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Do bom humor ao desespero: Ambulantes tentam se adaptar ao covid-19 na BA

Os irmãos Jadson e Jonas Araújo usam máscaras de carpinteiro e luvas de borracha no metrô de Salvador - Aurélio Nunes / UOL
Os irmãos Jadson e Jonas Araújo usam máscaras de carpinteiro e luvas de borracha no metrô de Salvador Imagem: Aurélio Nunes / UOL

Aurélio Nunes

Colaboração para o UOL, em Salvador

20/03/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Salvador vive situação de emergência, decretada na última quarta-feira pelo prefeito ACM Neto (DEM), por conta do novo coronavírus
  • A queda vertiginosa no movimento de pedestres teve impacto imediato sobre o comércio, segundo os vendedores
  • Conforme dados divulgados em novembro de 2019 pelo IBGE, 4 em cada 10 trabalhadores soteropolitanos estavam na informalidade (40,3%)
  • A situação deve piorar a partir de sábado, com a suspensão das atividades dos shoppings de Salvador e a proibição de transporte intermunicipal

"Olha a água a um real: mata a sede e mata o vírus!" O bem-humorado bordão do vendedor de água mineral Jadson Nunes, 20, contrasta com o clima de apreensão demonstrado pelos ambulantes que trabalham na Rua Coqueiro da Piedade, uma espécie de camelódromo situado na saída da Estação da Lapa, região central de Salvador.

A cidade vive situação de emergência, decretada na última quarta-feira pelo prefeito ACM Neto (DEM). As aulas nas redes municipal, estadual e privada de ensino foram suspensas, em medida tomada por ACM Neto e pelo governador da Bahia, Rui Costa (PT), para combater a disseminação do novo coronavírus e a doença covid-19.

A Lapa era um reflexo daquele que é conhecido como o ponto de maior circulação de pessoas da capital baiana. A queda vertiginosa no movimento de pedestres teve impacto imediato sobre o comércio, segundo os vendedores. A ausência de perspectiva de recuperação, antes do período de restrição social — que é de 15 dias pelo decreto municipal e de um mês para o estadual —, contribuiu para tornar o clima ainda mais pesado.

"Não sei como vou sustentar minha família se continuar desse jeito", reclamou Maria José de Araújo Almeida, 48, que mantém o filho e a nora, desempregados, além de duas netas menores de idade, com o dinheiro das vendas de conjuntos de meias e bolsas. "Eu vendia de 25 a 30 conjuntos por dia. Ontem vendi um", disse.

A poucos metro dali, o próprio Jadson confirmava o clima de bancarrota reinante entre os colegas de ofício: "Eu vendia 120 garrafas d'água por dia; hoje não vendo 40".

Informalidade

Conforme dados divulgados em novembro de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 4 em cada 10 trabalhadores soteropolitanos estavam na informalidade (40,3%) — o equivalente a 587 mil pessoas atuando como empregados sem carteira assinada, empregadores que não contribuem para a Previdência ou trabalhadores por conta própria, que é o caso dos ambulantes.

Marcos Vinícius Silva Cruz, 26, costuma vender 10 garrafas de café por dia na Estação da Lapa, entre 5h30 e 9 horas. "Já são 10h e ainda tenho três garrafas cheias", lamentou. "Faturei R$ 30, e só volto para casa quando atingir a minha meta diária, que é de R$ 50."

José Fernando dos Santos, 51, diz que desde o início da semana passou a vender no máximo 10 necessaires por dia — antes vendia de 25 a 30. "A tendência é piorar", prevê. "No final de semana vou comprar água e cerveja para vender na praia para conseguir pagar o aluguel."

O temor de José Fernando deve se confirmar a partir deste sábado, com a suspensão das atividades dos shoppings de Salvador e a proibição de transporte intermunicipal envolvendo as cidades com casos confirmados de coronavírus: Salvador, Feira de Santana, Porto Seguro e Prado.

Os mais novos pacotes de medidas anunciados pelos executivos municipal e estadual atingem em cheio algumas das maiores fontes de sobrevivência do comércio ambulante de Salvador. "O que está segurando a gente aqui são os pedidos do pessoal que trabalha no shopping aqui perto. Se eles pararem, talvez a gente também tenha de parar", declarou José Milton Costa Souza, 43, que mantém uma barraca que vende sanduíches na passarela que liga a Rodoviária ao Shopping da Bahia.

