaço público seguro. Tem várias forças na favela ao mesmo tempo. O resultado dessas operações é praticamente zero. E o morador está no meio. O tráfico e a polícia, quando estão sozinhos, são enormes, agora, quando sabem que estão enfrentando, são pequenininhos. Os dois se escondem atrás do trabalhador.

O morador comum da Rocinha não fica de lado A ou lado B. Os dois lados não estão nem aí para eles, os dois são opressores. [As autoridades do Estado] Dizem: ‘temos que ajudar a polícia’. Ajudar a polícia em que, se a polícia não faz por onde? Eles entram e atiram nos transformadores de energia, acham que a gente vai comprar o barulho deles e vai ficar contra o tráfico, mas isso só prejudica quem mora na favela.

Essa ideia romântica de que se protege o tráfico é antiga. Isso não existe há muito tempo. O tráfico não se importa com morador, com o trabalhador. Eles são comerciantes, estão interessados nos problemas deles. Não tem uma relação com o morador, não param no bar para beber cerveja. São grupos diferentes.

Eu levanto, pego ônibus e vou trabalhar. A não ser que a pessoa seja usuária, ela não passa pela boca de fumo.

Vídeo mostra cenário de guerra na Rocinha

UOL Notícias

'Por que não declaram uma guerra logo?'

A polícia tem entrado com armamento cada vez mais pesado. Parece que estão gastando munição para não voltar com peso. Falam em ações de inteligência, mas só se for inteligência com o dedo. Entram com armamento pesado, atirando de longe, dentro de uma área densa e altamente populosa.

Cadê a ONU [Organização das Nações Unidas], cadê os direitos humanos? Por que não declaram uma guerra logo? Daí ao menos eu me posiciono, posso chamar a interferência internacional para fazer alguma coisa.

Qual a finalidade da entrada da polícia diariamente, com uma missão tão longa? Quem avalia isso? Para quem estão dando satisfação? ‘Entramos tal hora, usados x kg de munição, saímos com x kg’. Ninguém pergunta como e onde isso foi usado, qual foi o resultado?

Greve geral

A gente tem uma rotina de guerra: acordo, não sei se vou ter água, se vou ter luz --frequentemente não tenho--, se conseguirei sair de casa. Há insegurança, inconstância no acesso a serviços, no acesso à lei.

A Defensoria Pública falou que é necessário filmar, fotografar, documentar o máximo possível. Quer dizer que agentes do Bope vão entrar na minha casa extremamente armados e eu vou filmar, fotografar? Pode entrar, Estado de Direito o escambau. O que adianta dizer: eu conheço os meus direitos? Nossos direitos aqui estão suspensos e a cidade aprova isso.

Há conversas para se organizar passeatas, caminhadas pela paz. Uma #rocinharesiste. Mas são ações muito pontuais. Por mim, faríamos uma greve geral. Ninguém ia trabalhar. Precisamos afetar os patrões.

Se tiver um tiroteio intenso, eu passar pelo tiroteio e ir trabalhar e voltar, meu patrão não sofreu nada; agora, eu corro o risco de não chegar e de não voltar. São recorrentes os casos de pessoas demitidas por faltarem ao trabalho. Os patrões não leram nada na imprensa sobre algo acontecendo aqui, não veem por que a pessoa não pode ir.

Rocinha cachorro - Ricardo Moraes/Reuters - Ricardo Moraes/Reuters
25.jan.2018 - Jovem socorre cão baleado na Rocinha
Imagem: Ricardo Moraes/Reuters
 

O que falta na favela?

Tem valas [de esgoto] que são mais velhas do que eu. Elas só não têm cabelo branco por uma questão de genética... A Rocinha, para além da Estrada da Gávea, não tem saneamento. A própria estrada da Gávea não reflete a Rocinha, que é formada 90% por becos, por escadas. Você não tem saneamento, garantia de constância de serviços, serviços que funcionem adequadamente, acessibilidade. São coisas que cabem ao Estado.

Falta um planejamento próprio de para onde é que a Rocinha vai. Frequento a vida pública da Rocinha desde os anos 80 e os problemas são basicamente os mesmos: luz, água, polícia, tráfico, saneamento.

Qual o futuro dessa favela, se é que a favela tem futuro? Se tem, que futuro que se quer? No passado, tínhamos um déficit de educação. Hoje temos um monte de universitários, mas onde eles estão agora? Todos muito bem sucedidos pela cidade, e a Rocinha segue nos anos 80. Essa reflexão tem que passar pelos moradores também.

"Re-humanizar a favela"

O Brasil tem essa relação com a escravidão que não foi resolvida ainda. A gente tem que ser re-humanizado. A polícia quando entra diz: 'cara, sai da frente que você, um cachorro ou um gato são equivalentes.' É preciso mudar a postura da polícia, da sociedade.

A sociedade vê a favela de uma forma quase animal, bestial. De certa forma, a favela também acredita nisso. ‘Eu não tenho direito, não tenho acesso, mas não tenho o porquê reclamar’. Falando de forma realista, não temos direitos mesmo.

Ouço muitas experiências aqui de situações em que a polícia invade a casa das pessoas e fala: 'vai reclamar na Ouvidoria [da polícia]'. Está dizendo: ‘não adianta você sair daqui e ir lá que o ouvidor é o mesmo que a gente’.

Temos que sacudir esse morador. Quando você deixa de reclamar, o problema não some sozinho. E é o que está acontecendo faz quatro meses. Passou setembro, pensamos: ‘vai terminar’. Não terminou. Passou outubro, novembro... E está pior. É preciso sair do imobilismo.