No Tocantins, moradores de comunidade com mais de 30 anos são considerados invasores
Para chegar às comunidades camponesas na Serra do Centro, onde Tocantins faz fronteira com o Maranhão, é preciso atravessar um mar de soja que se perde no horizonte.
Nem sempre foi assim.
Em toda casa que se visite, as histórias das antigas gerações são narradas em detalhes, desde o tempo das tataravós. A memória segue viva em oposição à condição presente do local, onde a monocultura substituiu a vegetação do cerrado.
As famílias ainda recordam até onde ia cada território e onde começavam os campos de uso comum. Os limites eram marcados pela vegetação e pelos riachos, que hoje se perderam na uniformidade das plantações que já fizeram do município o maior exportador de soja de Tocantins.
O projeto Campos Lindos foi implantado na década de 1990 em um contestado esquema de titulação de terras públicas levado a cabo pelo então governador Siqueira Campos (hoje no DEM), no recém-criado estado, sobre territórios ocupados por comunidades tradicionais.
O conflito gerado permanece até hoje, com mediação do MPF (Ministério Público Federal), que elaborou um relatório antropológico e propôs um termo de ajustamento de conduta entre os plantadores de soja e as comunidades.
Onde hoje estão as plantações que abastecem os entrepostos das multinacionais Bunge e Cargill, havia um extenso campo plano, rico em água, plantas e animais. Sobre ele, festas religiosas, encontros e casamentos se repetiram por pelo menos cem anos.
"Sempre houve gente, uns saindo e outros chegando", lembra Joaquim Miranda Silva, da comunidade Vereda Bonita, ao dar seu depoimento ao relatório antropológico do MPF.
As famílias guardam também a herança e a influência da cultura indígena kraô, com a colheita de frutos, a caça, a pesca e o jeito de cultivar suas roças: em mutirão, fertilizadas pelas cinzas de pequenas áreas queimadas, em sistema de rodízio para que a vegetação e o solo se regenerem, no que é conhecido na região por "roça de toco".
Mandioca, abóbora, milho, feijão, arroz não faltavam nas mesas. Só era necessário comprar calçados, querosene, café e sal, trazidos de Balsas, no Maranhão, em lombo de animal e atravessando os rios em barcos de madeira de buriti. O algodão era fiado pelas mulheres que teciam roupas e redes para dormir. O gado era criado solto, e as roças, cercadas, para impedir a entrada dos animais.
CPT ajudou famílias a acionar o MP
Desde a implantação do projeto, o conflito se estende. Primeiramente ignorou a presença das famílias. A área foi desapropriada e dividida em lotes, vendidos a preços baixos e desmatados para o plantio.
Algumas das famílias foram obrigadas a sair dali, em função de sucessivas ameaças e apropriações de terra. Outras foram morar na cidade de Campos Lindos, que já ocupou a primeira posição no ranking do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de municípios mais pobres do Brasil. Outras se mudaram para cidades maiores da região.
As que ficaram estão no que sobrou de cerrado, considerado como reserva ambiental "em condomínio" do projeto --quando os lotes têm uma reserva legal comum, como medida de compensação ambiental. A ameaça de despejo é permanente.
Com apoio da CPT (Comissão Pastoral da Terra), as famílias acionaram o Ministério Público Estadual e descobriram que o projeto era cheio de irregularidades.
"As leis ambientais foram ignoradas, nenhum estudo de impacto foi apresentado antes da liberação do projeto. Os relatórios ambientais realizados foram produzidos posteriormente, porém nenhum deles foi aprovado pelos órgãos fiscalizadores --e continuam assim até hoje", diz Pedro Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra Araguaia-Tocantins.
Fruto de ampla mobilização, cerca de 70 famílias conseguiram ter lotes titulados pelo Instituto de Terras do Tocantins, com em torno de 50 hectares cada um. Muitos ficaram sem títulos, mas permaneceram na área.
Há uma quantidade razoável de famílias que foram ignoradas pelo cadastramento, em virtude da utilização de critérios questionáveis como considerar que pais e filhos que possuíam casas próximas uma da outra constituíam um único núcleo familiar e precisariam de uma única área para obter seu sustento
Relatório antropológico do MPF
A briga se estendeu pelos anos. As famílias enfrentam, desde então, a limitação do território e a insegurança jurídica sobre sua permanência nas terras, além dos efeitos da redução das suas matas, com o desaparecimento da caça.
