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Ordem nas Forças Armadas é expurgar LGBTs, diz criador de ONG que atende vítimas de homofobia

O casal de ex-sargentos do Exército Fernando Alcântara (e) e Laci Marinho de Araújo - Arquivo pessoal
O casal de ex-sargentos do Exército Fernando Alcântara (e) e Laci Marinho de Araújo Imagem: Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

18/07/2018 04h00

As ameaças ao policial fardado que apareceu em um vídeo gravado sem o conhecimento dele dando um selinho em outro homem, no metrô de São Paulo, estão longe de ser um caso novo e isolado de homofobia nas instituições militares brasileiras.

A opinião é do ex-sargento do Exército Fernando Alcântara, licenciado da corporação há dez anos depois de assumir um relacionamento com outro sargento, Laci Marinho de Araújo. O caso deles veio à tona quando assumiram publicamente a relação e foram reportagem de capa de uma revista semanal.

“Nada mudou desde então. A repressão existe e é uma determinação dos comandos para policiais e agentes homossexuais serem expurgados –com uma série de procedimentos administrativos falseados nos quais o pano de fundo, na realidade, é o preconceito”, define o ex-sargento.

Junto com o hoje marido, terceiro sargento da reserva, Alcântara criou em 2009 em Brasília, onde vivem, uma ONG para atender outros militares que, assim como eles, tiveram de enfrentar um périplo nas Forças Armadas ou nas polícias ao se revelarem ou serem descobertos homossexuais.

No caso do soldado paulista Leandro Prior, gravado no metrô de São Paulo, as ameaças feitas em redes sociais sugeriram desde que o policial fosse linchado por apedrejamento até que ele pedisse exoneração. Prior está licenciado para tratamento psiquiátrico e encaminhou as ameaças à Corregedoria da PM, que abriu investigação sobre o caso e disponibilizou colete e proteção policial ao soldado.

O Código Penal Militar, um decreto-lei de 1969, não estabeleceu proibições ao alistamento de homossexuais, ainda que, em seu capítulo VII, tenha definido como “crimes sexuais”, além de estupro, atentado violento ao pudor e corrupção de menores, também a “pederastia ou outro ato de libidinagem”, descrita no documento como “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”. A pena nesse caso varia de seis meses a um ano de detenção.

Em 2015, quatro anos após reconhecer a união homoafetiva, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, por maioria, que continua a ser crime praticar sexo de qualquer tipo em instalações militares, mas determinou que fossem excluídos os termos “pederastia” e “homossexual” do Código Penal Militar por entender que eles possuíam caráter discriminatório.

O casal de ex-sargentos do Exército Fernando Alcântara (à esquerda) e Laci Marinho de Araújo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os oficiais assumiram o relacionamento em 2008
Imagem: Arquivo pessoal

Advogados, psicólogos e psicanalistas voluntários

Em entrevista ao UOL, Alcântara, que se formou em direito e atualmente advoga, contou que a ONG, denominada “Instituto Ser de Direitos Humanos e da Natureza”, não tem fins lucrativos e faz atendimento jurídico, psicológico e psiquiátrico, voluntariamente, a militares que enfrentam preconceito quanto à orientação sexual.

“É um trabalho feito a partir de parcerias, não recebemos doações. São advogados, psicólogos e psiquiatras que destinam um tempo para atender pessoas que indicamos a eles”, contou.

De acordo com o ex-soldado, a entidade recebe, em média, de três a cinco casos mensais de militares que pedem ajuda; a maioria, profissionais submetidos a procedimentos administrativos que mascarariam, na realidade, a perseguição em função da orientação sexual. Há também mulheres vítimas de assédio sexual praticado por oficiais superiores.

“É difícil fazer com que as pessoas creiam que, ainda hoje, exista um modelo de investigação da vida civil dos militares fora do ambiente militar. Cada instituição tem seu setor de inteligência, e como hoje não há mais um ‘inimigo externo’ a combater, tal qual a ditadura fazia crer, a respeito da ideologia comunista, agora se persegue quem não comunga com a regra institucional”, definiu o advogado. “Nesse sentido, ser homossexual hoje nas Forças Armadas e em muitas polícias é estar passível de sofrer as mais diversas sanções, até que essa pessoa seja jogada para fora”, completou.

No entendimento de Alcântara, o tratamento dado dentro de quartéis a praças e oficiais também difere quando a questão é a identidade de gênero ou a orientação sexual fora do ‘padrão’.

“Já vi inúmeros casos em que não se dá o mesmo tratamento duro a coronéis ou generais que cometeram esses crimes sexuais ou a oficiais que assediaram sexualmente homens ou mulheres nessas corporações”, destacou. “Mas é importante lembrar que instituições como o Exército agem como agem porque têm suporte de outras, como a Justiça Militar e o Ministério Público Militar. Apesar de eu ter uma perspectiva otimista sobre nossos direitos, confesso que ver pessoas públicas com discurso de ódio e de apologia a torturadores ainda me assusta”.

"Nunca pensamos em esmorecer"

Indagado sobre como chegam os profissionais das forças de segurança ao buscarem apoio da ONG, Alcântara foi taxativo: “Muitos chegam já em uma situação prestes a cometimento de suicídio, em quadros muito graves, tanto que ficamos sem condições de enfrentamento e partimos mais para um  trabalho de contenção de danos. É muita gente que chega vítima de uma perseguição desenfreada – com prejuízo não apenas ao indivíduo, mas a todo o núcleo familiar dele”, relatou.

Hoje, Alcântara garante que não há “a menor possibilidade de a luta retroceder”.

“A luta que eu e meu companheiro tivemos foi muito dura, mas nunca pensamos em esmorecer. Mas conheci familiares de gente que se suicidou porque não suportou, ou gente que foi expulsa ou pediu para sair. Gente massacrada porque estava expressando uma visão de amor. Por que as instituições não combatem suas reais mazelas?”, questionou.

Sobre o uso da farda em demonstrações públicas de afeto –situação que gerou a onda de ameaças ao soldado Prior e também a outros quatro praças heterossexuais, na PM paulista, desde 2001 --, o ex-soldado do Exército conclui: “Se alguém conseguiu vestir a farda, o fez porque tinha vocação para servir e combater, já que o treinamento para isso é exaustivo. Se a pessoa superou essa etapa e vestiu a farda, é digna de respeito – a expressão da afetividade dela não influencia. Para que falso moralismo?”

O parceiro de Alcântara pediu em 2011 a aposentadoria ao Exército, mas acabou reformado com perda de um terço do salário. Ele busca reverter a medida por meio de um recurso especial ainda não julgado no STJ (Superior Tribunal de Justiça). 

Já Alcântara foi alvo de uma série de processos disciplinares e prisões, sob acusação de deserção –logo após a entrevista de 2008 em que o casal se assumiu publicamente –, e acabou solicitando o licenciamento das Forças Armadas.