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Heróis ou vilões? Qual o impacto que aplicativos de transporte têm no trânsito de grandes cidades

Marginal Pinheiros, via de tráfego intenso na cidade de São Paulo - Marcos Bezerra/Futura Press/Estadão Conteúdo
Marginal Pinheiros, via de tráfego intenso na cidade de São Paulo Imagem: Marcos Bezerra/Futura Press/Estadão Conteúdo

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

25/02/2018 04h00

Os aplicativos de transporte são tratados como uma alternativa para a mobilidade urbana. O usuário deixa de lado o automóvel próprio para virar passageiro. Esse é um ponto positivo. Mas há realmente menos carros nas ruas das grandes cidades?

Na avaliação de especialistas, os veículos que atuam nesses serviços tendem a representar aumento de congestionamento e o enfraquecimento do sistema público de transporte. E então, os aplicativos são heróis ou vilões?

A reportagem do UOL conversou com estudiosos de duas entidades internacionais de pesquisa em mobilidade e com um professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) sobre possíveis consequências geradas pelo uso de aplicativos de transporte. Eles afirmam que a análise no Brasil sobre o tema ainda está começando, mas já há pistas dos impactos no trânsito.

Os especialistas citam, por exemplo, que o horário de pico tende a aumentar (pois os motoristas de aplicativos circulam o dia inteiro) e que há uma migração dos passageiros de transportes públicos para este serviço --dado já apontado em pesquisas internacionais.

Com atuação mais expressiva no Brasil a partir de 2014, os maiores neste mercado --Uber, 99 e Cabify-- não divulgam números de passageiros atendidos nem de motoristas cadastrados nas capitais de São Paulo e Rio, mas se estima que estejam na casa de dezenas de milhares em grandes centros urbanos. Reportagem do jornal "Folha de S.Paulo" coloca a frota de aplicativos entre 150 mil e 240 mil veículos na capital paulista.

Trânsito no Rio de Janeiro - Yasuyoshi Chiba/AFP - Yasuyoshi Chiba/AFP
Vias congestionadas no Rio de Janeiro
Imagem: Yasuyoshi Chiba/AFP

“Vai ser horário de pico o tempo todo”

No Rio de Janeiro, o serviço de transporte por aplicativo está em contínua operação, mas, diferentemente de São Paulo, não há regras municipais específicas. Seus efeitos estão sendo investigados pelo professor Paulo Cezar Ribeiro, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que estuda há 20 anos o fluxo de veículos no centro do Rio e o tempo de viagem que os motoristas levam para chegar e sair desta região da cidade.

“Supondo que as pessoas estejam deixando de usar os carros próprios para ir até o centro, um dos efeitos é que não vai haver mais pico de tráfego, porque quem ia de carro para o centro da cidade estacionava o carro, mas se for em um aplicativo, esse carro deixa o passageiro e volta a circular”, ele sugere como hipótese.

Tenho a sensação de que esses carros não saem das ruas. Vai ser horário de pico o tempo todo, é uma expansão generalizada do congestionamento

Professor Paulo Cezar Ribeiro, doutor em estudos de transportes da UFRJ

“A frota de veículos particulares aumenta, mas ela não está toda na rua. A frota dos aplicativos está, essa é a questão, rodando", afirma Ribeiro. "Esses carros não saem das ruas, não liberam o sistema viário, não são guardados em uma garagem ou estacionamento.”

A Secretaria Municipal de Transportes do Rio afirma que "a regulamentação do serviço está associada à elaboração de estudos específicos para avaliar o impacto, responsabilidades e contrapartidas" e que "a ausência de informações oficiais sobre o tema ainda inviabiliza uma análise mais precisa sobre o assunto".

Táxis em Copacabana - Alessandro Buzas/Futura Press/Estadão Conteúdo - Alessandro Buzas/Futura Press/Estadão Conteúdo
Taxistas fazem protesto no Rio de Janeiro contra o serviço de aplicativos
Imagem: Alessandro Buzas/Futura Press/Estadão Conteúdo

“Mais carros rodando: congestionamento e poluição”

O engenheiro civil Diego Mateus da Silva, com mestrado em engenharia de transportes, cita duas cidades norte-americanas como referência. Em Nova York e San Francisco, estudos apontam que houve migração de passageiros do transporte coletivo para os carros de aplicativo.

