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Sem confronto, menino de 12 anos morto por PM não apresentou resistência

Miguel Gustavo Lucena de Souza, 12, morto por um policial militar em São José dos Campos, interior de São Paulo - Arquivo pessoal
Miguel Gustavo Lucena de Souza, 12, morto por um policial militar em São José dos Campos, interior de São Paulo Imagem: Arquivo pessoal

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

25/10/2019 17h39

Miguel Gustavo Lucena de Souza, 12, morto por um policial militar na noite de 6 de setembro deste ano por estar em um carro roubado em um parque de diversões de São José dos Campos, interior de São Paulo, não apresentou resistência, segundo os laudos técnicos. Testemunhas disseram que ele já estava rendido quando foi morto. Relatório da Ouvidoria, divulgado hoje, apontou que as testemunhas estão certas. A Corregedoria da corporação apura o caso.

"Os laudos técnicos indicam que a morte ocorreu sem resistência da vitima, ou seja, indicam que não houve confronto armado. Pelas fotos do laudo de local, é possível verificar que a vítima foi morta quando saía do banco de trás do veículo e, segundo testemunhas, não estava armada", aponta o relatório da Ouvidoria. O laudo necroscópico indicou que o primeiro tiro atingiu as costas do menino. O segundo teve entrada superior para inferior, indicando que teria sido efetuado de cima para baixo.

"Apesar de o Boletim de Ocorrência citar a natureza de excludente de ilicitude e legítima defesa, os laudos indicam indícios de morte sem resistência, o que não coaduna com excludente de ilicitude", acrescenta o relatório. "Enviei cópia deste relatório ao corregedor da PM, coronel Marcelino Fernandes, ao delegado responsável pelo inquérito policial em São José dos Campos e para o Ministério Público. Também solicitei às polícias a reconstituição da ocorrência", afirmou o ouvidor Benedito Mariano.

De acordo com o Boletim de Ocorrência, que teve como base os depoimentos dos policiais envolvidos no caso, Miguel e outros três jovens teriam roubado o carro por volta das 18h.

Localizado o veículo, os policiais iniciaram uma perseguição que terminou quando eles entraram com o carro num descampado. Lá, havia um parque de diversões. O condutor perdeu o controle da direção e bateu na grade de um carrossel.

Os garotos saíram com as mãos para cima e atenderam a ordem para se deitarem no chão, segundo os policiais. No entanto, ainda segundo a versão policial, Miguel teria saído com uma arma em punho e foi atingido por dois disparos. Outros três menores, um jovem de 17 anos e dois adolescentes de 13 e 14 anos, foram detidos e encaminhados para a Fundação Casa.

O comando da PM de São José dos Campos informou que o garoto morto estava com um revólver calibre 32 nas mãos e escondia um simulacro de pistola sob o tapete do veículo. A dona do automóvel não reconheceu nenhum dos garotos como autores do roubo do veículo. A investigação teria apontado que os menores seriam receptadores do carro roubado.

Miguel era negro, franzino e tinha 1,33 m de altura. Aluno na Escola Estadual José Frederico Marques, começou a fumar maconha com dez anos, o que desapontava a mãe, que é cuidadora de idosos, tem dois filhos mais velhos empregados no setor de aviação e é evangélica. Para manter o vício, o garoto foi "recrutado" pelo tráfico de drogas da cidade como "aviãozinho" —vendedor de drogas em "biqueiras" da região.

"Compra um caixão bem pequeno"

Segundo denúncia feita pela mãe de Miguel, Andreia Gonçalves Pena, 36, à Ouvidoria da Polícia, cerca de duas semanas antes de seu filho ser morto, o cabo Sudré foi até sua casa e afirmou: "Compra um caixão bem pequeno, porque, se eu pegar seu filho na rua de novo, vou matar".

Miguel de Souza, 12, tinha dependência química - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Miguel de Souza, 12, tinha dependência química
Imagem: Arquivo pessoal

A mãe afirmou que Miguel era dependente químico e que vendia balas em semáforos da região. Andreia relatou que o menino chegou a traficar drogas, mas que, depois de ter sido internado em uma casa de recuperação, deixou a criminalidade. No entanto, relatou que ele era perseguido pelo policial por seu passado no tráfico.

Ela disse que foi informada da morte de seu filho por uma vizinha. Ao chegar ao local, um policial disse a ela que ele estava conduzindo um carro, um Volkswagen Fox de cor vermelha, roubado e que havia atropelado "várias" pessoas.

No entanto, testemunhas teriam gritado, na sequência, que a versão policial era mentirosa: que Miguel estava no banco traseiro, desarmado e que desceu do carro com as mãos para cima. Não houve registros de ninguém atropelado na região.

As testemunhas disseram à mãe que Miguel foi atingido, ainda com as mãos para cima, próximo a axila. Depois, Andreia foi até a delegacia. Lá, encontrou o policial Sudré e afirmou a ele: "Parabéns, você conseguiu. Tô indo comprar o caixão". Ela relatou que ele retrucou: "Sua louca, boa coisa ele não era. O que tava fazendo em um carro roubado?".

