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"Consciência negra da PM é matar", diz zelador baleado e preso injustamente

Marcelo Monteiro Silva, 46, ao lado da mulher, Cirlene Maria da Conceição, 40 - Arquivo Pessoal
Marcelo Monteiro Silva, 46, ao lado da mulher, Cirlene Maria da Conceição, 40 Imagem: Arquivo Pessoal

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

22/11/2020 04h00

O zelador Marcelo Monteiro Silva, 46, e seu filho, Abraão de Araújo Silva, 21, foram baleados e detidos por policiais miliares em julho deste ano, na favela do Sapé, no Butantã, zona oeste de São Paulo, mesmo sem terem cometido qualquer tipo de crime. Eles dizem que sofreram violência física e moral por estarem no lugar errado, na hora errada e ter a cor negra, a mais violentada do Brasil.

Os dois estavam em frente a uma casa onde era realizada uma festa de aniversário dentro da favela. Na ocasião, motoqueiros que estavam fugindo de PMs -também de moto- desde a avenida Politécnica entraram na favela. Durante a perseguição, um dos policiais caiu. Esse PM atirou nas pernas de Marcelo e de Abraão.

A versão policial, de que os PMs atiraram apenas para se defender de uma tentativa de roubo da arma deles, não avançou. "Não tem sentido eu tentar pegar a arma com minha esposa, filho, neto no lugar. Tenho 9 anos de carteira assinada nesse serviço de zelador. Pega a arma de um policial pra quê?", questionou Silva ao UOL quatro meses após o incidente.

Na manhã do dia seguinte ao caso, a Justiça deferiu prisão temporária de Marcelo. Na noite do mesmo dia, após reportagem do UOL demonstrar que havia vídeos que contradiziam a versão policial, a prisão foi indeferida. Apesar disso, ele permaneceu 14 dias internado para tratar o ferimento causado pelo policial.

"Quando eles foram atrás dos meninos e não pegaram, voltaram bem revoltados, dando tiro, derrubando todas as motos no chão. Um rapaz do meu lado começou a filmar a ação deles. Quando o menino filmou ele, ele foi para cima do menino, tomou o celular do rapaz. Nessa hora, apareci e perguntei o que tava fazendo aqui. Ele falou que ninguém na comunidade presta, que só tinha rato, mandou eu ir embora e atirou em mim", afirmou o zelador à reportagem.

De acordo com moradores, após o zelador ter sido baleado, o filho, Abraão, tentou filmar a ação do policial militar. Os moradores disseram que o policial mandou ele parar de gravar e entregar o celular, mas o jovem se recusou. Ao dar as costas para o policial e fazer menção de correr, Abraão foi baleado na perna. O PM pegou o aparelho que continha as imagens e jogou fora, em um rio, ainda de acordo com os moradores.

Ao relembrar a morte de João Alberto Silveira Freitas, 40, na quinta-feira (19), em Porto Alegre, que repercutiu em todo o Brasil, o zelador Marcelo desabafa: "Quando eu vi o que aconteceu em Porto Alegre, pensei: Se aqui não tivesse muita gente, como lá não tinha ninguém, ele ia fazer aquilo ou pior, o que ele ficou com medo, aqui, é que todo mundo tava filmando", disse.

Me senti no lugar do rapaz que morreu. Para te falar a verdade, a ira que o policial batia no rapaz lá é mesma ira que o daqui estava.
Zelador Marcelo Monteiro Silva

"A consciência negra da PM aqui de SP é matar os pretos. Infelizmente. Eles não têm consciência nenhuma. Tanto pelo que aconteceu quanto pelo que ouvi no hospital dos PMs, que ficavam falando que ninguém na comunidade presta. Infelizmente eu perdi a confiança que a gente podia ter na PM. 15 dias atrás eu encontrei o mesmo policial aqui na comunidade. Continua trabalhando, armado e mandando a gente entrar para dentro de casa", afirmou.

Posição da Secretaria da Segurança

À época do caso, a PM afirmou que "após perseguição, ao serem abordados, os mesmos começaram a gritar e a comunidade foi para cima da PM. Moradores tentaram tomar armamento dos policiais, houve disparos de arma de fogo. Os PMs pediram apoio, a polícia chegou, tentou fazer incursão na comunidade. Um disparo atingiu a viatura do comando da PM".

