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"Estou vivendo uma história de amor por causa do câncer", conta Dimenstein

Juliana Linhares

Colaboração para o UOL, em São Paulo

13/03/2020 12h43Atualizada em 29/05/2020 11h13

Na boca de um escritor, as passagens mais pavorosas da vida podem virar episódios mágicos, extraordinários e, se ele seguir a tradição dos judeus de pena autodepreciativa, também galhofeiros.

É dessa linhagem a entrevista que o jornalista e escritor Gilberto Dimenstein dá ao UOL para falar sobre um tumor grave, de pâncreas com metástase no fígado, que ele descobriu há sete meses. Ele faleceu nesta sexta-feira, 29 de maio.

"O câncer me deu uma história de amor", "a quimio me causou uma prisão de ventre que parecia que tinham me enfiado um milho, e sem aquela manteiguinha" e "exagerei no canabidiol e dormi com a cara no prato de lasanha" são algumas das frases que Dimenstein, 63, com uma passagem de 28 anos pela pela Folha de S.Paulo, outras pela Veja e CBN; também fundador do site Catraca Livre e autor de 13 livros, usa para falar de sua doença.

Os tratamentos não andam adiantando, o sexo acabou, ele conta que teve uma sensação de morte --e ela não foi ruim --, mas que, diante da desgraceira, decidiu abrir as orelhas para os passarinhos do quintal de sua casa, fazer um curioso uso da raiva que diz sentir de Bolsonaro, dormir a noite toda agarrado à mulher e, com ela, a também jornalista Anna Penido, escrever o livro Os Melhores Dias da Minha Vida - Lições de um câncer, a ser lançado até julho.

"Estou fazendo uma auto reportagem. E a Anna, além de escrever, é também minha ombudsman. Às vezes conto algo sobre a doença e ela diz, 'Gilberto, não, isso é mentira'".

Diante de uma primavera rosa no jardim, que o jornalista pode ver de seu quarto, ele concedeu esta entrevista, disponível na íntegra no YouTube e nos podcasts do UOL.

A experiência de estar com câncer, além de ser horrorosa, pode, sob algum ponto de vista, também ser sublime?
É inevitável chegar perto da morte e não entrar na dimensão do sublime. Essa foi a grande descoberta da minha vida. Desde que eu sou muito menino, tenho três distúrbios psiquiátricos, ansiedade, hiperatividade e déficit de atenção.

A vida pra mim era a jato. Eu podia estar no melhor concerto do mundo, que ouvia um quinto dele. Enquanto lia um livro sensacional, já queria ir para outro. Eu não bebia civilizadamente; me empanturrava de uísque.

A existência pra mim era ansiosa, e no futuro. O câncer me faz viver no presente.

Pode dar exemplos dessa mudança?
Eu sinto o cheiro da manga do meu quintal agora. Gosto do vento que bate na sola do meu pé quando a janela do quarto está aberta. Meu neto dorme em casa, no quarto ao lado ao meu, e embalo ouvindo as historinhas que minha mulher conta pra ele.

Você precisou se dispor a sentir esses prazeres, imagino; porque ter câncer é muito duro.
Claro que sim. Estou com uma sensação de última chance e por isso estou me entregando. A vida de quem descobre um câncer vira um inferno. Acorda, passa o dia fazendo exame, fica naqueles tubos, pensa que vai morrer o tempo todo. Eu escolhi ter essa experiência de outro jeito.

Estou vivendo uma história de amor, por causa do câncer, com a minha mulher. A mulher com quem eu vivo há vinte anos. Nunca tive com ela a intimidade que tenho agora.

Meu corpo está se deteriorando. Faço sons horrorosos. Não controlo a urina. E, com tudo isso, só agora é que durmo a noite toda abraçado com ela. E é por isso que estou escrevendo, com a Anna, o livro Os Melhores Dias da Minha Vida - Lições do Câncer. Ele é uma história de amor a ela e à vida.

Gilberto Dimenstein concede entrevista ao UOL em sua casa, na Vila Madelena, São Paulo - Edu Cavalcanti/UOL - Edu Cavalcanti/UOL
Dimenstein conta que fez cirurgia espiritual acompanhada por rede de quase 6 mil amigos. Uma hora depois, sentiu-se tão elétrico que teve uma ereção -- a única em 7 meses
Imagem: Edu Cavalcanti/UOL
O nome do livro não pode soar hipócrita?
Pode. Mas não é. E eu nem sei se vou vê-lo pronto. A verdade é que eu estou entregue aos afetos. Tanto, que mesmo confiando na ciência, abri espaço para outras experiências. Veio um médico espírita em casa fazer uma cirurgia em mim. A Anna criou uma rede social para entrar no ar só na hora que operação começasse, às 11 da noite. Tinha gente da Europa, dos Estados Unidos, daqui, da umbanda, do judaísmo. Eram quase seis mil pessoas pensando em mim naquela mesma hora. Eu não senti nada durante a operação. Mas passada uma hora, juro, fiquei elétrico. A força era tão grande que eu tive uma ereção. A única nesses sete meses de tratamento.

A libido acabou?
Total. Eu nem penso em sexo. Uma pena. Esses dias, revi Dona Flor e Seus Dois Maridos, um filme super erótico e com a Sônia Braga no auge.

Quando passavam as cenas de sexo era como se eu estivesse vendo um documentário sobre as abelhas da África do Sul.

