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Com medo, população tenta impedir barragem de água no interior de São Paulo

Beatriz Montesanti

Do UOL, em São Paulo

06/07/2019 04h00

Um medo acomete a população de Pedreira desde o começo do ano: o de ficar debaixo d'água. Moradores da pequena cidade no interior de São Paulo começaram a se preocupar em janeiro, quando guindastes e tratores passaram a preparar o terreno às margens do rio Jaguari para a criação de uma reserva para abastecimento hídrico. Contrária à construção, parte dos residentes tenta parar a obra.

Pedreira tem 40 mil habitantes, e está localizada a 137 km da capital do estado. Os planos para a construção de uma barragem no Jaguari, cujo leito separa o município da vizinha Campinas, remontam à década de 1970, mas ganharam força durante a crise hídrica de 2014 - as obras começaram de fato no início deste ano.

O projeto prevê a construção de uma barreira de 50 metros de altura que, quando pronta, terá capacidade para armazenar 38 milhões de metros cúbicos de água. Trata-se, basicamente, de uma enorme caixa d'água, útil em períodos de estiagem como o vivido por São Paulo há quatro anos.

O governo paulista afirma que a estrutura é segura e indispensável, e bancará o custo de R$ 230 milhões, sem contar os gastos com desapropriações. As construções estão a cargo de um consórcio liderado pela OAS.

O DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), órgão do estado, defende a barragem e diz que duas represas juntas, em Pedreira e Amparo, abasteceriam 23 municípios da região, beneficiando 5,5 milhões de pessoas (veja mais abaixo).

Área que será alagada com a construção da reserva - Paschoal Aparecido Loner/Arquivo Pessoal - Paschoal Aparecido Loner/Arquivo Pessoal
Área que será alagada com a construção da reserva
Imagem: Paschoal Aparecido Loner/Arquivo Pessoal

Entre uma seca e uma inundação hipotéticas, no entanto, a segunda assusta mais. Para a população de Pedreira, os números não justificam colocar em risco os milhares de residentes que vivem para baixo do rio, no caso de um rompimento. Eles questionam hoje a necessidade da barreira, a ausência de um plano de emergência e a falta de diálogo com os responsáveis pelo projeto.

Interessado na possível exploração turística que a cidade pode ter com o empreendimento, mas preocupado com o descontentamento popular, o prefeito Hamilton Bernardes (PSB) tentou embargar a obra em fevereiro, alegando a ausência de uma licença municipal - que nunca foi pedida, nem concedida. Mas o embargo foi recusado na 2ª vara da Comarca de Pedreira, assim como seu recurso.

Apesar das derrotas, a população ainda busca apoio. Pretendem protocolar uma ação civil pública e recentemente entregaram uma carta ao governador João Doria, que esteve na cidade para inaugurar uma creche. Um abaixo-assinado reuniu, até o momento, 6.471 assinaturas.

2.jul.19 - Moradores protestam durante visita do governador João Doria a Pedreira - Ricardo Ferraretto/Arquivo pessoal - Ricardo Ferraretto/Arquivo pessoal
2.jul.19 - Moradores protestam durante visita do governador João Doria a Pedreira
Imagem: Ricardo Ferraretto/Arquivo pessoal

Segurança é a maior preocupação dos moradores

No terreno às margens do rio, alguns pedreirenses já deixaram suas casas para dar espaço a água. Moradores da cidade que falaram ao UOL chamaram atenção para a proximidade da barragem do centro do município. As primeiras casas estão a cerca de 800 metros do canteiro.

"É a mesma coisa que a gente amarrar uma bomba-relógio na nossa cabeça, que não sabemos quando, se é a nossa geração ou se é a próxima, vai sofrer, mas com certeza um dia algo pode acontecer que ninguém nessa distância vai conseguir evitar", diz a professora de dança Carina Galvão, hoje uma das mais engajadas na comissão popular Barragem Não, que reúne cerca de 30 pessoas.

Outra moradora reclama da passagem de tratores na rua próxima de sua casa, que já deixou rachaduras em algumas paredes. "Minha casa treme todinha", diz. Quer vender seu imóvel, localizado a poucos metros de onde o muro de concreto será erguido.

Canteiro de obras da barragem de Pedreira - Beatriz Montesanti/UOL - Beatriz Montesanti/UOL
Canteiro de obras da barragem de Pedreira
Imagem: Beatriz Montesanti/UOL

Projeto foi revisto após a crise hídrica em SP

Em 2014 houve o período de seca mais intenso enfrentado por São Paulo. Na ocasião, o sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de quase 9 milhões de pessoas, atingiu um dos níveis mais críticos de sua história. Problemas de infraestrutura e planejamento, por parte do governo do estado, foram apontados como responsáveis pela situação. Desde então, uma série de medidas foram tomadas para melhorar o uso e a disponibilidade de água.

Um projeto de sistema de adutores que acompanharia a construção do reservatório de Pedreira foi revisto e, por ora, nenhum outro foi apresentado. Adutores são responsáveis por levar a água para as cidades acima da barragem.

