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"Casa da Morte", local de tortura na ditadura, abrigou antes espião nazista

Imóvel em Petrópolis (RJ), que foi centro de tortura na ditadura militar, pertenceu a espião nazista - Carolina Serpejante/UOL TAB
Imóvel em Petrópolis (RJ), que foi centro de tortura na ditadura militar, pertenceu a espião nazista Imagem: Carolina Serpejante/UOL TAB

Vinicius Konchinski

Colaboração para o UOL, em Curitiba

08/02/2020 04h03

O sobrado da rua Arthur Barbosa, em Petrópolis (RJ), é um local-chave para a história da ditadura militar. Conhecido como a "Casa da Morte", o imóvel foi um centro de tortura de presos políticos durante a década de 1970.

Antes de servir ao regime militar, porém, o endereço foi usado por nazistas que atuaram no Brasil durante a 2ª Guerra Mundial. Isso é o que aponta um estudo que contou com a participação de um pesquisador sênior da CNV (Comissão Nacional da Verdade), o historiador Eduardo Schnorr.

De acordo com a pesquisa, que durou dois anos, o terreno onde foi construída a "Casa da Morte" pertenceu ao alemão Ricardo Lodders, preso por suspeitas de espionagem durante a guerra. Na área, existe uma outra casa, também de propriedade de Lodders. Nela, foram apreendidos um transmissor de rádio, além de material relacionado pela polícia à comunicação de espiões.

"O terreno onde fica a 'Casa da Morte' é alto, num local isolado. Serviu perfeitamente como ponto de comunicação para a rede de espiões nazistas que atou no Brasil durante a 2ª Guerra", disse Schnorr, em entrevista ao UOL.

Dono da casa fichado como agente nazista

A historiadora Fernanda Vinagre Ferreira também trabalhou no estudo sobre o passado nazista da "Casa da Morte" e deparou-se com uma série de documentos da década de 1940 sobre Lodders.

No Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, um relatório sobre atividades nazistas no Brasil cita o imigrante. "Alemão Nazista. Oficial do exército alemão destacado no Brasil como orientador da milícia integralista", diz o documento.

Um relatório do Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) do Rio de Janeiro disponível no mesmo arquivo também relaciona Lodders ao partido alemão.

"São vários os indícios de que Lodders colaborava com os nazistas", complementou a historiadora Rachel Wider, que integrou a Comissão Municipal da Verdade de Petrópolis e a equipe de pesquisadores que levantou a história pré-ditadura militar da "Casa da Morte".

Wider disse que Lodders foi preso pelo menos duas vezes durante a 2ª Guerra Mundial por suspeitas de espionagem. Apresentava-se como um discreto corretor de câmbio. Contudo, dava expediente na embaixada da Alemanha, que ficava no Rio, e foi cônsul honorário do país no Brasil.

Petrópolis abrigou nazistas na 2ª Guerra

Wider mora em Petrópolis. Ela disse que a cidade tem uma história marcada pela imigração alemã e simpatia ao nazismo. Segundo ela, não é uma coincidência que Lodders e uma rede de espionagem alemã tenham atuado ali.

"Quando tinha 16 anos, uma professora me contou que conheceu rapazes que saíram de Petrópolis para lutar na guerra ao lado de Hitler", contou. "Há fotos antigas de pessoas em Petrópolis comemorando o aniversário de Hitler."

A cidade teve uma unidade do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Em 1933, ela tinha 410 filiados.

Em 1937, o governo brasileiro proibiu a atuação de partidos e organizações estrangeiras no país. Apesar disso, nazistas continuaram mobilizados para apoiar a Alemanha em Petrópolis, o que facilitava o trabalho de espiões. "Os simpatizantes os protegiam da polícia", disse a pesquisadora.

Imagem de reunião nazista no Teatro Petrópolis divulgada em jornal dos anos 1930 - Arquivo do Museu Imperial/IHP - Arquivo do Museu Imperial/IHP
Imagem de reunião nazista no Teatro Petrópolis divulgada em jornal dos anos 1930
Imagem: Arquivo do Museu Imperial/IHP
Nazismo inspirou ditadura na caça a comunistas, diz pesquisador

Eduardo Schnorr explicou que a perseguição aos nazistas no Brasil acabou com o fim da 2ª Guerra. Lodders foi solto após o fim do conflito e recuperou os direitos sobre seu imóvel de Petrópolis.

Naquela época, segundo Schnorr, a Guerra Fria ganhava força. O comunismo passou a ser visto como uma ameaça no Brasil. Isso serviu de pretexto para o Golpe de 1964 e fez com que membros das Forças Armadas revisitassem táticas nazistas de combate a "inimigos internos".

"A violência e perseguição de comunistas na ditadura remete ao nazismo, que também se opôs ao comunismo", disse o pesquisador. "Quando a ditadura resolveu perseguir seus inimigos, acabou recorrendo a quem já tinha conhecimento nessa área, os nazistas."

Por conta dessa aproximação, Mario Lodders, filho de Ricardo Lodders, cedeu a "Casa da Morte" ao regime militar no início da década de 1970. Naquela época, Ricardo já havia falecido. Mario emprestou o sobrado, mas manteve a posse da segunda casa do terreno, a mais antiga. O herdeiro, aliás, frequentou a "Casa da Morte", fato que despertou o interesse de Schnorr.

"Num depoimento, Inês Etienne Romeu [ex-militante] disse que Mario Lodders lhe ofereceu chocolate enquanto ela estava presa na 'Casa da Morte'. Pensei: não é qualquer pessoa que entra num centro secreto de tortura", contou Schnorr. "Resolvi pesquisar quem era Mario Lodders e acabei me deparando com a história de seu pai, Ricardo."

Tortura e morte no sobrado

Inês Etienne Romeu foi a única presa política da "Casa da Morte" a deixar o local viva. Ela permaneceu detida pela ditadura até 1979. Naquele mesmo ano, denunciou à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) as sessões de tortura e as mortes ocorridas no local.

"Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. Estavam praticando o mais puro sadismo", disse ela, que morreu em 2015.

No ano anterior, o coronel reformado Paulo Malhães falou à Comissão Estadual da Verdade do Rio sobre a "Casa da Morte". Ele foi encontrado morto em sua casa meses após seu depoimento.

"Nós queríamos um lugar que fosse tranquilo, que fosse calmo. E a casa de Petrópolis era o ideal. Atrás tinha um alemão", lembrou. "Ele tinha um relacionamento maravilhoso com a gente."

A Prefeitura de Petrópolis busca o tombamento do imóvel por sua importância histórica. A família que hoje detém a propriedade do local é contra. No final do ano passado, conseguiu anular o tombamento.

Segundo pesquisadores, Ricardo Lodders teve dois filhos. Ambos também já faleceram e não deixaram herdeiros. O UOL não encontrou ninguém da família Lodders para comentar a ligação de Ricardo Lodders com o nazismo.

A Embaixada da Alemanha no Brasil disse não manter arquivos da época da 2ª Guerra Mundial. Com essa justificativa, não comentou a relação de Lodders com o consulado do país no Brasil.