Sou da geração das piadas de brocha. Fui muito canalha com mulher. E também como jornalista. Por muito tempo meu combo foi uísque, putaria e boemia. Perdi esse pedaço da masculinidade, e o amor da Anna é que faz com que eu não me sinta rejeitado.

Como vários pacientes com câncer, você tem usado o canabidiol, composto extraído da planta da maconha, para aliviar males da doença. Do ponto de vista das sensações, quais as diferenças entre o remédio e um baseado?
Eu não fumo maconha; mas das vezes que fumei, tive taquicardia, foi ruim. O canabidiol me tira os enjoos, os pesadelos e me faz dormir. No primeiro dia, exagerei na dose -- são só oito gotas embaixo da língua -- e apaguei com a cara no prato de lasanha.

Algumas mulheres grávidas e também pessoas em luto sentem que o raciocínio fica difícil, esquecem datas, derrubam objetos. A cognição é afetada porque a concentração está voltada para o bebê ou para aguentar a dor. Você também sente isso?
Sim. Às vezes levanto da cama, ponho a calça e a cueca e elas ficam no meio da perna porque estou pensando na morte da bezerra. Acho que é sexta e é segunda. Não consigo repetir os nomes dos remédios que eu tomo. Me sinto meio decrépito. E isso é o que mais me dói.

E o que te traz energia?
A raiva profunda que eu tenho do Bolsonaro e do Trump. Eu fico louco quando ouço as besteiras do Bolsonaro. Mas a raiva é movedora. Vou pro Twitter, escrevo contra eles e me sinto vivo.

Além dos efeitos visíveis, o que mais a quimioterapia fez no seu corpo?
Estou Brazilian wax. Nada também de pelo nas pernas e no peito. E meu cheiro mudou.

Outro dia, na cama, comecei a sentir um odor tão ruim, que tive enjoo. Fiquei procurando o que era e descobri que era da minha mão. Escondi ela embaixo do edredom. Eu não sinto o gosto das comidas. Só sei deles por causa da memória. Mas têm coisas muito piores.

A quimo dá prisão de ventre. Eu tive uma tão horrível, que precisei ir pro hospital. Parecia que tinha um milho enfiado no meu ânus. E sem aquela manteiguinha. O maluco é que essa prisão de ventre me deu ao mesmo tempo umas das sensações físicas mais horripilantes e mais prazerosas da vida. Porque quando eles me enfiaram um tubo, cheio de glicerina, e tudo foi se esvaindo? Ah, que surpresa maravilhosa.

Gilberto Dimenstein concede entrevista ao UOL em sua casa, na Vila Madelena, São Paulo - Edu Cavalcanti/UOL - Edu Cavalcanti/UOL
"Um dia tive uma sensação de proximidade com a morte. Comecei a sentir um cansaço, um cansaço, sentia que estava indo, que estava saindo..."
Imagem: Edu Cavalcanti/UOL

Você acha que vai sobreviver ou que vai morrer?
Depende da hora. Tem hora que eu sinto uma força maior me levando. Mas a maior parte do tempo, especialmente quando aparece um medicamento novo, eu penso: Agora vai dar certo, agora vai dar certo. Eu estou otimista, viu.

Já chegou pertinho de morrer?
Não. Mas um dia tive uma sensação de proximidade com a morte. Foi quando eu fiz quimio e estava tomando junto um antibiótico para pneumonia. Comecei a sentir um cansaço, um cansaço, um cansaço, sentia que estava indo, que estava saindo.

Foi ruim ou foi bom?
É bom. É uma sensação de liberdade.

Tumor de pâncreas costuma aparecer em pessoas diabéticas, fumantes e obesas. Você não é nada disso. O que os médicos dizem?
Eu sou um péssimo caso de educação contra esse câncer. Faço musculação, ando de bicicleta, não bebo há seis anos, não fumo, não uso droga. Devia ter uma saúde de vaca premiada. Os médicos dizem que esse câncer era coisa de gente com 80 anos, e que agora estão vendo uma epidemia em pessoas mais jovens, como eu. Eles acham que tem a ver com o estresse da vida moderna.

O seu caso é grave?
É. Eu retirei um tumor do pâncreas, que estava muito no início, e achei que estava curado. Três semanas depois, soube que estava com metástase no fígado. Fiz quimioterapia, mas o câncer só cresceu. Tentei um segundo tipo de quimio, e também não adiantou. Agora, estou passando por um tratamento que é novo e mais radical. Por meio de um catéter cheio de esponjinhas embebidas na quimio, o médico tampa a entrada da veia que leva oxigênio para o meu fígado. É o oxigênio que alimenta o câncer. Sem ele, o câncer morre de fome. Fiz a primeira etapa dessa operação na semana passada. Daqui 15 dias, vou fazer a segunda. E em um mês fico sabendo se deu certo.

Por que você pediu desculpas públicas para o Marcelo Tas?
Eu sei que eu vou viver mas não queria ir embora sem falar: Fiz um cagada com você, meu. Gosto muito do Tas. Fizemos projetos juntos. Meses atrás, sei lá o que me deu, acho que a dose do antidepressivo estava baixa, e eu escrevi no Twitter que o Tas tinha virado um miliciano digital. Puta sacanagem. Na semana passada, pedi desculpa. Primeiro, pelo WhatsApp. Mas achei que era covarde atacá-lo publicamente e só me desculpar pessoalmente. Então, voltei no Twitter e falei de novo. O câncer me fez subir no meu conceito, viu? Só não sei se outras desculpas virão, porque se entrar na parte feminina vai dar muito trabalho.