“As duas principais conclusões mostram que teve aumento no que a gente chama de VKT [vehicle-kilometer travelled, em inglês], que é a quilometragem feita por uma pessoa em um automóvel individual, nas duas cidades”, explica o pesquisador do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).

“Ou seja, mais carros estão rodando nessas cidades, gerando mais congestionamento e mais emissões de poluentes. Também houve uma redução nos usuários de transporte coletivo, mais fortemente nos ônibus, nas linhas menores.”

Outra constatação é que parte dos usuários dos aplicativos, ainda que pequena, deixou de usar bicicleta ou de andar a pé nos dois casos estudados, principalmente para fazer distâncias mais curtas, como ir até uma estação de metrô. Além disso, diferentemente do que algumas empresas de aplicativos divulgam como provável benefício na sua operação, quem já tinha carro não deixou de usá-lo para ir até o trabalho.

“Isso gera um ciclo perverso, no qual você tem menos usuários no transporte coletivo, menos gente pagando tarifa, o que dificulta a manutenção econômica do sistema. A conclusão final dos dois estudos é um pouco negativa, com uma série de propostas de políticas para tentar mitigar esses impactos”, afirma.

Em Nova York, o estudo foi conduzido pela universidade UC Davis. Já em San Francisco, a pesquisa partiu da autoridade de transportes do município.

O trânsito é intenso no Aterro do Flamengo - Marcela Lemos/UOL - Marcela Lemos/UOL
Trânsito intenso no Aterro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro
Imagem: Marcela Lemos/UOL

Mais carros, faixa de ônibus, congestionamento

Segundo levantamento do ITDP com base em dados oficiais, a taxa de motorização (veículos por habitantes) em São Paulo aumentou 3% de 2014 para 2015, quando a Uber entrou em operação na cidade. Foi de 589,70 para 607,53 carros por mil habitantes. No ano anterior, havia sido registrada uma leve queda (0,55%).

"Geralmente, o aumento da frota (propriedade do veículo) tem relação direta com o aumento no congestionamento. No entanto, o mais correto seria avaliar o uso do veículo, pois em alguns casos as pessoas têm o veículo, mas acabam não usando nas suas viagens diárias na cidade", afirma o engenheiro Silva. "Como exemplo, EUA e Europa têm taxas de motorização (veículos por habitante) semelhantes, mas a taxa de uso do automóvel é muito menor na Europa."

De 2010 a 2017, a frota de carros registrada em São Paulo passou de 5.093.169 (dezembro de 2010) para 6.054.915 (dezembro de 2017), com aumento de 19%, de acordo com o Detran (Departamento Estadual de Trânsito). 

"Não é possível estabelecer uma relação causal destes dados com a entrada em operação das empresas de aplicativos", diz o engenheiro Silva, "mas são dados que mostram que o uso do automóvel tem se intensificado". 

De acordo com a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo), entre os anos de 2010 e 2017, a maior média de lentidão na cidade foi registrada no ano de 2014:

  • no período da manhã, com 96 km no horário de pico (aumento de 15,66% em relação a 2013)
  • no período da tarde, com 141 km no horário de pico (aumento de 0,7% em relação ao ano anterior)

Vale ressaltar, porém, que essas médias caíram entre 2014 e 2017 (veja no gráfico).

"Um fator que pode explicar esse fenômeno (aumento da frota x queda na lentidão) é a implantação de faixas e corredores para ônibus a partir de 2014", pondera o engenheiro. "Segundo a SPTrans (que administra o sistema de transporte público por ônibus), a velocidade média dos ônibus aumentou 50% após a implantação das faixas, o que pode ter induzido usuários do automóvel a migrarem para o ônibus devido ao ganho de tempo. Essa migração, por reduzir o número de automóveis, também pode ter reduzido o congestionamento nos últimos anos."

