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Briga de vizinhos ameaça reurbanização de favelas em bairro emergente de SP

A Favela do Nove, ao centro, é uma das três comunidades da Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, incluídas em projeto de reurbanização proposto pela Votorantim, em 2016 - Marcelo Oliveira/UOL
A Favela do Nove, ao centro, é uma das três comunidades da Vila Leopoldina, na zona oeste de São Paulo, incluídas em projeto de reurbanização proposto pela Votorantim, em 2016 Imagem: Marcelo Oliveira/UOL

Marcelo Oliveira

Do UOL, em São Paulo

28/01/2020 04h00Atualizada em 29/01/2020 15h26

Resumo da notícia

  • O destino de uma antiga garagem de ônibus opõe ricos e pobres na zona oeste de SP
  • Os ricos são contra o uso do terreno para a construção de prédios populares
  • Os pobres prometem protestar para o projeto de lei ser aprovado logo
  • O projeto foi proposto pela Votorantim e está em debate na Câmara
  • O UOL apurou que a empresa acha que há demora na aprovação e ameaça desistir

A disputa pelo destino de uma antiga garagem de ônibus da Prefeitura de São Paulo na Vila Leopoldina —bairro de classe média na zona oeste da capital paulista— opõe ricos e pobres. O espaço deve receber prédios com moradias para habitantes de duas favelas da região.

Mas, na briga, de um lado está quem pede que um outro terreno seja destinado para famílias das comunidades. Do outro, o grupo que deseja que o projeto de reurbanização da região saia do papel.

Substituição de favelas

A proposta de construção de prédios residenciais com elevadores está dentro do PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Vila Leopoldina-Villa Lobos, que foi apresentado em agosto de 2016 pela Votorantim S.A., multinacional brasileira. O projeto completo —que prevê a construção de um total de 800 apartamentos de 50 metros quadrados cada um— ainda precisa ser avaliado por três comissões da Câmara Municipal e aprovado em plenário.

A Votorantim é dona de uma área localizada entre a Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) —a maior central de abastecimento da América Latina— e o parque Villa Lobos.

Parte dela deverá ser destinada para 400 das 800 novas moradias dos habitantes das favelas do Nove e da Linha. O PIU prevê o fim das duas comunidades, além da reforma do Cingapura Madeirite, conjunto habitacional entregue há 20 anos, na parte mais pobre do bairro, onde vivem mais 400 famílias.

Ponto de discórdia

Mas o ponto da discórdia é a parte do terreno da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) que deverá ser utilizada no projeto. No total, a área da extinta empresa de transportes da capital paulista possui 30 mil metros quadrados, dos quais 10 mil metros quadrados serão destinados para os moradores das favelas.

O local, que era usado como garagem, é cercado por vários condomínios de alto padrão, em uma área da Vila Leopoldina localizada entre as avenidas Imperatriz Leopoldina e Gastão Vidigal. Na região, houve intensa verticalização nos últimos 15 anos. Há apartamentos que custam até R$ 2,6 milhões.

A discussão em torno da garagem começou em 2014 durante os debates da atual lei de zoneamento, que transformou o terreno da garagem em uma ZEIS 1 (Zona Especial de Interesse Social), prioritária para habitação social —atendendo famílias com renda de um a dez salários mínimos. Hoje, o salário mínimo é de R$ 1.045.

5.Nov.1986 - PMs fazem a segurança da garagem da CMTC, na Vila Leopoldina, em São Paulo (SP), durante uma greve em 1986 - Fernando Santos/Folhapress - Fernando Santos/Folhapress
PMs fazem a segurança da garagem da CMTC, na Vila Leopoldina, em São Paulo (SP), durante uma greve em 1986
Imagem: Fernando Santos/Folhapress

Contaminação?

Parte dos moradores da área nobre da Vila Leopoldina se opôs às moradias populares. Ela foi liderada pela AVL (Associação Viva Leopoldina), que promove um abaixo-assinado contra o PIU, com mais de 3.000 apoiadores. "Não aceitamos a transferência das favelas para o terreno contaminado por combustíveis da antiga CMTC", diz trecho do manifesto.

Um laudo da Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) aponta que há contaminação derivada de combustíveis no terreno. Ela, porém, defende que a construção dos prédios poderia acontecer após o processo de descontaminação.

Nas comunidades, localizadas ao lado da Ceagesp, na parte mais pobre do bairro, os moradores estão mobilizados e planejam um protesto para exigir a aprovação do projeto pela Câmara.