Trecho do rio Jaguari que passa por Pedreira - Beatriz Montesanti/UOL - Beatriz Montesanti/UOL
Trecho do rio Jaguari que passa por Pedreira
Imagem: Beatriz Montesanti/UOL

Para Vicente Andreu Guillo, ex-presidente da ANA (Agência Nacional de Águas) e crítico da construção, as mudanças tornam o projeto desnecessário, além de financeiramente inviável.

"Essas barragens, para serem úteis, terem finalidade realmente de segurança hídrica, precisam de adutores que levem a água para cima, e não para baixo. Construir a reserva sem adutor é como começar uma estrada pelo viaduto", diz.

Coordenador da unidade de projetos do DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), Genivaldo Maximiliano Aguiar diz que um novo estudo está sendo conduzido em relação ao sistema de adutores, que será apresentado até 2021. Enquanto isso, afirma que municípios para baixo do leito, que fazem captação a fio d'água (direto do rio), serão beneficiados mesmo sem o sistema.

DAEE defende necessidade da barragem

Aguiar afirma que os planos para a construção da estrutura precedem a crise de 2014, e que os reservatórios de Pedreira e também no município de Amparo são vistos como solução hídrica para a região há muitos anos, dado o crescimento populacional.

Sobre a necessidade de um alvará municipal para dar sequência às construções, Aguiar afirma que "todas as condicionantes necessárias para o município foram consultadas e foram obtidas" e que, por tratar-se de uma obra na esfera estadual e federal, não cabe ao governo local fazer o licenciamento.

Simulação de como ficaria a barragem, após finalizada - Reprodução/DAEE - Reprodução/DAEE
Simulação de como ficaria a barragem, após finalizada
Imagem: Reprodução/DAEE

Quanto à apresentação de um plano de segurança e um emergencial, o coordenador explica que, por resolução da ANA, esses planos devem ser entregues após a construção da barragem, e antes do primeiro enchimento do reservatório.

Por fim, sobre a falta de informação dada à população, Aguiar afirma terem sido realizadas quatro audiências públicas nos últimos anos, embora apenas uma tenha sido em Pedreira. Também lembrou que, segundo diretriz da licença ambiental adquirida, há um centro de comunicação instalado na cidade, aberto nos dias úteis, e que toda a documentação referente ao projeto está disponível no site do DAEE.

Para Alceu Segamarchi Jr, superintendente do departamento, a única polêmica em torno da construção é de ordem semântica.

Nada disso seria um problema, não fosse o nome barragem
Alceu Segamarchi Jr, superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica

O trauma de Brumadinho

As barragens de água no Brasil foram construídas em sua maior parte durante a ditadura militar, quando o país passava por um boom econômico e era necessário novas fontes de abastecimento de água e energia.

Brumadinho: CPI recomenda indiciamento de 14 pessoas

Band Notí­cias

Segundo Laura Maria Fais, professora da Faculdade de Tecnologia da Unicamp, o Brasil tem um bom histórico nesse sentido. "Temos barragens construídas há 50, 60 anos e estão lá, servindo, cumprindo sua função, veja Itaipu", cita como exemplo.

A professora ressalta que a legislação avançou nos últimos anos, e que governos e empresas estão sendo cobrados cada vez mais quanto à segurança desses empreendimentos. "Não é uma questão de ser mais ou menos segura que as barragens de rejeito, mas desde que você atenda a critérios de projeto e legislação, qualquer uma das duas podem ser seguras", explica.

Entorno do rio Jaguari, no canteiro de obras - Beatriz Montesanti/UOL - Beatriz Montesanti/UOL
Entorno do rio Jaguari, no canteiro de obras
Imagem: Beatriz Montesanti/UOL

Mas a percepção sobre essas construções mudou após os desastres em Minas Gerais. Não à toa: o rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho deixou, ao todo, mais de 300 mortos e um impacto ambiental imensurável. "Tem que servir como lição para nós da engenharia fazermos uma conversa mais próxima com a população, explicar o que tem que ser explicado. Os reservatórios são sim necessários, não estão todos prestes a se romper como se criou em alvoroço nacional", afirma a professora.

A moradora Carina Galvão reconhece que os desastres chamaram atenção da população para a estrutura a ser erguida na própria cidade. Mas se incomoda com a comparação.

Os jornais ficam falando que a gente tá com medo por causa de Mariana e Brumadinho. Sabemos que não é igual. A gente tá preocupado com o tamanho da catástrofe que pode acontecer por uma falha humana ou por uma força da natureza que ninguém vai conseguir parar. Não existe nada nessa distância que possa evitar uma catástrofe"
Carina Galvão, moradora de Pedreira

A lembrança das tragédias recentes já faz parte do dia a dia de Pedreira. Alguns residentes fazem planos de mudar para Serra Negra ou Holambra, estado adentro. Carina é um deles: "Você pode me dizer que a barragem é segura, mas você viria morar aqui?".