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Lixo, banho gelado e 'gato' no semáforo: como era a ocupação em prédio que desabou em SP

Foto de morador mostra como era a parte interna de um dos quartos do prédio que desabou no centro de São Paulo. As paredes eram tapumes de madeira e PVC - Reprodução/Arquivo pessoal
Foto de morador mostra como era a parte interna de um dos quartos do prédio que desabou no centro de São Paulo. As paredes eram tapumes de madeira e PVC Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

02/05/2018 04h00

A cabeleireira Thabhatha Marques Freire, 30, pegava no sono quando despertou assustada com um forte barulho. À 1h30 de terça-feira (1), uma explosão supostamente no 5º andar do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, tirou os moradores da cama. Thabhatha correu para fora e se juntou aos vizinhos que já se amontoavam pelas escadarias tentando fugir do fogo. No caminho entre seu quarto, no 8º andar, e a porta de saída, um filme passou pela sua cabeça.

A cabeleireira morava na ocupação havia dois anos com o marido, que viajava no momento do acidente. Para viver com um pouco de privacidade, o casal pagava ao movimento LMD (Luta por Moradia Digna) --antigo MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia)-- R$ 500 no dia 30 de cada mês por um quarto exclusivo, com dimensão aproximada de 16 metros quadrados, separado por paredes de tapume e PVC.

Quem não tinha muito dinheiro dividia o quarto com outros moradores. Até cinco famílias chegavam a compartilhar um dos 15 quartos distribuídos por cada um dos 11 primeiros andares. Quanto mais gente em um dormitório, menor o preço repassado ao LMD. “Tinha quem pagava R$ 170, R$ 210, R$ 400, R$ 500”, contou Thabhatha. “Dependia do tamanho do espaço também.”

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Thabhatha Marques Freire (e) era uma das moradoras do prédio que desabou
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL

No cômodo improvisado, precisava caber tudo: os colchões se espalhavam pelo chão, próximos da geladeira e do fogão ligado ao botijão de gás. “Alguns tinham armário, mas a maioria colocava as roupas e a comida em prateleiras”, lembra a cabeleireira.

A vida era um pouco menos difícil para quem vivia nos primeiros andares. Além de menos escadas para subir – os elevadores do prédio estavam desativados –, a água, desviada da rua, não passava das torneiras do quinto andar. Os moradores dos cômodos do sexto ao 11º improvisavam um balde como banheiro e desciam até o 5º para usar a descarga “porque quem morava nos andares inferiores não permitia usar o banheiro deles”.

Luciana de Camargo Araújo morou durante oito anos no prédio que desabou em São Paulo. Ela havia deixado a moradia oito meses antes da tragédia - Wanderley Preite Sobrinho - Wanderley Preite Sobrinho
Luciana de Camargo Araújo morou durante 8 anos no prédio e saiu há 2 meses
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho

No caminho entre os pavimentos, como contam os moradores, chamavam a atenção as paredes pichadas e um forte cheiro de urina e lixo, que exalava do fosso dos dois elevadores sem porta que serviam de lixeira e abrigo para ratos. Pelos tetos, a fiação exposta causava má impressão. “Todo dia tinha um ‘pipoco’ [curto-circuito]. Eu já perdi geladeira e um tanquinho”, contou a faxineira Luciana de Camargo Araújo, 38.

Apesar dos sustos frequentes, a fiação funcionava regularmente desde que o prédio se transformou em ocupação, em 2002. O ‘Baixinho’ era o eletricista encarregado de puxar o “gato” do semáforo do cruzamento da rua Antônio de Godoy com a avenida Rio Branco. Pelo serviço, que consistia em levar luz para os quartos, escadas e corredores, ‘Baixinho’ ficava isento do aluguel. “Quando o homem da CET [Companhia de Engrenharia de Tráfego] desfazia o gato e ia embora, ele ia lá com as ferramentas e religava na hora”, recorda-se Luciana.