Trânsito em São Paulo - Rivaldo Gomes-24.fev.2016/Folhapress - Rivaldo Gomes-24.fev.2016/Folhapress
Ciclista passa perto de ponto congestionado na cidade de São Paulo
Imagem: Rivaldo Gomes-24.fev.2016/Folhapress

Poder virar motorista: “mais motivos para comprar carros”

Para Luis Antonio Lindau, engenheiro e diretor do programa Cidades Sustentáveis da WRI (World Resources Institute), o que está em questão no Brasil não é um novo tipo de transporte, mas a disputa pela mobilidade em cenários já marcados por congestionamentos extensos e muito tempo perdido no trajeto casa-trabalho.

“O sucesso dos aplicativos se explica porque as nossas cidades são ‘carrocêntricas’. O impacto é que, se as pessoas já compravam carros, agora elas têm mais motivos para isso porque podem ser motoristas de aplicativos. A indústria automobilística vai vender mais, vai crescer a motorização no Brasil, os congestionamentos vão piorar. Não estou vendo vantagem nenhuma nesse processo”, ele critica.

Se a gente olhar a longo prazo, o mercado para os aplicativos é muito maior que o do táxi

Luis Antonio Lindau, engenheiro e diretor do programa Cidades Sustentáveis da WRI (World Resources Institute)

O engenheiro defende que, não importa se o carro é particular ou de uma empresa de aplicativo, deve haver cobrança para usar as vias públicas. E o dinheiro arrecadado deve ser usado para melhorar o transporte público. Na sua avaliação, não há outro caminho a não ser o da redução de espaço para os automóveis.

“Está todo mundo aqui para tentar abocanhar a fatia da mobilidade. Não há dúvida de que existe impacto. São Paulo e as cidades brasileiras já são congestionadas pelo automóvel. Este é o pior modelo. Precisamos ter regulação boa e que permita que a sustentabilidade aconteça.”

Nova fonte de arrecadação em São Paulo 

Lindau aponta a cidade de São Paulo como uma das poucas onde a regulamentação do serviço já está ocorrendo. Normas para o cadastramento de carros e motoristas entraram em vigor em janeiro de 2018 e, desde maio de 2017, as empresas de aplicativos pagam por quilômetro rodado.

De acordo com informações da prefeitura, até novembro do ano passado foram arrecadados R$ 77,5 milhões com os créditos de quilômetros. As empresas pagam de R$ 0,10 a R$ 0,36 por quilômetro rodado, sendo que horários e regiões da cidade percorridas também interferem no valor (quanto mais perto do centro, mais caro, por exemplo).

A Secretaria de Mobilidade e Transportes (SMT) informou que os recursos representam uma nova fonte de arrecadação para o município e que foram destinados ao sistema de transporte público da cidade, sem especificar exatamente para quais áreas, apesar de vários pedidos feitos pela reportagem para que fosse detalhado como o investimento foi feito. 

Atualmente, nove empresas estão cadastradas para prestar o serviço na capital paulista. Existe um limite estabelecido em 54.300.000 quilômetros para o máximo que elas podem rodar por mês.

“Se você tem uma cidade com corredores para ônibus que veículos como táxis também podem usar, qual é a prioridade que se dá para o transporte coletivo?”, questiona Lindau. “Se não temos dinheiro para fazer metrô em todos os lugares, nós temos que dispor de espaços exclusivos também na superfície para o transporte coletivo, mas isso ainda não acontece.”

O que dizem as empresas de aplicativos

A reportagem pediu para Uber, 99 e Cabify informações sobre o tamanho de suas frotas, a quilometragem rodada por seus carros mensalmente e o quanto pagaram à Prefeitura de São Paulo no ano de 2017. Também foi questionado sobre suas atividades no Rio de Janeiro, onde não há regulamentação para o serviço prestado pelos aplicativos.

Congestionamento em Nova York - Hiroko Masuike/The New York Times - Hiroko Masuike/The New York Times
Congestionamento na cidade de Nova York
Imagem: Hiroko Masuike/The New York Times

Uber

A empresa informou que tem mais de 150 mil motoristas cadastrados no Estado de São Paulo e mais de 100 mil no Estado do Rio de Janeiro, mas não respondeu em detalhes sobre sua operação na capital paulista. Foram fornecidas informações sobre a categoria "uberPOOL", sem identificar o que essa opção representa no todo de sua operação.