Modelo para parte das habitações sociais que substituirão as favelas e que serão construídas na área da Votorantim (ao centro da imagem) e para a reforma do Cingapura Madeirite (prédios com telhados)  - Divulgação/Votorantim S.A. - Divulgação/Votorantim S.A.
Modelo de como ficarão os prédios de apartamentos do PIU com equipamentos públicos no térreo e o Cingapura Madeirite reformado
Imagem: Divulgação/Votorantim S.A.

Mesmos nomes, objetivos opostos

Duas pessoas de nome Carlos Alexandre representam os interesses em disputa.

  • Carlos Alexandre Beraldo: pedreiro, 38, conhecido como Xandão, líder da Associação dos Moradores do Ceasa desde 2012;
  • Carlos Alexandre de Oliveira: administrador, 49, nascido em Campo Grande (MS), diretor de relações governamentais da AVL;
Xandão é de uma família que vive em favelas da região há três gerações. A avó dele, dona Elzira, foi uma das fundadoras da favela da Linha, em 1956, criada por ex-moradores da favela do Lixão, que existia onde é hoje o parque Villa Lobos. A favela do Nove surge em 1974. Já a favela do Sapo, em 1980, foi transformada no Cingapura Madeirite, em 2000.

Interior da favela do Nove, ao lado da Ceagesp, erguida onde deveria haver uma rua, sofre com problemas de esgoto, iluminação clandestina e enchentes - Marcelo Oliveira/UOL - Marcelo Oliveira/UOL
Interior da favela do Nove, ao lado da Ceagesp, erguida onde deveria haver uma rua, sofre com problemas de esgoto, iluminação clandestina e enchentes
Imagem: Marcelo Oliveira/UOL

O UOL percorreu a favela do Nove de ponta a ponta. A comunidade foi construída sobre um local onde deveria haver uma rua. A favela começa na rua professor Ariovaldo Silva, com casas de alvenaria e distância razoável entre as construções improvisadas. Ao longo do caminho, a distância entre as casas vai se afunilando, e surgem vários barracos de madeira.

O cheiro de esgoto é forte. As instalações elétricas são gambiarras. A reportagem subiu em dois prédios do Cingapura e os revestimentos despencavam das paredes. Boa parte das áreas condominiais e garagens do residencial estão tomadas por casas e comércios irregulares. Das áreas comuns do conjunto sobrou apenas um pátio, onde brincam as crianças. A rua em frente tem uma "cracolândia".

Para Xandão, o PIU representa "não só moradia, mas educação, trabalho, lazer e dignidade".

Não venham nos tirar o direito à dignidade. Nós temos tanto direito a morar aqui quanto eles
Carlos Alexandre Beraldo, o Xandão, líder da Associação dos Moradores do Ceasa

Apartamentos e equipamentos públicos

Metade das 800 unidades previstas no PIU deverá ser erguida na área da Votorantim e a outra metade, onde hoje é a garagem de ônibus desativada.

Pelo projeto, uma vez aprovado o PIU na Câmara, será realizado um leilão. Caberá à empresa ganhadora construir nove equipamentos públicos na região, entre eles uma unidade básica de saúde e um centro de capacitação profissional. A companhia administrará os prédios residenciais e cuidará da manutenção deles por cinco anos.

A empresa vencedora desembolsará um total de R$ 133 milhões no PIU. Em troca, receberá milhões de reais em descontos nos impostos para construir ao longo de anos em terrenos da região.

Porém, o UOL apurou que, por conta dessa discussão e da demora para o projeto ser pautado para votação no plenário na Câmara, a Votorantim pensa em abandonar a proposta e iniciar a construção apenas de empreendimentos privados em seu terreno.

Votorantim beneficiada?

Oliveira, da AVL, nega que a disputa sobre o PIU seja entre ricos e pobres. "A questão é econômica", afirma. "Atribuir o problema do PIU Leopoldina a uma mera luta de classes é uma análise rasa do que está verdadeiramente por trás."

É inegável que as comunidades precisam de melhorias, mas o que me estranha é a prefeitura dar um desconto de R$ 346 milhões e um terreno para a Votorantim
Carlos Alexandre de Oliveira, diretor da AVL

Segundo Oliveira, além do desconto de R$ 346 milhões (valor nominal) em outorga onerosa (desconto de imposto) para a Votorantim, a prefeitura também vai ceder um terço de um terreno avaliado em R$ 40 milhões.

