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PM usa 'medo' em Paraisópolis, e analistas sugerem opção: 'inteligência'

Viela de Paraisópolis, na zona sul de SP, onde pessoas morreram após ação da PM em meio a baile funk - Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
Viela de Paraisópolis, na zona sul de SP, onde pessoas morreram após ação da PM em meio a baile funk Imagem: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

08/12/2019 04h01

Resumo da notícia

  • Moradores e comerciantes relatam medo após atritos entre PMs e criminosos em Paraisópolis
  • Tensão é ainda maior após mortes de PMs na favela
  • Especialistas dizem que polícia deveria atuar com inteligência, em parceria com a polícia civil

É rotina há pelo menos dois anos: sempre que há ação da polícia militar em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, as semanas seguintes são de animosidade por parte da corporação contra moradores da segunda maior favela da cidade.

"Se um PM tiver desacerto de propina com o tráfico, tem tensão. Se troca tiro, tem tensão. Se dispersa os bailes com truculência e o tráfico cobrar depois, também tem tensão. Esse clima quem sentimos somos nós, moradores, que ficamos no meio disso tudo", afirmou sob anonimato um comerciante de 47 anos.

Assim como ele, diversos moradores e comerciantes de Paraisópolis afirmam que a polícia militar emprega medo e truculência nas operações no bairro — uma estratégia equivocada, segundo estudiosos em segurança pública ouvidos pela reportagem. Eles afirmam que há alternativa: usar inteligência.

Mortes no baile ocorreram após assassinato de policial

A última ação policial na comunidade, há uma semana, deixou nove mortos durante o Baile da DZ7, uma das principais festas de favela de São Paulo, que atrai gente de todo o país.

Mas quem mora em Paraisópolis sabe que o clima era de tensão na região há pelo menos um mês.

"Quando um policial morre aqui, os PMs reviram tudo nos dias seguintes. Nos desrespeitam enquanto comerciantes, agridem jovens que eles acham que podem ter qualquer envolvimento. Fazem daqui um cenário de guerra", diz a mulher de um comerciante.

Em 1º de novembro, o sargento Ronald Ruas Silva, 52, morreu após ser baleado durante troca de tiros nas imediações da favela. No dia seguinte, o comando da PM determinou uma "operação saturação" com objetivo de "aumentar a segurança" no local e sem prévia de fim.

A situação não é nova.

Em agosto do ano passado, quando a PM Juliane dos Santos Duarte, 27, foi assassinada após ter sido descoberta por integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) como policial dentro da favela, a PM determinou o mesmo: operação saturação sem prévia de fim. Os suspeitos do crime foram identificados, presos e acusados pelo MP (Ministério Público).

"A gente torce para que ninguém morra. Mas se alguém for morrer nessa guerra que criaram onde a gente mora aqui, que nunca seja o PM. Porque depois a próxima vítima pode ser qualquer um que more aqui", diz uma estudante de 19 anos moradora de Paraisópolis.

Inteligência e articulação

A desembargadora Ivana David diz que "diante de toda essa tragédia, não paira qualquer dúvida de que o enfrentamento ao crime organizado aqui em São Paulo, inclusive faccionado, só alcançará êxito com inteligência policial".

"Por meio da devida investigação criminal, pelos meios legais de obtenção de provas e com a consequente apreensão de bens e valores, conseguiremos sufocar e, quem sabe um dia, acabar com as organizações criminosas e toda violência que ela impõe, principalmente nas comunidades menos favorecidas", complementou a magistrada.

Para Rafael Alcadipani, professor de Gestão Pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a polícia militar deveria se articular com a polícia civil.

"Em Paraisópolis, a PM age de um jeito e a Civil age de outro. O que falta em São Paulo é um escritório de inteligência que junte as polícias e o Ministério Público para que, de forma integrada, analisem o que cada uma pode fazer de melhor. Isso não acontece hoje. Hoje, é cada polícia por si", complementou.

Só existe tráfico se há conivência de agentes públicos. Então, também é necessário um trabalho forte de combate à corrupção.
Rafael Alcadipani, professor da FGV

Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), aponta a desarticulação entre as polícias como o principal desafio para alterar esse cenário.

"A política nessas comunidades, via de regra, tem sido operada pelos grupamentos táticos, que atuam em ações de maior periculosidade, utilizam armamento mais pesado, tem mais homens dentro das viaturas. Como as polícias não trabalham de forma conjunta, a Polícia Militar entra nas comunidades com essas operações que muitas vezes acabam de forma violenta, e não se prioriza o trabalho de investigação, que deveria ser feito pela Polícia Civil", disse.