A empresa cita estudos internacionais para corroborar o que propõe como vantagens no serviço de compartilhamento:

“Um estudo do MIT sobre o trânsito de Nova York apontou que sistemas de compartilhamento como esses podem melhorar o tráfego, poupar recursos e ajudar o meio ambiente.”

“Uma pesquisa realizada por pesquisadores das universidades de Michigan, Texas A&M e Columbia reuniu evidências de que plataformas de mobilidade compartilhada como a Uber fazem as pessoas comprarem --e usarem-- menos carros particulares.”

“Além disso, um estudo do Fórum Internacional de Transportes da OCDE concluiu que um serviço de carros compartilhados e autônomos poderia reduzir o número de veículos nas ruas em 90% ou mais. Outro estudo, do Boston Consulting Group, apontou que serviços como o Uber melhoram a mobilidade ao aumentar índices de ocupação e rodagem por veículo e ao complementar o sistema de transporte público.”

O engenheiro Silva, do ITDP, avaliou os estudos, a pedido da reportagem. De acordo com ele, "é uma obviedade que ter mais pessoas compartilhando um mesmo trajeto tende a reduzir o número de veículos e, consequentemente, o congestionamento", como aponta o estudo do MIT. Na sua opinião, este seria o tipo de serviço adequado a ser incentivado pelas prefeituras nas cidades brasileiras: quando o aplicativo junta duas ou mais pessoas em uma mesma viagem, no mesmo carro e na mesma rota. 

"Se for no modelo comum de uma única pessoa mais o motorista por veículo [o mais frequente atualmente], a única diferença é o modo como você pede o carro, mas sem impacto positivo nos congestionamentos."

Quanto ao estudo da universidade de Michigan, o pesquisador afirma que as informações usadas para medir os hábitos dos usuários de aplicativos não determinam necessariamente uma mudança frequente de seu comportamento. 

Sobre a pesquisa da OCDE, que compara compartilhamento de viagens a compartilhamento de veículos, Silva entende que o estudo demonstra maior impacto na redução do número de carros e do congestionamento no primeiro modelo. "Um impacto ainda a ser estudado diz respeito a redução da necessidade de estacionamento. Como no modelo atual um carro fica parado 92% do tempo, o compartilhamento tende a reduzir a necessidade de estacionamento nas cidades, o que também ajudaria a aliviar os congestionamentos."

99

A empresa não deu informações sobre sua frota, a quantidade de quilômetros rodados em São Paulo e Rio, nem sobre os valores pagos à Prefeitura de São Paulo, “por questões estratégicas e de confidencialidade”.

“A 99 entende que o transporte privado remunerado exerce um caráter complementar ao transporte público. Estudos da 99 demonstram que paulistanos e cariocas já utilizam a 99 para fazer a primeira ou a última milha. Nossos dados já mostram que 13,2% das corridas realizadas em São Paulo têm origem ou destino em estações de metrô e trem e terminais de ônibus; no Rio, esse número chega a 24,3% com origem ou destino em estações de metrô, trem, BRT e balsa e terminais de ônibus.”

Cabify

A empresa não deu informações sobre sua frota, a quantidade de quilômetros rodados em São Paulo e Rio, nem sobre os valores pagos à Prefeitura de São Paulo, “por questões estratégicas”.

A empresa estima que, para cada motorista parceiro, 20 pessoas deixam de usar o carro particular e cita um estudo realizado online com amostra de mil pessoas em São Paulo, com 16 anos ou mais de idade: “No total, 76% dos entrevistados são usuários exclusivos de apps (55% de carros privados e 42% de táxis) e 24% também utilizam pontos ou pegam táxis na rua. Mesmo possuindo carro próprio (68%), 52% deles afirmam ter reduzido o uso de carro particular após começarem a utilizar aplicativos de mobilidade urbana para circular pela cidade”.

Sobre a falta de regulamentação no Rio, as três empresas informaram que a prestação de serviço tem respaldo na Constituição Federal e é prevista na Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei federal 12.587/2012).