Em protesto, moradores incendiaram e depredaram ônibus na rodovia Raposo Tavares. A SSP (Secretaria da Segurança Pública) disse, à época, que, "além dos baleados, outras duas pessoas e dois policiais ficaram feridos. Os fatos também são analisados em inquérito policial militar instaurado pelo 23º batalhão e acompanhado pela Corregedoria da instituição".

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Procurada ontem, a SSP afirmou que um inquérito policial militar sobre os fatos foi instaurado e segue em andamento com o acompanhamento da Corregedoria da PM. "Em São Paulo, todos os casos de MDIP [morte decorrente de intervenção policial] são rigorosamente investigados pela Polícia Civil e pela PM, com acompanhamento das respectivas corregedorias, e comunicados ao Ministério Público. Se comprovada qualquer irregularidade, os envolvidos são punidos", disse a pasta.

Ainda de acordo com a secretaria, de janeiro a setembro deste ano, 126 policiais foram demitidos ou expulsos das instituições policiais do estado. Ainda segundo a SSP, "qualquer tipo de abordagem discriminatória por causa de cor não condiz com as diretrizes da instituição".

"Todos os policiais militares frequentam anualmente o EAP (Estágio de Aperfeiçoamento Profissional) de forma obrigatória. Nos cursos de formação, são contemplados temas como Polícia Comunitária, Direitos Humanos e Cidadania, Abordagem Policial e Gestão de Ocorrência", complementou a secretaria.

Consciência negra do governo de SP

Na noite de anteontem, o governador João Doria (PSDB) escreveu em suas redes sociais que lhe causou "repulsa e indignação o espancamento até a morte de um homem negro em Porto Alegre" e que "no Dia da Consciência Negra, estas cenas de racismo demonstram o quanto precisamos evoluir para termos uma sociedade mais justa e igualitária".

Policiais de São Paulo no primeiro semestre de 2020 mataram 514 pessoas em supostos tiroteios durante o serviço e também em folga, de acordo com a SSP (Secretaria da Segurança Pública). Trata-se do maior número da série histórica paulista. No mesmo período, 28 policiais civis e militares foram mortos violentamente.

Ouvidor das polícias Elizeu Soares é homenageado pelo governador João Doria - 20.nov.2020 - Divulgação - 20.nov.2020 - Divulgação
Ouvidor das polícias Elizeu Soares é homenageado pelo governador João Doria
Imagem: 20.nov.2020 - Divulgação

A média histórica dos mortos pela polícia no Brasil, de acordo com anuários divulgados pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), aponta que 80% dos mortos pela polícia no Brasil são negros. Em São Paulo, assim como governadores se negaram a reconhecer a existência e a evolução do PCC (Primeiro Comando da Capital), também estaria sendo negado, agora, a existência da violência policial em São Paulo, de acordo com especialistas.

Por meio de nota, a SSP afirmou que "cabe destacar que o efetivo da Polícia Militar do Estado de São Paulo é composto por 35% de negros e pardos - mesmo número que a média da população residente em São Paulo, de acordo com Censo de 2010" e que "ao longo dos últimos quatro meses (jun-set), o número de pessoas mortas em confronto com PMs em serviço vem caindo de maneira consistente".

"No período a redução chega a 19,6%, com 42 casos a menos em relação ao mesmo período do ano anterior. O compromisso das forças de segurança é com a vida, razão pela qual medidas para a redução de mortes são permanentemente estudadas e implementadas", acrescentou a pasta.

Ainda sobre o Dia da Consciência Negra, João Doria homenageou no Palácio dos Bandeirantes o ouvidor das polícias, Elizeu Soares, que é negro. O cargo de ouvidor tem, entre suas atribuições, pedir investigações de ações policiais em desacordo com as condutas adequadas. Na noite de 15 de novembro, Soares estava na sede do PSDB comemorando a ida de Bruno Covas (PSDB) ao segundo turno da disputa à Prefeitura de São Paulo.

Elizeu Soares substituiu na Ouvidoria o sociólogo Benedito Mariano, que havia sido escolhido por unanimidade na lista tríplice formada pela sociedade civil para continuar no cargo. Bem diferentemente, Doria nunca nem sequer recebeu Mariano para tratar de assuntos relacionados às polícias e à Ouvidoria.

Sobre a proximidade entre o ouvidor das polícias e políticos do PSDB, a Secretaria da Segurança Pública disse que "a atuação da Ouvidoria das Polícias, incluindo a escolha do ouvidor, é estabelecida pela Lei Complementar nº 826, de 20 de junho de 1997".