Miguel foi a nona morte na carreira de um só PM

Desconhecido da população em geral, o cabo da PM (Polícia Militar) Thiago Santos Sudré, 40, é conhecido na periferia de São José dos Campos, no interior de São Paulo, sob a alcunha de Carioca e por ser ríspido contra suspeitos de crime contra o patrimônio.

Ele foi o responsável por atirar duas vezes contra Miguel Gustavo Lucena de Souza, 12, que estaria em um carro roubado em um parque de diversões da cidade, às 22h45 de 6 de setembro. O policial alegou à Polícia Civil e à Corregedoria da PM que agiu em legítima defesa.

O caso é investigado pelo órgão corregedor da corporação que também apurou, no passado, outras seis MDIP (Mortes Decorrentes de Intervenção Policial) em que o cabo Sudré estava envolvido, entre 2011 e 2019.

Nessas outras seis ocorrências em que o PM está na ação, outros oito homens foram mortos. As idades deles variavam entre 17 e 46 anos, mas a dinâmica foi semelhante: houve suspeitas de roubo, tiroteios, suspeitos mortos e o policial sem ferimentos. Em nenhum caso o PM foi penalizado. Veja, abaixo, os outros casos:

Dois suspeitos em janeiro de 2011

Na noite de 28 de janeiro de 2011, dois homens, não identificados, foram mortos a tiros pelo policial. Os suspeitos teriam roubado uma casa na rua Lorenzo Lotto, no Parque Maria Helena, zona sul da capital paulista. Segundo o que afirmou o PM no 92º DP (Distrito Policial), no Parque Santo Antônio, os suspeitos tentaram fugir em um Volkswagen Golf e, durante troca de tiros, foram mortos.

Um em março de 2014

Em 17 de março de 2014, o policial Sudré teria atirado e matado um motorista que teve apenas a idade revelada (33 anos) em Poço das Antas, Caraguatatuba, litoral de São Paulo. Após a participação no caso, ele foi transferido para o Vale do Paraíba.

Dois em maio de 2015

Em 29 de maio de 2015, o policial participou de uma intervenção que resultou na morte de mais dois suspeitos. Foram mortos Uanderson de Oliveira Gonçalves Martins, 18, e Lucas Aguiar, 17. Naquela ocorrência, segundo a investigação policial apurou, ele não atirou.

Durante a ocorrência, os dois jovens estariam conduzindo um carro roubado na estrada Natan Sampaio, no Jardim Capetingal, em São José dos Campos, por volta das 4h. A equipe policial teria dado ordem para que os suspeitos parassem o carro, o que não aconteceu. Nenhum policial se feriu durante a ação.

Um em fevereiro de 2016

Na noite de 8 de fevereiro de 2016, o cabo atirou contra Matheus Pietro Santos Queres, 21, na rua Antônio José Matos Lima, no Parque Residencial União, também em São José dos Campos.

Desta vez, o policial informou na delegacia que o suspeito estava com uma motocicleta Honda CB 300R roubada e tinha sob posse uma arma de fogo de uso restrito. Os policiais só apresentaram o caso no 3º DP da cidade dois dias depois.

Um em abril de 2018

Na madrugada de 25 de abril de 2018, o policial estava na equipe que matou Bruno do Nascimento Barbosa, 28, no Parque Novo Horizonte, em São José dos Campos. Segundo a investigação policial, o cabo Sudré não atirou, mas participou da intervenção.

Os policiais disseram na delegacia que Barbosa estava com uma arma e atirou contra eles, que "revidaram à injusta agressão". Nenhum policial ficou ferido na ocorrência.

Um em janeiro de 2019

No noite de 5 de janeiro de 2019, o policial Sudré atirou contra um homem, identificado apenas pela idade (46), na rua Caravelas, no Parque Independência, também em São José dos Campos. Ele teria roubado um estabelecimento e, na tentativa de fuga, teria trocado tiros com o policial.

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Outro lado

Desde o mês passado, a reportagem liga para a 2ª Companhia do 46º BPM/I (Batalhão da Polícia Militar no Interior), onde o cabo Thiago Santos Sudré está lotado, para entrevistá-lo. Ele nunca esteve disponível. Um colega de farda do cabo anotou o telefone da reportagem e disse que encaminharia a ele. Até a última atualização deste texto, o policial não entrou em contato.

A reportagem questionou à Corregedoria da corporação se o policial tinha um advogado constituído e foi informada que ele foi ao órgão prestar depoimento sozinho. A reportagem também pediu entrevista a ele via SSP (Secretaria da Segurança Pública), mas não teve retorno sobre o pedido.

Com relação ao caso do adolescente Miguel, a pasta havia divulgado nota, anteriormente, informando que todas as circunstâncias relativas aos fatos são apuradas pelo 3º DP de São José dos Campos e pela Polícia Militar por meio de um IPM (Inquérito Policial Militar), que é acompanhado pela Corregedoria da corporação.

"As armas dos policiais foram encaminhadas para perícia, assim como o revólver calibre 32 e um simulacro utilizado pelos suspeitos. Os envolvidos seguem afastados da atividade operacional, cumprindo expediente administrativo, enquanto durarem as investigações", disse a pasta por meio de nota oficial.