Não existe acordo sobre o percentual de queda no faturamento do comércio ambulante, uma vez que cada um contabiliza os prejuízos à sua maneira. Alguns até mesmo negam a crise. "Para mim, se tiver aula não faz a menor diferença. Estudante é tudo duro e não compra nada na minha mão. Vendo 10 caixas de banana todo dia e, se Deus me permitir, vou vender as mesmas 10 caixas de banana hoje", disse uma vendedora, que preferiu não se identificar.

Mas, a poucos metros dali, uma concorrente negava essa realidade. "As pessoas estão com medo de se cumprimentar, quanto mais de comprar", disse Maria da Penha Santos, que passou a vender apenas uma das três caixas de banana diárias de costume. Ela associa o problema não só à queda do movimento, mas ao aumento dos preços.

Inflação

Adriano Jesus dos Santos, 39, trabalha no mercado de frutas há 16 anos e confirma que a caixa de acerola subiu de R$ 50 para R$ 80, a de laranja passou de R$ 20 para R$ 40, e a de banana, de R$ 60 pra R$ 85. "Só a greve dos caminhoneiros fez esse estrago. Essa crise é ainda pior, porque, além do prejuízo, a gente ainda trabalha com medo", comentou.

A ambulante Mariane de jesus Santos atende o professor universitário Arnaldo Bispo na Estação Rodoviária - Aurélio Nunes / UOL - Aurélio Nunes / UOL
A ambulante Mariane de jesus Santos atende o professor universitário Arnaldo Bispo na Estação Rodoviária
Imagem: Aurélio Nunes / UOL
O medo está estampado no rosto de Mariane Jesus Santos, vendedora de acessórios para celulares. Ela passou a trabalhar de máscara para proteger as filhas Mireli e Micaeli -- uma tem 9 anos, e a outra, 1 -- dos perigos que o inevitável contato com o público pode proporcionar. "Depois que uma cliente espirrou na minha frente, eu só trabalho assim."

"Medo? Medo eu tenho de passar fome", rebate o vendedor de picolés Antonio Luis Santos Cerqueira, 54. "Em 30 anos que eu trabalho na Lapa nunca vi uma coisa dessas", atesta.

Ele já vinha sentindo os efeitos da pandemia nas vendas desde a última segunda-feira, mas previu que a quarta-feira seria ainda pior ao notar que o trajeto que costuma fazer de sua casa, em Paripe, até a Lapa foi abreviado em 20 minutos. "O ônibus estava vazio, o trânsito livre. Para nós, isso é um mau sinal".

Carlos Augusto conceição dos Santos vende sonhos com álcool gel na passarela da Estação Rodoviária - Aurélio Nunes / UOL - Aurélio Nunes / UOL
Carlos Augusto conceição dos Santos vende sonhos com álcool gel na passarela da Estação Rodoviária
Imagem: Aurélio Nunes / UOL

Máscaras de carpinteiro e álcool gel

O clima de terra arrasada da Lapa era igualmente compartilhado por ambulantes dos terminais de ônibus da rodoviária e do aeroporto. A diferença foi a saída encontrada por eles para contornar a situação.

No aeroporto, um vendedor que se identificou apenas como Nei resolveu inovar vendendo máscaras de carpinteiro a R$ 5 cada. Ele não conseguiu convencer nenhum passageiro da linha Lauro de Feitas-Madre de Deus com um discurso sobre a eficácia de seu produto na prevenção contra o novo coronavírus, mas afirmou que já tinha vendido mais de 30 em três horas de trabalho.

Máscaras idênticas às que os irmãos Jadson e Jonas Araújo adquiriram por R$ 3 numa loja de material de construção. A combinação das máscaras com as luvas de borracha azuis destacavam a dupla em meio aos passageiros da linha Aeroporto-Acesso Norte do Metrô. "Sou tosador de pets e trabalho a domicílio. Tenho duas filhas e preciso me precaver para não levar esse vírus pra casa", justifica Jadson, de 28 anos.

Na Rodoviária, a nova onda do comércio ambulante é o álcool gel. Ao lado de dois sócios, Anselmo Souza, 31, negociava frascos de 100 ml do produto a R$ 5. "Já vendi carteira, caça-palavras e descascador de legumes, mas álcool gel é a primeira vez. Comprei 500 frascos e espero vender tudo hoje", disse.

Bem ao seu lado, na passarela da Rodoviária, o vendedor de sonhos Carlos Augusto Conceição dos Santos usava o álcool gel como um diferencial de atendimento. Por um real, seus clientes tinham direito a uma borrifada do produto saneante nas mãos antes de receber um sonho recheado de goiabada. "Eu só trabalho assim: aqui é higiene total."