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"Se for para descriminalizar uma droga, que seja o crack", diz psiquiatra

Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp e pesquisador sobre políticas de drogas - Acervo pessoal
Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp e pesquisador sobre políticas de drogas Imagem: Acervo pessoal

Flávio Costa

Do UOL, em São Paulo

07/06/2019 04h01Atualizada em 06/04/2020 05h46

Membro do Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas de São Paulo, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli defende uma abordagem "desapaixonada" quando o assunto é consumo de substâncias ilícitas no Brasil.

Ele prega a favor da descriminalização do consumo de drogas, com o objetivo de tratar adequadamente na rede pública de saúde os "chamados usuários problemáticos". Não deve se confundir seu ponto de vista com uma defesa da legalização (que seria a liberação de todo o comércio de entorpecentes).

A criminalização acaba penalizando todos os usuários e afasta do sistema de saúde pública aqueles que precisam de tratamento.

Marcado para a última quarta-feira (5), o julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o assunto foi retirado de pauta pelo ministro Dias Toffoli (de sobrenome com grafia diferente, o ministro tem parentesco distante com o médico).

O psiquiatra considera "retrógrada" a postura da gestão Jair Bolsonaro a respeito do assunto, representada pela não-divulgação de um estudo da Fiocruz que revela que não há uma epidemia de drogas no país.

Tófoli é professor da Unicamp (Universidade de Campinas) e coordena há seis anos o Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Leipsi) da instituição.

Leia abaixo os principais trechos de sua entrevista ao UOL:

UOL - O estudo da FioCruz cuja divulgação foi censurada pelo governo federal afirma que não há uma epidemia de drogas no Brasil. Você teve acesso ao estudo? Concorda com suas conclusões?

Tófoli - Eu obtive acesso a uma versão do estudo. Trata-se de uma pesquisa bem conduzida tecnicamente e de extrema relevância, além de ter sido realizada por uma equipe competente e respeitada. Eu considerado inadequado o uso da palavra epidemia quando o assunto são doenças não transmissíveis, principalmente no caso de drogas. Além disso, aceitando os dados da pesquisa como oficiais, a gente pode dizer que não há nada que indique uma epidemia. Os dados mostram que o consumo se manteve estável.

Ministro Osmar Terra - ALEX DE JESUS/O TEMPO/ESTADÃO CONTEÚDO - ALEX DE JESUS/O TEMPO/ESTADÃO CONTEÚDO
O ministro da Cidadania, Osmar Terra
Imagem: ALEX DE JESUS/O TEMPO/ESTADÃO CONTEÚDO
O fato de o governo censurar a divulgação do estudo revela como o governo vê a questão do consumo de drogas?

O ministro da Cidadania, Osmar Terra, deixou claro que sua posição é favorável à guerra às drogas. Já o vi elogiar países que adotam medidas mais duras que o Brasil em relação às políticas de combate às drogas. Até aonde eu entendo, a crença dele não é baseada nas melhores evidências científicas disponíveis. Ele resvala em declarações muito infelizes, a mais famosa dela é comparar o resultado dessa pesquisa séria com um passeio em Copacabana. Não dá para fazer política pública desse jeito.

A postura do ministro reflete o senso comum da maioria dos brasileiros quando o assunto é consumo de drogas?

Quando o ministro toma essa posição, ele tem o senso comum a seu favor. É óbvio que para as pessoas existem diversos casos de usuários e suas famílias que sofrem muito por causa do uso de drogas. Esses casos chamam bastante atenção, eles têm muita visibilidade na vida das pessoas. Além disso, há décadas se trabalha o conceito de drogas como uma espécie de entidade viva, consciente, capaz de se mover como forma ativa e prejudicar a vida das pessoas, sem observar o contexto, a vida de quem é atingido, seu universo social e familiar no qual determinada pessoa estava vivendo e ficamos olhando apenas para as drogas. Até porque as drogas são proibidas. E elas são uma maneira de a gente culpar um fator quando um problema é multifatorial. Isso não quer dizer que não exista problemas com drogas.

A grande pergunta é: a criminalização tem resolvido esses problemas ao longo de todas essas décadas? A droga é vista como um inimigo social. Óbvio que eu não vou dizer que a droga é um amigo social. Mas a gente precisa olhar para o problema de uma maneira desapaixonada, de uma maneira mais racional. É só isso que eu proponho, mais racionalidade no debate. E a gente precisa olhar os dados.

E o que os dados indicam?

O que a gente sabe por meio de pesquisas é que a maioria dos usuários não tem problemas ao usar as drogas. Não tem dependência, não tem abuso. Não são usuários problemáticos. Não se encaixam em um perfil de comportamento de risco. Em algumas drogas esse perfil é maior, mas a maioria é de usuários sem problemas. O que acontece é que em nome do bem jurídico "saúde pública," que é a justificativa usada para criminalização, a gente acaba penalizando todos os usuários, e estamos afastando do sistema de saúde pública aqueles que são os problemáticos que precisam de tratamento. A grande criminalização não funciona em nível algum.

Considerando que o julgamento ocorresse, a tendência era de que o STF descriminalizasse o porte de maconha para consumo. Do ponto de vista médico, é um avanço?

Meu argumento é muito simples: se do ponto de vista da saúde pública, o maior valor da descriminalização é poder tratar adequadamente os mais necessitados, os mais vulneráveis, qual sentido de adotar essa medida se a descriminalização for só da maconha? Se fosse escolher para descriminalizar uma droga apenas, teria que ser o crack, que tem uma maior vulnerabilidade social associada.

10.mai.2019 - Cracolândia em São Paulo - NELSON ALMEIDA / AFP - NELSON ALMEIDA / AFP
10.mai.2019 - Cracolândia no centro de São Paulo
Imagem: NELSON ALMEIDA / AFP

O que a experiência em outros países demonstra?

Felizmente a gente já tem uma vasta experiência em processo de descriminalização. No caso da Holanda, o usuário não é considerado criminoso desde os anos 1970, por exemplo. É óbvio que pode haver flutuações em casos particulares, porém olhando o mapa geral o que a gente encontra é que a tendência de consumo se mantém. Os países que estavam estáveis continuam estáveis antes e depois da criminalização, os que estavam aumentando continuando aumentando, o que estavam baixando, continuam baixando. Não há influência no comportamento do usuário para mais ou para menos. A influência é neutra do ponto vista da prevalência do consumo.

Mas então por que é vantajosa a descriminalização do consumo de drogas?

É vantajosa porque do ponto de vista da saúde pública você retira da esfera criminal e o coloca na esfera assistencial, de cuidados com a saúde.

Existe um enorme ruído em cima disso. A descriminalização é o mínimo do ponto de vista dos direitos humanos. É entender que o usuário não é criminoso. Isso independe direita ou esquerda. Isso tem a ver com respeitar o cidadão.