A narrativa da vida presente é mais dura se comparada à de antigamente. Os moradores denunciam a contaminação dos cursos d'água por agrotóxicos e a morte de duas crianças da mesma família após a aplicação de veneno por avião. Diversas audiências públicas foram realizadas, sem resultados efetivos.
Apesar disso, houve resistência: organizadas, as comunidades ergueram com as próprias mãos uma escola do campo e empreenderam diversos projetos de geração de renda, como o beneficiamento de polpas de frutas e a criação de abelhas.
Ameaças crescentes
Uma nova parte dessa história parte de uma investida mais forte por parte da Associação Planalto, que reúne os sojeiros, para evitar multas ambientais. Uma ordem de reintegração de posse foi emitida pela Justiça Estadual e confirmada por instâncias superiores em 2016 contra 59 famílias camponesas, o que gerou desespero na comunidade.
O Ministério Público Federal foi acionado pelas famílias e pela CPT, em razão de as comunidades se autoafirmarem como tradicionais e, portanto, com direitos territoriais.
O MPF enviou uma equipe de antropólogos ao local, que reiterou a condição. "A Constituição garante o reconhecimento da existência e a forma de trabalhar como comunidade tradicional, mas no cerrado do Tocantins não garante", afirma o camponês João Bandeira.
Sendo território tradicional, de acordo com o relatório do MPF, somente as famílias poderiam definir quem deve ficar ou sair da área, o que se contrapõe à ordem de despejo, investida principalmente sobre os que chegaram mais recentemente para viver nas comunidades.
O resultado da negociação mediada pelo MPF foi um termo de ajustamento de conduta, acordo extrajudicial firmado em 2016. O TAC determinou a elaboração de um plano de manejo por parte da Associação Planalto, que possibilitaria a permanência das famílias na área reivindicada pelo projeto como reserva ambiental.
O plano de manejo apresentado pela Associação Planalto atesta a mudança radical pela qual passou o território desde a chegada do projeto: "o crescimento das áreas destinadas ao cultivo da soja teve aumento de 3.498% e o da pecuária de 48%. Houve um decréscimo de 27% de áreas com vegetações naturais, com perda de 9% de florestas e 32% de savanas em relação a 1990".
A grande transformação pela qual passou o entorno obrigou também os camponeses a mudarem o seu modo de produção, já que os agrotóxicos e a redução da área do plantio alteraram a dinâmica do cultivo.
"A gente vem acompanhando uma extrema mudança da forma de produção, não é mais tão natural, está se modificando e se alterando", explica o camponês João Bandeira.
Além de todas essas transformações já sentidas pelas famílias, o plano de manejo da Associação Planalto dita regras sobre o que podem e não podem fazer dentro da área considerada como reserva.
"As famílias ficam obrigadas a plantar no mesmo quadrado por anos e anos, o que desrespeita a forma tradicional de manejo, que prevê, por exemplo, a rotatividade da área, tempo de descanso da terra e a regeneração da mata", expõe Rafael Oliveira, agente da CPT. A mesma avaliação tem a Alternativa para Pequena Agricultura no Tocantins, organização que presta assessoria técnica às comunidades.
O plano também foi analisado pela Naturatins, responsável pela fiscalização ambiental no estado, que deu parecer negativo ao documento por "não estar de acordo com a legislação".
O MPF submeteu o caso à 6ª Câmara em Brasília e deve apresentar também uma análise sobre o Plano de Manejo.
Procurado pela Repórter Brasil, o órgão disse que só irá se manifestar após a conclusão do procedimento.
A Associação Planalto declarou, por meio de seu advogado, que o TAC deu legitimidade da propriedade aos sojicultores, confirmando as decisões das instâncias judiciais (leia ao final a íntegra das respostas da Associação Planalto).
Depois de conhecer as limitações do plano de manejo, João Bandeira concluiu que o termo de ajustamento de conduta gera insegurança às famílias. "Não dá para trabalhar contra a comunidade, precisa repensar o plano e o acordo", diz.
