Topo

Racismo estrutural não é crime, mas deve ser debatido, dizem especialistas

João Alberto Silveira Freitas se aproxima de uma fiscal de roupa preta - Reprodução/ TV Globo
João Alberto Silveira Freitas se aproxima de uma fiscal de roupa preta Imagem: Reprodução/ TV Globo

Dilceia Norberto

Colaboração para o UOL, em São Paulo

12/12/2020 04h00

Racismo estrutural não é crime, mas precisa ser reconhecido e debatido pela sociedade brasileira, segundo juristas e ativistas ouvidos pelo UOL. Os comentários foram feitos depois que o racismo estrutural foi incluído como um dos fundamentos que embasaram a qualificante de motivo porte no indiciamento dos seis suspeitos de envolvimento na morte de João Alberto Silveira Freitas, 40, que foi espancado no supermercado Carrefour, em Porto Alegre, em 19 de novembro.

Para a delegada que investigou o caso, Roberta Bertoldo, embora ela não tenha comprovado racismo na ação dos envolvidos, foi o preconceito que conduziu as ações daquela noite e levou o caso ao desfecho trágico e chocante.

Conscientemente, ninguém se atribui detentor de preconceitos. Os discursos são de que o Brasil é um país que sempre acolheu múltiplas raças, possui uma vasta diversidade cultural, portanto, não pratica o preconceito. Em nosso âmago sabemos que é uma inverdade. Diariamente vemos gestos, olhares, expressões, atitudes, dos quais se infere a discriminação, em quaisquer de suas formas e pelas mais variadas razões."
Roberta Beroldo, delegada, no relatório de conclusão do inquérito

Segundo Irapuã Santana, doutor em Direito Processual pela UERJ, o racismo estrutural é um conceito sociológico, que mostra que a sociedade tem uma estrutura que subvaloriza e nega a natureza humana para os negros.

Na verdade, não existe um crime de racismo estrutural. Existem situações em que você consegue compreender e identificar que esse racismo estrutural está presente. Que foi basicamente o que aconteceu nesse caso. João Alberto foi espancado e assassinado, justamente porque corpos negros são historicamente mais passíveis de serem violentados. É nesse sentido que existe o racismo estrutural dentro desse caso."
Irapuã Santana, doutor em Direito Processual pela UERJ

Para Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, por mais que o racismo estrutural não seja tipificado e a Polícia Civil não tenha citado racismo como crime dos envolvidos, em casos como o de João Alberto, é possível, a partir do contexto do evento criminoso, aplicar alguns qualificadores do racismo.

As tipificações penais, como racismo e injúria racial, não abrangem todo o conceito sociológico que implica na compreensão do racismo estrutural. O racismo estrutural é muito mais amplo do que as tipificações penais."
Gabriel Sampaio, da Conectas Direitos Humanos

Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum de Segurança Pública, acredita que não faria sentido transformar racismo estrutural em uma tipificação penal, justamente porque o direito penal lida com ações individuais.

"Não tem como colocar a sociedade como um todo no banco dos réus. Quando se fala em racismo estrutural, fala-se do que edifica a sociedade brasileira, que constrói as hierarquias de valor, nas quais estão contidas a ideia de que vidas negras são menos importantes e, portanto, é mais fácil você eliminá-las sem que necessariamente precise ser justificado ou seja considerado um homicídio. Como a gente vê com as mortes decorrentes de intervenção policial", diz o pesquisador.

Apesar dos argumentos utilizados pela delegada do caso e a menção do racismo estrutural, o relatório é considerado fraco por Gleidson Renato Martins, mestrando em Direito e dirigente nacional do Movimento Negro Unificado (MNU). "Eu acho que tinha que ter mais um capítulo explicando as questões da impunidade, mas para isso é preciso entender o racismo e de que forma se manifesta no Brasil."

Apesar de criticar o relatório, o dirigente do MNU, que acompanha o caso em Porto Alegre, diz que as atuações do Carrefour estão repletas de racismo. Ele cita outros casos em que seguranças levaram pessoas negras para uma sala.

"Tudo isso nos diz que para o Carrefour, as pessoas negras e as pessoas pobres têm que ser tratadas de forma subumana, de forma violenta, humilhante. Porque sabem que o estado brasileiro, lá na frente, vai minorizar a questão."

Gleidson Martins diz ainda que a racismo estrutural não é inédito. Mas é preciso avançar. "O brasileiro tem uma estratégia de negação sobre o racismo. E isso sempre fez com que o racismo aumentasse. Não tem como as pessoas entenderem a forma como o racismo se manifesta se não entenderem o que é o racismo. Vimos uma fragilidade na produção do texto do relatório exatamente porque é um tema novo."

Ontem, em nota, o Carrefour informou que não teve acesso à conclusão do inquérito da Polícia Civil. "Seguimos à disposição dos órgãos para contribuir com todas as informações necessárias e reforçamos nosso repúdio a qualquer tipo de violência e agressão em nossas unidades", diz o texto.

Antes, ainda sobre a morte de Freitas, a rede de supermercados já havia dito que "nenhum tipo de violência e intolerância é admissível. "Não aceitamos que situações como estas aconteçam. Estamos profundamente consternados com tudo que aconteceu e acompanharemos os desdobramentos do caso, oferecendo todo suporte para as autoridades locais."

Adiamento da votação sobre injúria racial no STF

Em meio à discussão do caso João Alberto, o STF (Supremo Tribunal Federal) adiou a votação que decide se injúria racial será equiparada ao crime de racismo. Questionados sobre se o indiciamento dos acusados no crime de Porto Alegre tem alguma relação com a votação, os juristas e ativistas acreditam que não.

"Com relação ao julgamento no STF, eu entendo que não tenha uma conexão. Porque o crime de injúria fala sobre ofender alguém, seria uma violência verbal. No caso do João Alberto, temos um assassinato de fato. Então temos uma diferença bem importante entre os dois casos", diz Irapuã Santana.

O dirigente do MNU, Gleidson, concorda. "Uma coisa é injúria racial e outra coisa é uma violência brutal e racista na sua maior expressão, que acabou vitimando uma pessoa negra. Não há conexão entre o que o STF está discutindo e o inquérito. A correlação é que o Estado brasileiro precisa, urgentemente, compreender que pessoas negras são mortas por serem pessoas negras."

Para o jurista Gabriel Sampaio, a investigação sobre o crime que vitimou João Alberto está muito além do julgamento no Supremo sobre a questão da injuria racial e do racismo.

"A discussão penal é limitada e traz respostas limitadas para a complexidade do crime que ocorreu. Temos que discutir para além das responsabilidades penais de quem praticou o crime, as demais responsabilidades que vão para além da esfera criminal, como a responsabilidade das empresas quanto à prática do racismo em seus ambientes e a representatividade da pessoa negra nos espaços de atividade econômica do ponto de vista privado", diz Sampaio.

"Há uma série de discussões que vão para muito além do sistema penal e que são colocadas à tona a partir do crime praticado contra João Alberto."