O banho, no entanto, era gelado no calor e com água requentada nos dias de frio. É que não havia saída de energia para 220 volts, antiga reclamação dos moradores, que culpam o LMD pelo “descaso” com a manutenção do edifício. “A única coisa que faziam era pagar o advogado para manter a ocupação e fechar os portões às 19h”, relembra Carmen da Silva, 30, que ajudava a conservar a limpeza do mezanino. Depois desse horário, ninguém mais podia entrar ou sair do prédio. Quem ficava do lado de fora só voltava às 6h do dia seguinte, quando o acesso era autorizado.

Foto de morador mostra como era a parte interna do prédio que desabou no centro de São Paulo, com paredes mal conservadas e fios expostos - Reprodução/Arquivo pessoal - Reprodução/Arquivo pessoal
Parte interna do prédio tinha paredes mal conservadas e fios expostos
Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

Donos de uma van e dois carros modelo Gol, os coordenadores do LMD teriam “fugido” nos veículos assim que o incêndio começou, acusa Thabhatha. Coordenador do movimento, Ricardo Luciano nega a fuga e o descaso. “É mentira que não estamos ajudando. Muitos de nós passaram a noite toda ali. Estamos acalmando as pessoas, organizando as doações e decidindo para onde levá-los”, afirmou ao UOL.

Ele defende que os desabrigados recusem a oferta de abrigo oferecida pelo governo e sigam com o movimento para outra ocupação. “Vamos entrar em outro prédio de algum proprietário incompetente que não paga imposto e não dá ao edifício sua função social.”

Sobre a manutenção do prédio, Luciano garante que a limpeza era frequente. “Recolhíamos o lixo nas datas em que o caminhão passava. Cada um limpava sua casa e todos os dias uma faxineira cuidava das áreas comuns.”

Do luxo ao pó

O final da história de 57 anos do Wilton Paes de Almeida, encerrada às 2h30 desta terça-feira, quando a estrutura veio ao chão, contrasta com o projeto ambicioso que saiu das pranchetas do arquiteto modernista Roger Zmekhol em 1961, quando exibiu os desenhos de um edifício espelhado de 24 andares.

Entregue em 1968, o prédio luxuoso foi planejado para sediar a Companhia Comercial Vidros do Brasil, mas, antes de se transformar em ocupação, foi a casa do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) e da Polícia Federal. Em 1992, o patrimônio histórico garantiu sua preservação ao tombá-lo. Era um “bem de interesse histórico, arquitetônico e paisagístico”.

Em 2002, a PF deixou o prédio depois de 22 anos e se mudou para o atual endereço, na Lapa. Em setembro daquele ano, a União assumiu sua administração, ocasião em as primeiras famílias começavam a chegar.

Após o desabamento desta terça, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão negou por meio de nota a intenção de vender o prédio de 11.083 metros de área construída em um terreno de 660 metros quadrados. Ele foi cedido provisoriamente pela Secretaria do Patrimônio da União à Prefeitura de São Paulo no ano passado com previsão de que fosse utilizado para acomodar a Secretaria de Educação e Cultura da cidade.

Para viabilizar a mudança, a Secretaria de Habitação do município tentava a reintegração de posse cadastrando seus ocupantes, que, segundo a pasta, somavam cerca de 150 famílias e 400 pessoas, 46 delas estrangeiras. Elas vieram de Angola, Bolívia, Congo, Filipinas, Guiana Francesa, Marrocos, Nigéria, Peru e República Dominicana. 

"Perdi documento, perdi roupa, perdi tudo. Só deu tempo de sair correndo e mais nada", lamenta Marinalva Alves Lemos, 45, que morava na ocupação com o companheiro, desempregado como ela.

Luciana --que perdeu a geladeira e o tanquinho no curto-circuito-- deixou a ocupação há dois meses depois de oito anos morando ali. “Soube pela televisão e vim correndo ajudar meus amigos. Custou para acreditar. Acho que eu teria morrido se ainda morasse ali porque tomo remédio para dormir. No meio disso tudo, também tem a mão de Deus.”

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