"Tudo isto para retirar os moradores de um terreno já demarcado para reurbanização, a fim de que os proponentes (Votorantim e outros) possam erguer no local os condomínios de luxo. Com o que sobra de impostos a pagar, serão construídas moradias populares fora do perímetro original, ou seja, também com dinheiro de impostos sendo utilizado para 'resolver' o problema das favelas localizadas em terreno valioso", afirma.

"Se atualizarmos os valores dos impostos, o prejuízo ao erário poderá chegar a R$ 1 bilhão aos cofres públicos, dinheiro que daria para construir 60 mil casas populares (referência Programa Nossa Casa Preço Social)" argumenta.

Oliveira diz ainda que a "AVL não é contra a moradia popular". "O terreno das comunidades fora demarcado no PDE como ZEIS1 já prevendo a reurbanização no próprio local onde residem há mais de 50 anos e constituíram todo o seu tecido social. Utilizar outra ZEIS suprimindo a existente tira a oportunidade de mais outras famílias carentes residirem no terreno da CMTC."

Em vídeo publicado na página da AVL no Facebook, a associação defende que o terreno da garagem não seja usado para moradia e propõe que as habitações populares sejam construídas ao lado da Ceagesp.

Oliveira também é a favor que os vizinhos morem em prédios sem elevadores, como no Cingapura. Para ele, os edifícios deveriam ser mais simples porque, como seus habitantes têm rendas de até três salários mínimos, o pagamento da manutenção dos elevadores poderá pesar no orçamento.

Todas as considerações da AVL teriam sido enviadas num dossiê para o prefeito Bruno Covas (PSDB), segundo Oliveira.

Um terceiro grupo, o Movimento Vila Leopoldina para Todos, que afirma representar 2.500 famílias, afirma ser a favor do projeto, mas contra o "enorme benefício econômico" para a iniciativa privada. A entidade afirmou, em nota, ter apresentado várias sugestões ao PIU, especialmente para que a Votorantim pague mais contrapartidas.

A aposta do movimento está em uma tramitação tradicional do PIU na Câmara, com discussão em cada uma das três comissões que faltam. "Sensibilizamos importantes parlamentares", diz a nota.

Prioridade do Executivo

O secretário de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, Fernando Chucre, diz que o PIU Vila Leopoldina é um projeto prioritário da gestão Bruno Covas (PSDB).

O PIU é bom para todo mundo, mas, infelizmente, algumas pessoas têm uma visão de 'não no meu quintal'
Fernando Chucre, secretário de Desenvolvimento Urbano de São Paulo

Segundo a Votorantim, o PIU está com o cronograma atrasado e deveria ter sido aprovado em dezembro passado.

Existe tanto do nosso lado, quanto das comunidades, uma frustração com o fator tempo
Benjamin Citron, diretor de investimentos imobiliários da Votorantim S.A.

O vereador Fabio Riva (PSDB), líder do governo Covas na Câmara de Vereadores, afirma que a meta do governo é aprovar o PIU ainda no primeiro semestre. Riva foi o relator do projeto do PIU na Comissão de Urbanismo e autor do substitutivo atualmente em análise na Câmara.

O que há é hipocrisia. O pobre pode trabalhar na casa do rico, como muita gente das favelas do Nove e da Linha trabalha, mas morar perto, não
Fabio Riva, vereador

Conjunto Habitacional Jardim Edite, construído na Operação Urbana Água Espraiada, substituindo favela, é modelo arquitetônico para a intervenção na zona oeste - Divulgação/Prefeitura de São Paulo - Divulgação/Prefeitura de São Paulo
Conjunto Habitacional Jardim Edite, construído na Operação Urbana Água Espraiada, substituindo favela, é modelo arquitetônico para a intervenção na zona oeste
Imagem: Divulgação/Prefeitura de São Paulo

Riva ressalta que o projeto tem como modelo o residencial Jardim Edite, no Brooklin, construído na Operação Urbana Água Espraiada para substituir a favela de mesmo nome, e que não foge muito das características do restante do bairro.

Procurado, o presidente da Câmara de Vereadores, Eduardo Tuma (PSDB) disse, em nota, que o projeto seguirá em tramitação normal na Câmara.

A expectativa no mercado imobiliário —em caso de o PIU ser aprovado e a Ceagesp, removida— é que reurbanização inicie um processo de mudanças que movimente até R$ 5 bilhões.