Leia a íntegra da nota da Associação Planalto:
"É com surpresa que recebemos seus questionamentos, os quais se mostram extremamente tendenciosos e desprovidos de informações adequadas.
Anteriormente já esclarecemos alguns pontos levantados por vossa equipe e que parece que não são considerados, talvez por não interessar ao que pretendem que prevaleça.
Mas mesmo assim, faremos novamente os esclarecimentos quanto aos pontos trazidos:
1) A Naturatins e a APA-TO apresentaram pareceres desfavoráveis ao plano de manejo apresentado pela Associação Planalto. Entre os pontos elencados, a Naturatins afirmou que a proposta de manejo nessa área não está em conformidade com a legislação ambiental e ressaltou que há a necessidade de regularizar a situação fundiária da Associação Planalto e das comunidades. A APA-TO (Alternativa para a Pequena Agricultura no Tocantins) afirmou em parecer que o plano de manejo não respeita as lógicas de gestão territorial e os sistemas de produção das comunidades tradicionais. Como a Associação Planalto responde a estas considerações?
Quanto à menção de que o NATURATINS não teria dado parecer favorável ao "Plano de Manejo", tal não é verdadeiro, havendo na verdade um questionamento quanto à nomenclatura a ser dada ao "Projeto", o que configura meramente técnico, o que já é objeto de adequação conjunta do órgão ambiental e a empresa que foi contratada para elaboração do mesmo. E assim, por conseguinte, após todos as análises necessárias será feita a devida regularização pelo órgão ambiental. Quanto à questão referente à "regularização fundiária", tal é totalmente infundado e inaplicável, sendo que fora firmado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), do qual foram anuentes além das partes, o MPF, Pastoral da Terral, Defensoria Pública, NATURATINS, que reconhecem que a área é de propriedade e posse da Associação Planalto, e que as famílias que teriam sido objeto do Plano, apenas permaneceriam na área por liberalidade do proprietário e possuidor, não sendo tal mister objeto do TAC, e ainda, não tendo o órgão ambiental tal função.
2) Como a Associação Planalto pretende proceder daqui para a frente em relação às comunidades e o litígio judicial que as envolve?
Quanto à postura da Associação Planalto, informa que, de acordo com o TAC firmado, apesar de já ter obtido sentença em três instâncias judiciais (Juízo de Goiatins, Tribunal de Justiça do Tocantins e Superior Tribunal de Justiça) que lhe reconheceu como legítima proprietária e possuidora da área, e ainda, de os ocupantes são invasores e não teriam direito de permanecer na área, não procederá a novo pedido de desocupação em relação às famílias objeto do TAC, porém, caberá ao órgão ambiental cumprir a sua parte no TAC, para fins de regularização ambiental da questão.
3) O plano de manejo apresentado pela Associação Planalto, bem como o laudo antropológico do MPF, apontam que as comunidades tradicionais estão nesta região do Tocantins muito tempo antes da chegada do projeto e da soja. A Associação Planalto reconhece o fato de que estas famílias já estavam lá antes do projeto se estabelecer? Como respondem a essa informação?
O terceiro questionamento é totalmente infundado e desprovido de informações adequadas, pois, quando da desapropriação, foi feito levantamento pelo ITERTINS, e todas as famílias identificadas foram tituladas, porém algumas venderam suas áreas e invadiram outras, como também, outras que residiam em outros estados mudaram-se posteriormente para o local para obter vantagem indevida, o que foi objeto das ações judiciais com reconhecimento de todos os fatos, e por este motivo tendo sido reconhecido o legítimo direito da Associação Planalto.
Assim, a Associação Planalto e o próprio Judiciário em três instâncias judiciais, não reconhecem tais direitos a tais pessoas, pois a situação fora devidamente regularizada quando da desapropriação.
Informa ainda que qualquer divulgação mentirosa e distorcida das questões relacionadas aos fatos acima serão objeto de responsabilização por danos morais e materiais de matérias caluniosas e distorcidas, pois o papel que deve adotar as matérias jornalistas é informar quanto à veracidade dos fatos e não implantar suas ideologias doentes, maculando terceiros e criando problemas em situações em que todos os envolvidos vêm a tempos empreendendo esforços e gastos para solucionar".
Essa reportagem faz parte do especial "Comunidades Tradicionais", da Repórter Brasil.
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