Bruno Paes Manso, pesquisador do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da USP), afirma que a PM tem "incapacidade de aprender com os próprios erros ou de mudar a partir dos erros". Por isso, é difícil evoluir. "Quando se justifica uma ação em vez de reconhecer os erros e os excessos, acaba repetindo erros sempre", argumentou.

Informada sobre as críticas dos especialistas, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) não se manifestou até esta publicação.

Vídeo mostra agressões de PM em Paraisópolis

UOL Notícias

Operações contra bailes

A diretriz do governo estadual para interromper bailes tem como base a lei estadual 16.049, de autoria dos deputados estaduais Coronel Camilo (PSD) e Coronel Telhada (PSDB) e sancionada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) em 2017.

A lei estadual proíbe festas com uso de som em veículos parados nas vias públicas e impõe multa de R$ 1.000. Segundo o governo, entre sexta e domingo cerca de 25% das ocorrências recebidas pela PM são de perturbação do sossego. Só em Paraisópolis foram 40 chamadas no último domingo.

Três versões sobre Paraisópolis

Segundo a primeira versão oficial, apresentada pelos PMs envolvidos na ocorrência, os nove jovens foram mortos pisoteados. A segunda, da Polícia Civil, aponta que as mortes ainda são suspeitas, porque não há elementos suficientes para explicar as causas das mortes. Depois, o MP (Ministério Público) citou os crimes como homicídios, mas tirou a responsabilidade dos PMs e afirmou que a Promotoria fará investigação criteriosa.

Atestados de óbito de 4 dos 9 jovens apontam as causas das mortes por asfixia e trauma na medula. Familiares de algumas das vítimas estranham o fato de não haver marcas esperadas por pisoteamento —como feridas ou sangue, o que colocaria em xeque a primeira versão policial.

Na tarde de ontem, veio a público imagens que mostrariam os seis primeiros policiais envolvidos na ocorrência chegando até a favela de Paraisópolis. Ao fim da operação, 38 policiais militares se envolveram na ocorrência.

Vídeo mostra correria e PM jogando bombas e Paraisópolis

UOL Notícias

PMs afastados do serviço operacional

Desde segunda-feira (2), seis policiais militares do 16º BPM (Batalhão da Polícia Militar) que estiveram envolvidos na operação em Paraisópolis na madrugada de domingo estão afastados do serviço operacional. Em depoimento prestado à Polícia Civil e à Corregedoria da PM, eles afirmaram que fizeram "uso moderado da força".

Os PMs João Paulo Vecchi Alves Batista, Rodrigo Cardoso da Silva, Antonio Marcos Cruz da Silva, Vinicius José Nahool Lima, Thiago Roger de Lima Martins de Oliveira e Renan Cesar Angelo foram alocados ao serviço administrativo, uma prática comum da corporação paulista quando há suspeitas contra seus servidores.

Segundo a versão dos policiais, eles foram alvo de tiros de um criminoso que estava na garupa de uma moto e que, na fuga, entrou no meio do baile funk. Dizem, também, que, durante a perseguição, houve correria provocada pelos criminosos. Os PMs afirmam que, mesmo alvos de tiros, garrafadas e pedradas, foram eles quem ficaram no local e socorreram as vítimas.

Frequentadores do baile negaram que tenha ocorrido tiroteio e afirmam que os policiais militares entraram na favela com o objetivo de fazer a dispersão por causa do barulho, e não porque havia criminosos fugindo em meio aos jovens.

Doria elogia PMs, mas recua

O governador João Doria (PSDB) defendeu a ação da PM na operação que terminou com nove mortos e também defendeu a corporação paulista como um todo. Ele teceu elogiou aos policiais do estado e afirmou que a política de segurança não irá mudar. Só quatro dias depois, após repercussão negativa, ele recuou e admitiu que deve revisar o protocolo da PM.

A versão apresentada por Doria, até então, é a mesma da polícia: PMs reagiram a um ataque de dois criminosos que estavam em uma moto atirando. "A letalidade não foi provocada pela PM, e sim por bandidos que invadiram a área onde estava acontecendo baile funk. É preciso ter muito cuidado para não inverter o processo", disse Doria.

Doria declarou ainda que o estado São Paulo "tem o melhor sistema de segurança preventiva", mas "isso não significa que não seja infalível". A ação em Paraisópolis ocorre menos de uma semana após o governo do Estado ter divulgado as metas de segurança pública da gestão Doria. As metas não determinam objetivos para reduzir a letalidade policial.